É o outro, o tempo todo
Aquele jovem senhor, de aparência distinta, sentado no meio-fio de uma movimentada avenida, instigou-me a curiosidade, a ponto de ir ter com ele:
- Bom dia, senhor. O senhor está bem?
- Não muito – respondeu-me, cabisbaixo.
- Posso lhe ajudar em alguma coisa? Encaminhá-lo a um pronto-socorro?
- Não, senhora. Meu mal não é físico. Para o meu infortúnio gozo de excelente saúde.
- Precisa de ajuda para atravessar a rua? Logo adiante há uma faixa...
- Não, senhora. – interrompeu-me. - Ir ou ficar, agora já não importa.
Era evidente que aquele homem estava desnorteado. Talvez uma amnésia lhe fizera esquecer o caminho de casa. Talvez um trauma violento o tenha tirado do prumo.
O que mais me chamava atenção nele era a elegância do porte: cabelos longos, levemente ondulados, presos por um elástico, barba bem aparada, roupa surrada, mas via-se de longe tratar-se de tecido caro. Os pés descalços, porém limpos. Não me contive e continuei a conversa, no intuito sincero de ajudá-lo, de alguma maneira:
- O senhor aceita um café? Podemos ir ali à confeitaria. Não estava fazendo nada importante mesmo. Podemos conversar se quiser.
- Sim, podemos. Há tempos não converso com ninguém. Todos sempre apressados, não é? – sorriu-me, tristemente, como agradecido pelo convite.
- Me desculpe a impertinência, mas o seu perfil não condiz muito com o das pessoas que vivem nas ruas – disse-lhe, assim que nos sentamos, junto à porta da confeitaria.
- E qual é o perfil de quem vive nas ruas? – perguntou-me, com ar de reprovação, como se adivinhasse um preconceito na minha observação.
- Oh, desculpe. Não quis emitir juízo de valor. Apenas chamou-me a atenção o seu traje, de quem vem de família abastada e por algum motivo viu-se distante de sua casa.
- Banido, seria a palavra. – a voz embargada, denunciando o presságio de que ouviria uma triste história.
- O senhor desentendeu-se com a sua família?
- Não. Nunca tive família. Vivia sozinho num castelo, apenas na companhia de um amigo. Até que um dia ele virou-se contra mim e me condenou ao exílio-.
- Ah! O senhor vivia num castelo... Repeti em voz alta a frase que me trouxe a suspeita de estar tratando com um doente mental. “Talvez tenha fugido de algum sanatório” pensei..
- Sim, vivia. – continuou, como se não percebesse a minha descrença. - Tinha muito poder, muitos servos, um grande exército que defendia meu reino. Com a traição de meu amigo, os meus próprios soldados se encarregaram de me escoltarem até as fronteiras do meu reino.
Já tinha ouvido falar em muitas estórias fantasiosas e sei que a mania de grandeza é comum em muitos doentes mentais, mas nunca havia conversado com um, assim tão de perto. No entanto, a tristeza daquele homem era tão genuína, que eu já não sabia mais como me livrar dele. Alguma coisa me impelia a continuar ouvindo, ao menos para que ele desabafasse a sua dor. Entrei na sua fantasia e o incentivei a continuar:
- Mas como se deu essa traição? Como ele conseguiu se apoderar de tudo o que era seu?
- Por amor baixamos a guarda. Por amor abrimos portas e muitas delas acabam por nos levar às nossas próprias masmorras. Infelizmente confiei no meu melhor amigo. Ele era o meu guardião, o que transmitia as minhas ordens e as fazia cumprir.Nunca desconfiei da sua inveja. Nunca pensei que o que de fato ele queria era tomar o meu lugar.
- Mas por que o senhor não tentou voltar? Falar com o seu povo? Denunciá-lo? Por que não reuniu um exército e o expulsou de seu reino?
- Tentei isso. Foi a primeira coisa que fiz. Reuni os poucos fiéis soldados e empreendi uma luta sangrenta contra ele. Óbvio que perdi a batalha, não? Nem sempre são os bons que vencem as guerras. E de tudo isso, o que mais me dói é que ele não é um bom rei. É mau. O seu maior prazer é me fazer presenciar todo o mal de que é capaz. E é muito, acredite. A cada lamento de dor que ouço, me dói no fundo do coração.
- O senhor ouve vozes!? – exclamei, tentando imaginar o tamanho da aflição a que aquele homem estava submetido. “Talvez seja esquizofrenia” arrisquei um palpite, leiga que sou em classificação dos distúrbios mentais.
- Sim, o tempo todo. Do mundo todo. E a cada vez que clamam pelo meu nome, mais ele se deleita. com a minha impotência. É por isso que procuro estar nos lugares mais barulhentos possíveis. Porque não agüento mais ouvir tanto choro e ranger de dentes.
“Choro e ranger de dentes” Já ouvi essa frase em algum lugar – pensei. - Não! Não é possível! Será que este homem pensa ser Deus?
- Mas sempre ouvi dizer que o senhor é mais forte que ele, então, porque não o expulsa, usando somente o seu poder mental? Por que não o desafia para uma luta, só os dois? – instiguei-o, para ver até onde ia aquela mente perturbada.
- Porque as coisas não funcionam assim. Já houve tempo em que eu fazia o que queria, com o poder da minha mente. Mas ele, que aprendeu tudo comigo, também adquiriu este mesmo poder. E mais: ele sabe como se fazer passar por mim, em qualquer situação que lhe convenha. A senhora não imagina quantos generais ele usou, ao longo desses milênios, para levar o flagelo à raça humana, em meu nome.. Quanto mais pessoas imploram por minha ajuda, mais o fortalecem. Já reparou que em cada oração há uma omissão?
- Não entendi. – sua pergunta direta pegou-me de surpresa. Até então, o nosso diálogo se resumia em perguntas que o estimulavam a prosseguir com sua fala. Mas a pergunta foi feita diretamente para mim. – Em cada oração uma omissão? – Devolvi-lhe a pergunta.
- Sim. A cada vez que os inocentes me pedem socorro, atestam a sua fraqueza e, portanto, a minha. Como vou poder lutar contra ele e seus exércitos, se aqueles que me poderiam ajudar, se escondem atrás de mim?. A cada vez que os humanos permitem que se matem uns aos outros, esperando que eu puna os culpados, fortalecem àquele que os insuflou. A cada criança mutilada, violentada ou morta me coloca numa situação constrangedora perante os humanos, porque não lhes posso fazer entender que não sou eu aquele a quem se dirigem. Que quanto mais exigem de mim, mais me condenam.
- Mas, o que devemos fazer para lhe ajudar a reaver o seu trono? Como organizar um exército capaz de derrotar alguém tão astuto, a ponto de nos confundir?
- Aprendendo que não se forma esse exército olhando para cima. Entendendo que aquele que está no alto é o outro. O que sempre esteve, o tempo todo.
De repente cessaram as perguntas. Quaisquer que eu pretendesse fazer já saberia a resposta. Os olhos daquele homem, a princípio negros, se alternavam entre castanhos, verdes, azuis. E do brilho que deles emanava, feito nítido espelho, vislumbrei toda a raça humana, à deriva, com seus cânticos, choros e ranger de dentes.
Uma gargalhada sinistra, vinda de algum lugar acima do teto, me fez acordar, de sobressalto.