Não da pra ficar só olhando sempre
“Não é terrível, espelho? Você já parou para pensar no parado que pensa?”
Uma torneira aberta, creme dental na escova e olhar fixo no espelho:
“Bom, o meu verdadeiro medo é que você feche os olhos, ou responda alguma de minhas perguntas, coisa que me deixaria bastante atônito. Agora, não há medo maior do que eu descobrir, olhando-o fixamente, que há um fio de cabelo branco ou uma espinha ou qualquer coisa que nos deturpe, pois, afinal, somos o mesmo, não?”
Uma voz sibilante:
- Rodolfo! Quanto tempo vai levar para sair deste banheiro?
“Mas, acredite, somos o mesmo, sim, e esta divisão não o impedirá desta vez de falar com Rosana. Saia daí e diga a ela que só vou levar mais alguns segundos”.
Rodolfo, convicto de que seu reflexo no espelho ganharia vida, esperou observando esperançoso a reação da sua imagem do outro lado.
Nada. Nenhum espectro personificado de Rodolfo materializou-se nos dez minutos seguintes.
Rosana, tensa e com a biológica necessidade de entrar no banheiro, grita:
- Rodolfo, o maldito espelho não vai ganhar vida própria, será que vou ter de te internar? Todos os dias a mesma ladainha...
A porta do banheiro começa lentamente a se abrir. Rosa observa um Rodolfo pálido, visivelmente alquebrado, não se agüentando nas pernas e mudo feito um besouro.
- Rodolfo, o que... (grunhidos)
Não consegue proferir palavra alguma. Sente que sua consciência começa a obliterar-se. No chão, jaz um Rodolfo trêmulo, com secreção jorrando entre os lábios. No espelho... (movimento)
Nas profundezas viscerais de um susto, um grito misericordioso é entoado de dentro de um espelho:
- Rosana, me tire daqui!
Rosana, com a incredulidade de um vencedor da loteria, não se move. O espelho começa a gritar. O Rodolfo no chão ainda está desacordado; uma barata passa na parede ao seu lado. O pano de chão está seco e o chuveiro goteja.
O espelho não diz mais nada.
O corpo no chão estremece. Um gemido seguido de um olho aberto o coloca em pé. Rosa não se move, está diante da própria definição de surrealismo. O corpo a olha diretamente nos olhos; não há o branco em suas pálpebras, sendo completamente enegrecidas. Lavou as mãos e a boca e sorriu o mais sinistro sorriso para o seu reflexo no espelho.
Rodolfo, dentro do espelho, estupefato, não soube o que dizer, preso na própria loucura.
Uma frase de impacto; um desmaio e uma descoberta gloriosa:
- Sabe Rodolfo, por muitos anos você sustenta esta loucura impensável de me ver fora deste espelho, sempre com a convicção de que um dia aconteceria. Pois bem! Aprenda a viver na solidão dos dias, entenda que nem tudo que conheces com tua razão ou com teus olhos é propriamente real e tome esta experiência como umas férias bastante duradouras. Saiba que, como escreveu Lord Byron, “Na solidão é quando estamos menos só”.
Rosana, assim que ouviu a voz embargada de seu marido conversando com... Com ele mesmo no espelho, caiu desmaiada na mesma hora. Fezes maculavam seu jeans e urina espalhou-se por todo o chão do corredor.
Antes de sair, o renovado Rodolfo olhou para seu antecessor e disse:
- Meu caro, não esmoreça! Saiba que você, agora, nada mais é que a minha alma. Não diga nada, é simples: Você é o reflexo do meu Eu; as pessoas não conseguem entender este fato da vida e ficam criando teorias e hipotéticas e patéticas soluções para este impasse. O espelho nada mais é que a visualização da alma “camuflada”. Quando eu digo “não perca o ânimo” é que, de qualquer forma, quem sobreviverá eternamente é você que, por sua vez, logo descobrirá os segredos por trás de onde foi parar, enquanto que eu, agora, sou um mero mortal sem alma.
O espelho pergunta:
- Mas por que, então, abandou esta condição?
O agora mortal responde e, como não podia deixar de ser, vira as costas e se vai:
- Não da pra ficar só olhando sempre, meu caro!