Aquela velha pergunta idiota

Precisava continuar correndo. E, correndo, ele continuava.

Já estavam nisso faziam...o que? Vinte, trinta minutos? Estava cansado. Realmente cansado. O suor escorria de sua testa em grandes torrentes, deslizando através de seus olhos, o que deixava sua visão embaçada e dava um ar ilusório ao mundo à sua volta, cada esquina dobrada virando sonhos sob as translúcidas lentes de água-salgada que forçosamente usava. Suas vestes estavam arruinadas; a camisa de seda branca, já transparente de tão encharcada, saía rebelde de seu ordeiro local entre as calças, presa por um cinto já não tão justo depois de tanto movimento. Não sabia onde estavam seus sapatos; havia os abandonado em algum ponto qualquer durante a corrida. Nessas horas, tênis de nylon seriam muito mais apropriados do que pele de crocodilo. Ou uma hora de corrida todas as tardes, ao invés da habitual caminhada de cinco minutos até o local que havia estacionado o carro, preenchida sempre por palavrões contra o maldito trânsito da cidade que não permitia que ele o estacionasse mais próximo. Mas essas eram indagações e falsas promessas que poderiam esperar. No momento, a única coisa que devia se preocupar era se continuava respirando e se suas pernas continuavam se movendo.

Sempre que podia olhava pra trás, na esperança de ter escapado, mas lá estava ele: sempre distante, mas nunca o suficiente. Parecia estar gostando daquele jogo, dando-lhe espaço para fugir, mas sempre perto o bastante para lembrar-lhe que estava sendo perseguido. Ou talvez gostasse de fazer isso com todas as suas vítimas, poupando suas forças até deixá-las totalmente incapazes de se defender. Mas nada disso importava agora. A única coisa que fazia sentido é que, jogo ou não, já estava cansado daquilo.

Rapidamente, entrou no primeiro prédio que viu: um edifício comercial, daqueles com porta giratória e paredes externas de vidro, que há tempos já deixou a categoria de “bom gosto arquitetônico” para adentrar a de “tédio paisagístico urbano”. Por sorte essa era uma das poucas portas giratórias da cidade que não possuía um sistema detector de metais embutido. Sorte do dono do prédio: na velocidade e desespero em que estava, certamente quebraria qualquer vidro que o tentasse impedir de entrar.

Correndo descalço através do saguão, quase derrubando um típico executivo engravatado falando no celular e que era muito orgulhoso para sair de sua frente, se encaminhou o mais rápido possível ao único elevador do outro lado do largo salão de entrada, fechando rapidamente as portas do mesmo e deixando duas idosas carregando seus maridos em cadeiras de rodas do lado de fora. Estranhamente, ninguém que viu a cena ficou chocado, nem mesmo o senil quarteto. Ou talvez não tão estranhamente assim. Afinal, todas aquelas pessoas, executivos, advogados, secretárias, faxineiras, clientes e curiosos: todas elas viveram suas vidas todas em cidades desse tipo; todas elas possuem, como participantes ou testemunhas, histórias tão ou mais bizarras do que essa, que sempre consideraram como banais e indignas de serem partilhadas. Pessoas que tenham sua única surpresa quando, talvez, perceberem que a frase “nada mais me surpreende” deixou de ser uma simples figura de linguagem, um bordão a ser usado quando se quer mostrar superioridade emocional e intelectual a outrem mas não possui nenhuma das duas em quantidade suficiente para que o torne capaz de fugir de clichês e frases feitas, e se transformou em algo mais literal do que a própria literatura. Quando perceberem que, realmente, nada mais as surpreendem, talvez sim possam se mostrar um pouco surpresas. Ou não. Seria uma grata surpresa alguém saber com certeza.

O plano era simples, se é que havia um: pegar o elevador até o terraço, esperando que a subida forçada pelas escadas despistasse seu perseguidor, enquanto ele fugia pela escada de incêndio. Se há algo que os filmes lhe ensinaram, é que todo prédio tem em seu terraço uma escada de incêndio que leva até a altura da rua, ou pelo menos um elevador de plataforma, normalmente usado para limpar suas janelas externas. Subir, descer e seguir a vida: tudo muito simples, talvez com exceção da última parte. Nunca é fácil seguir a vida.

O som do apito que indica que as portas estão se abrindo o tira de seus sonhos na caixa de prata ar-condicionada. O sol forte que entrava pela abertura e o cegava momentaneamente não deixava dúvidas de que estava mesmo no terraço. Tateando em busca da saída, cambaleou para fora, tropeçando no vão entre o elevador e o piso lajeado. Rolando pelo chão cheio de cinzas e cocô de pombos, deixa escapar a maleta de couro que carregava que, com o impacto que teve ao ser lançada e bater de encontro a alguns canos da tubulação de ar do prédio, acaba se abrindo, deixando exposto todo seu conteúdo de pilhas e pilhas de documentos e formulários.

Recuperando os sentidos ele se levanta devagar, apenas para ver seus papéis sendo levados pelo vento, e nenhuma saída de emergência externa; até mesmo o elevador da limpeza estava distante, parado no primeiro andar, completamente fora de alcance. Já ouvia o som de passos cada vez mais altos, subindo em ritmo lento pelas escadas, cada vez mais perto do terraço. Não havia escapatória. Estava perdido. A não ser que...

Sem perder mais tempo, correu até sua maleta, caída há uns dez metros de onde estava, antes que todos seus papéis fossem transformados em singelos pássaros chatos tamanho A4 pelo vento que soprava impiedosamente...

*

- Parado! Não há mais para onde fugir! – disse uma voz autoritária atrás dele.

Ele se virou, pela primeira vez encarando seu perseguidor; não era assim tão assustador quanto ele achava. Um rapaz ainda jovem, mais ou menos da mesma idade que ele, com cabelos despenteados e a barba por fazer. Usava um paletó parecido com o seu, mas marrom ao invés de preto, calça jeans e botas. Apesar de nunca tê-lo visto antes, lhe era estranhamente familiar, como um sonho prontamente esquecido que também está lá ao se abrir os olhos. Na verdade, qualquer observador externo poderia dizer que eram irmãos, salvo pelo fato de que, normalmente, irmãos não apontam pistolas automáticas para o outro. Pelo menos não fora das novelas mexicanas e peças shakespearianas.

- Nem mais um passo! – respondeu, torcendo para que sua voz não revelasse o medo que estava sentindo, mas sabendo que tal pensamento era esperar demais de uma voz que sempre fora covarde. Em suas mãos, segurava uma folha de papel quase toda preenchida e uma caneta, com o afinco de um náufrago que segura uma bola de vôlei. – Não me obrigue a fazer isso.

Sem fazer a menor menção de que ia soltar a arma, o homem sorriu. E deu um passo à frente.

Rapidamente, o outro aproximou a caneta do papel e rabiscou qualquer coisa nele. Um demônio tomou conta de seu rosto quando sorriu.

- Pronto! Agora você não tem mais saída. Pode ir embora!

Sem conseguir mais se conter, começou a gargalhar, tão alto que talvez até mesmo as pessoas que passavam pela rua, muitos metros lá embaixo, poderiam ouvi-lo; mas a arma nunca deixou de estar apontada para o peito de seu adversário.

- Cara, assim você me mata! Você acha que é quem, o Pica-Pau? Que vai desenhar um revólver nessa folha e me derrotar com ele? Não meu amigo, história errada! Você ainda precisa de muito ruivo nesse seu topete metido para ser uma sombra do Pica-Pau.

- Bem que você queria que eu tivesse desenhado um revólver aqui. – o sorriso maligno ainda não havia desaparecido de seu rosto.

- Ah é? Então, me diga – ele brincava com a arma, descrevendo círculos no ar enquanto falava – por que eu deveria estar preocupado? – e enquanto dizia isso, não fazia o menor esforço de esboçar qualquer preocupação com aquelas ameaças vagas.

- Bem, acredito que já tenha ouvido falar em um negócio chamado “ordem de restrição”?

- Ordem de...restrição? – agora ele começava a parecer preocupado.

- Isso mesmo. Eu me lembrei de que, por via das dúvidas, carrego ordens de restrição já preenchidas para todos os meus inimigos, necessitando apenas a assinatura de um juiz para que elas passem a valer. E, como você bem deve saber, fui promovido para juiz no mês passado. Comecei no cargo essa manhã.

- Sério? Eu não sabia. Mesmo! Creio que ainda não é tarde para lhe dar os parabéns?

- Não, não. Muito obrigado. Agradeço a gentileza.

- Mas então isso quer dizer que...

- Que qualquer coisa que aconteça comigo de agora em diante, seja dano físico ou mental, permanente ou não, você será o primeiro suspeito em qualquer investigação, e cumprirá prisão preventiva até que seja provada sua inocência. E duvido que consiga fazer isso se atirar em mim num lugar com câmeras. – e, ao dizer isso, mostrou várias câmeras que estavam instaladas ao redor deles. Na verdade eram apenas as carcaças; não havia nenhum fio ou sinal de eletricidade saindo delas, mas esperava que apenas a presença física dos equipamentos junto com seu discurso fosse o suficiente para intimidar seu adversário.

E pelo jeito foram.

- Saco! – disse o homem enquanto guardava sua arma no coldre que carregava debaixo de seu braço esquerdo, escondido pelo paletó. – É isso que dá se meter com esse pessoal das leis. Eles são especialistas em te ferrar. E, além disso, não tem senso de humor! Apelam por qualquer coisinha. Aliás, você sabe como dizer que um advogado está mentindo?

- Não.

- Seus lábios estão se movendo.

Os dois riram.

- Ainda bem então que eu não sou mais advogado.

- É...

Um silêncio, constrangedor como todos eles, abateu-se sobre os dois, até que um deles finalmente decidiu dizer alguma coisa.

- Então...afim de tomar uma breja? Daqui a quinze minutos começa o jogo, e tem um barzinho legal aqui na esquina. Se a gente correr dá pra pegar a escalação dos times ainda.

- Ótima idéia. Mas, por favor, sem essa história de correr. Não sei nem como consegui chegar aqui em cima. Não sou mais tão jovem assim.

- Somos dois.

E, conversando despreocupadamente como dois velhos amigos, esperaram o elevador e se dirigiram para o bar.

*

Final do campeonato brasileiro e, como era de se esperar, o bar estava lotado de gente. Rodas de samba se formavam nas mesas mais próximas da rua, onde mulatas de corpo esbelto e pouca roupa dançavam com movimentos sensuais que roubavam a atenção de todos em volta e fazia com que os olhares, como abelhas no mel, não desviassem de seus generosos decotes e coxas torneadas. Apenas alguns poucos fanáticos sentados no balcão não lhes dava atenção, vidrados que estavam na TV, onde dois brutamontes de braçadeira e um baixinho careca brincavam de cara-ou-coroa. No fundo, isolados de toda aquela animação, dois velhos amigos conversavam tranquilamente enquanto secavam uma cerveja atrás da outra.

- ...e foi assim que eu acabei me tornando líder dos escoteiros de Paranaguá do Sul. Hey, cara! Que foi? Parece que você não escutou nenhuma palavra do que eu falei.

Como que acordando de um sono perturbado, o outro se mexe na cadeira, meio assustado, e num único gole esvazia seu copo de cerveja, já o enchendo rapidamente e fazendo um gesto para que o garçom trouxesse uma nova garrafa.

- Me desculpe, eu estava meio que perdido em pensamentos.

- Um centavo pelos seus pensamentos.

- Sabe que se eu ganhasse um centavo para cada vez que ouvisse isso, eu já teria...um centavo. Maldita expressão que ninguém usa! – e novamente esvaziou seu copo num único gole, enquanto o garçom trazia uma nova garrafa cheia e a colocava sobre a mesa, substituindo-a pela vazia. – Na verdade, não era nada demais. Estava apenas pensando naquela velha pergunta idiota...

- Que velha pergunta idota? – perguntou o outro, enchendo novamente o copo do amigo e completando o seu, que já estava pela metade.

- Aquela que diz “quem é mais forte? A pena ou a espada?”

O outro riu.

- Ora meu amigo! Mas é simples! Eu mesmo já não te respondi essa pergunta na prática hoje?

O outro esboçou um sorriso, e mais uma vez esvaziou seu copo.

- Mas eu estava pensando aqui. Talvez não seja tão simples. Ou, talvez, seja mais simples do que sempre se tenha achado.

O outro olhou intrigado.

- Ora, não é nenhum grande segredo, - uma pequena pausa, enquanto enchia novamente seu copo. – de que a espada é a mais forte. Pense comigo: palavras machucam tanto quanto lâminas, disso todos sabemos. Mas um ferimento causado por uma pena pode ser desfeito por outra pena mais habilidosa – e não se engane; em qualquer que seja sua atividade, sempre haverá alguém mais habilidoso, se não por natureza e talento, pelo menos por algum momento de fraqueza sua, naquilo que você faz de melhor. E isso acaba por amenizar o ferimento sofrido, e até mesmo infligindo um ainda maior em seu atacante. Mas um ferimento de espada – por pior e mais desengonçado que seja o espadachim que o tenha atingido – não pode ser anulado, ou mesmo amenizado, por uma habilidade superior com a espada. Ao contrário das penas, os ferimentos de lâmina são permanentes.

Em todo o bar os ânimos estavam exaltados, uma estranha tensão tomou conta do ar. Na outra ponta da mesa, seu companheiro de bebida parecia apreensivo.

- O que você quer dizer com isso?

Com um olhar de decisão, o outro virou de ponta-cabeça o seu copo, deixando-o descansar na mesa, e se levantou, um sorriso sarcástico no rosto enquanto mexia em seu paletó.

- Apenas isso: foda-se!

Gritos. Explosões. Fim de papo.