O homem moderno escreve poesia parnasiana pelo método antropofágico

E num súbito lapso de momento (uns diriam que genial, outros que insano, e alguns mais cínicos diriam que aquilo não passava de um devaneio cultural fruto do tédio da vida urbana) João (que não era neto de Cabral ou Melo) teve aquela esplendorosa idéia:

- Vou escrever poesia parmegiana! Ah, quer dizer, PARNASIANA!

Idéia genial absolutamente fantástica! Aquele era, afinal, o caminho a ser seguido por alguém tão letrado quanto ele, que possuia em sua extensa biblioteca todos os livros de Paulo Coelho e Zélia Gattay, grandes nomes da prosa mundial, além de ter exercido um extenso extudo sobre a obra de Coelho Neto, ex-critor que exerceu grande influência na cultura brasileira. Seria ele, João, o maior poeta da geração brasilis (em latim disperso cunhado apenas para a satisfação de intelectualóides) desse fin de siècle (usa-se aqui o francês apenas para se parecer culto) XX. Afinal apenas ele, que teve condições de pagar R$1200 por mês num curso de letras ministrado por professores luso-carcamanos poderia tentar despontar como a verdadeira salvação da literatura brasileira. João, o Salvador!

Mas ele queria mais. Queria inovar. Untar com manteiga e polvilhar de prata a velha fôrma parmegiana, digo, parnasiana. Certa vez um amigo (que se dizia escritor mas que, ao se revelar desgostoso da escrita de Paulo Coelho, perdera com ele toda credibilidade intelectual) lhe contara sobre um tal de movimento antropofágico. João não entendeu nada do que ele havia dito, mas achou o nome bonito. Resolveu, então, assim, sem mais delongas, que tornar-se-ia também um antropófago e assim escreveria o maior poema parnasiano de todos os tempos, sem molho e sem queijo!

Parnasianismo antropofágico. Quem mais haveria de pensar em algo tão magnificamente inovador? Somente ele, João, o letrado!

Mas ele não sabia por onde começar. Pensou durante horas a fio. Tomou um banho, deu uma cagada, bateu uma punhetinha e foi dormir. No meio da noite, lá pelas três horas da manhã, acorda eufórico, como se as musas o haviam visitado em sonho e lhe mostrado o caminho. Um caminho esplendorosamente supremo que só alguém com uma percepção tão aguçada e uma inteligência tão primordial como a de João poderia ter notado. Deveria começar a verborrarizar constante e eloquentemente sobre o papel, e já demonstrar a todos, desde o primeiro verso, porque realmente era uma criatura de virtudes celestiosamente divinas? Mas não. Qualquer Ademir de fundo-de-quintal poderia fazer algo do tipo. Não ele! João! O Baco das palavras! Ele deveria tomar o caminho que ninguém jamais havia pensado, ou mesmo haveria de pensar!

Se levantou então da cama, abriu o dicionário e procurou o significado da palavra “antropofagia”.

Sem querer ficar enrolando-me em questões de cunho linguístico e locuções pertencentes a dicionaristas, o resumo simples do verbete encontrado pode ser assim mostrado:

“antropofagia = canibalismo”

Canibalismo. Claro! Só podia ser! Aquilo era tão evidente que ele, João, o orgulho e salvação da literatura tupiniquim, resolveu também procurar o significado de “canibalismo” para se certificar de sua compreensão inicial. E, internamente, se gabou de ter tomado essa decisão sozinho, sem a ajuda de nenhuma musa.

Mais uma vez me abstrarei dos termos dicionaristas para indicar o que João encontrou sobre canibalismo. Aliás, me abstrarei também de qualquer explicação mais detalhada (ou mesmo sem detalhes) sobre o tema, pois acredito que todos saibam o que isso significa. João também sabia, não se engane. O real conhecimento de nosso poeta se encontra além de qualquer simples compreensão. Ele só precisou consultar o dicionário porque, para atingir a perfeição necessária em sua obra, não deviam haver dúvidas quanto qualquer dubiedade em termos pouco comuns ao leitor menos letrado.

Ao ter suas suspeitas afirmada, João se pôs a refletir. Como, então, deveria ele proceder para se tornar um verdadeiro poeta antropofágico? Novamente fechou os olhos e entrou em estado reflexivo e, após algumas horas, com os primeiros raios de sol entrando pela janela de se quarto e seu vizinho batendo na parede reclamando da altura que ele roncava, João, acordando assustado, se viu perante a solução para seu problema. Era algo que o consumia por dentro, uma sensação de mal-estar que precisava ser extravasada, sair de dentro dele e ganhar o mundo, mas a qual ele não conseguia encontrar palavras ou pensamentos relativamente diretizados (???) para expor esse sentimento.

Depois de muito pensar e quase perder a cueca que estava usando, percebeu que era apenas uma dor de barriga e correu para o banheiro.

Mas foi lá, na solidão de seu lavabo, no trono em que apenas ele reinava, enquanto lia uma interessantíssima entrevista na Playboy com alguma dançarina de programa de auditório, que ele foi novamente visitado pelas musas (dessa vez uma mulata de um metro e setenta, 65kg bem distribuídos, coxas grossas, o dobro do tamanho do braço dele, uma bunda maior do que uma melancia, peitos enormes e rosto de putinha angelical, com nenhuma celulite ou gordura no corpo (e, de acordo com o editor, sem “photoshop”) e que lhe apareceu usando apenas meias) e então ficou claro como deveria proceder.

Após cerca de quinze minutos de curtição solitária da inspiração musáica, João finalmente saiu do banheiro e se dirigiu diretamente à cozinha. Dentro de alguns minutos sua mesa de estudos estava empanturrada de molhos e temperos: sachês de ketchup, mostarda e maionese, um potinho de sal e vidros e vidros dos mais variados tipos de pimenta.

Havia, então, chegado a hora de ser antropófago.

Resolveu começar pelo dicionário. Era uma refeição um tanto pesada, mas um poema parnasiano não podia ser chamado de parnasiano caso não possuísse um extenso calão verborrágico de palavras há muito em desuso na vida cotidiana. Para isso, João havia habilmente escolhido um dicionário do português formal datado de 1890.

Um pouco de sal, um molhinho de pimenta, e ele foi engolindo folha por folha do dicionário. As primeiras mordidas na letra “A” pareciam indigeríveis, e quase vomitou algumas vezes. Mas tinha que manter o fôlego. Não podia desistir agora. Após forçar para conseguir engolir tudo até a letra “C”, descobriu que, se mergulhasse antes as páginas em molho de pimenta, elas se tornavam de fácil digestão. E assim foi se seguindo com o “D”, “E”, “F”... quando finalmente chegou ao “Z” sentia-se como se tivesse comido um boi inteiro.

Mas ainda havia muito trabalho pela frente.

O próximo da lista era Théofile Gautier. Não que ele desejasse escrever em língua francesa, mas o autor de “a arte pela arte” era de uma valia imprescindível. Além do mais, algumas palavras francesas em meio ao seu texto só o faria parecer ainda mais culto.

E então chegou a vez dos autores de língua portuguesa, aqueles aos quais ele aspirava serem o fio condutor de seu trabalho. Gonçalves Crespo, João Penha, Antonio Feijó, Cesário Verde, todos um após o outro. E, mesmo já farto de ingerir tanto conhecimento, continuou com sua incessante deglutição literária. Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Francisca Júlia, Vicente de Carvalho, Luís Delfino, Mário de Lima. Todos os grandes deveriam ter alguma influência em sua obra.

Bilac não era de todo ruim. Tinha gosto de frango.

Depois de algumas horas de comilança, ele finalmente estava preparado. Agora era só esperar.

Em poucos minutos ele já começou a sentir o estômago se revirando. Certamente era a “inspiração de dentro” à qual tanto ouvira falar, mas nunca sentira. Aquilo tomava conta de seu ser. O enchia de sentimentos vários: tristeza, raiva, melancolia, uma dor aguda no fundo de sua alma, no âmago de seu ser. Bilac (seria ele mesmo?) já havia dito certa vez que a poesia se faz com suor. Deus, como ele suava! Gotas de suor escorriam de sua testa, desciam por suas bochechas, escorriam por seu queixo e, finalmente, caiam sobre o papel em branco em cima da mesa. Com certeza todo esse esforço era algo necessário para se criar o maior poema de todos. Não havia dúvidas quanto a isso. E nem teve dúvidas quando percebeu que estava suando sangue. Afinal, já ouvira falar certa vez de que “havia uma gota de sangue em cada poema”. Com certeza o autor daquela frase passara por momento parecido. E, se um poema comum exigia uma gota de sangue, o que dizer do maior poema de todos?

Um barulho desconcertante saiu de seu estômago. Um urro gutural se derramou de sua boca, espalhando-se por todo o cômodo. Ele sabia. Havia chegado a hora. Finalmente vomitaria as palavras, as palavras que dariam luz ao maior poema do século.

Um urro e um baque surdo.

Finalmente havia chegado sua hora.

Dois dias depois encontraram seu corpo, perdido em meio às folhas de papéis manchadas de vômito.

Morreu de congestão, o coitado.

Com certeza tinha abusado da pimenta.