A Doralice não disse
Na fase inicial da dureza da vida é que Doralice aprendeu a ser ovelha negra. De tanto chorar amarguras aos doze anos foi considerada bicho de sete cabeças da aldeia em que morava. Cercada por gente sábia, que sabia o que dizia, só não sabia assobiar e pensar e falar, ela cresceu sendo órfã de pais vivos e separados pela realidade do matrimônio: a traição.
Aos quinze, garota de recados, de esquemas e de programas para um tal Ronaldo, foi ferida de morte por um amor sem igual: um pássaro atravessou seu caminho tortuoso e sublime. Tempos depois estava prenhe de um ser sem nome, sem dente ou passaporte. Deu a luz no quintal. Ronaldo não tolerava barulho e sujeira dentro da casa. Ronaldo se tornou humano e humanidade. Que se tornaram costas viradas para o que de mais belo existe: o nascimento de um menino-ave.
Deus foi o que meu filho se tornou, Doralice dizia sem parar. Foi aí que a aldeia sábia passou a chamá-la de maria vai com as outras. Aquela em quem se joga pedra. Onde já se viu. Ronaldo era homem bom. A diferença entre bom e covarde é tênue feito fio de lã. Mas era bom e isso tinha a natureza que ver e declarar.
Doralice declamava poesia em meio as fraldas sujas do filho-deus. Deus-verme de criança que teve barriga d’água aos dois anos e subiu as escadarias mais altas da igreja mais alta. A mãe foi quem levou o caixãozinho feito de palha de bananeira. Maneiro que era o filho, doce que era a mãe, a árvore deu o fruto que alimentou e o manto que cobriu o frio eterno. Terno, a roupa de Ronaldo humano condizia com a condição. A lágrima é que não. Enfim, no fim, a cidade compareceu. Maria vai com as outras, Doralice, ia só; chorou baixo; chorou alto ao chegar no quintal. Lembrança do nascimento e da vivência do filho-anjo que correu os primeiros passos atrás de dois ou três pássaros, um, talvez, seu pai, quem sabe.
Só se sabe de Doralice os fios tecidos. A lã que separava a bondade da covardia foi encontrada tecida em forma de pássaro-anjo, anjo-pássaro, ninguém sabe bem. O corpo da mulher era de bicho de sete cabeças, pessoas da aldeia tinham era razão. Sabiam, de sábios que eram, que o melhor mesmo era ovelha negra não dar lã em terras puras. E a aldeia seguiu com suas pessoas e Ronaldo, humanos e muitos, todos, humanidade.