A rosa meditativa e o caminhoneiro

Estava limpo por algumas semanas e continuava atravessando a madrugada com peso em suas pálpebras viajantes. O dinheiro recém adquirido dava-lhe forças para continuar firme em sua jornada noturna. O vento soprava arduamente sobre seu vidro levemente embaçado. Teve que parar por um instante já que não enxergava bem o bastante.

Não muito depois do começo de seu descanso, ouviu ruídos de outro caminhão parando não muito à sua frente. Limpou o pára-brisa e ficou observando atenciosamente cada movimento. As portas do fundo se abriram sozinhas, rangendo com os encontros metálicos. Um homem alto saiu de cima da cabine da frente, pulou e quando chegou ao chão, nem precisou dobrar seus joelhos. Começou a tirar grandes telas emolduradas. Jogou-as ao chão, viradas para baixo, assim elas não o contemplariam durante os próximos atos. Pegou cuidadosamente outra tela, menor que as outras. Uma rosa vermelho vivo flutuava no meio da tela acima de um mundo distante e vazio. Ele a colocou em pé, a soltou e lá ela continuou. Do meio da rosa começou a escorrer um líquido denso e brilhante que se derreteu até alcançar os outros quadros. A rosa foi se desfazendo na tela.

A essas alturas, o motorista nossa amigo já estava com os olhos arregalados, nem piscava. Preferiu ficar quieto para não ser visto entre as sombras da escuridão.

Depois de alguns minutos, o homem recolheu todas as telas. A rosa não estava de volta e deixara todo aquele lago vermelho pousar sobre o meio da estrada. O caminhão partiu e o caminhoneiro foi em direção ao lago recém lançado. Via lá dentro um homem estático com olhos vidrados e percebera que o líquido era sangue e provavelmente o lago era muito profundo.

_ Não olhe para a rosa no fundo. Quando o fiz, me tornei o que agora sou _ disse o homem mergulhado, mexendo apenas a boca.

_ Não a vejo...

_ Jamais tente!

Muito assustado, o caminhoneiro voltou ao seu banco consolador. Mais uma vez ele deveria ajudar alguém. Só não sabia como ajudar alguém preso a um sangue que escorreu de uma tela de tina a óleo!

Resolveu seguir seu caminho. Algumas horas seguidas, parou em um posto com boa estrutura e se sentou para o café da madrugada. Na televisão começou um noticiário de última hora co ma seguinte manchete:

“Homem rouba telas de Salvador Dalí na Espanha e foge para o Brasil! Atenção, brasileiros, qualquer atividade suspeita é motivo de pânico e muita euforia! Corram para o telefone mais próximo e liguem para nossos jornalistas para que eles possam conseguir qualquer furo! PLIM PLIM GLOBO A GENTE SE VÊ POR AQUI.”

Ele parou. Todos estavam vidrados pela tela, quando acabou, voltaram a suas atividades mecânicas. Ele olhou para baixo, estarrecido. Tinha que voltar ao homem. Poucas horas de volta, o sol já estava nascendo e não encontrou o lago de sangue. Mas observou uma rosa grande e solitária, ao se aproximar percebeu que ela não tinha caule e nem nada. Flutuava. Logo ele se lembrou que não poderia olhar para a rosa que estivesse no fundo do lago... Mas ela era tão perfeita com suas pétalas...

_ Pintada?! Essa rosa foi pintada!

Tocou nela e a tinta a óleo sujou a ponta de seu indicador. Ela era branca. Com medo de estar tendo mais alucinações, correu freneticamente até seu caminhão e seguiu viagem.

Ao chegar no seu destino, abriu as portas do fundo enquanto conversava com o destinatário.

_ Essas peças são muito importantes! Obrigado por trazê-las a salvo para mim

_ Apenas fazendo meu trabalho, senhor.

Descarregou uma caixa enorme e se despediu.

Entrou no caminhão, olhou no retrovisor e viu o homem presenteado passando a mão em seu bigode erguido enquanto vibrava ao olhar um óleo sobre tela de uma rosa meditativa.

Gustavo Newway
Enviado por Gustavo Newway em 20/01/2012
Código do texto: T3452060
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