O Lago dos Corações Partidos - Parte II (Capítulos X a XIX)
Capítulo X
Já era de se esperar que um dos casos do Victor desse errado. Eu sabia que ele tinha outro caso, claro, mas nunca achei que me incomodaria com isso.
Teve um semestre no qual eu não tinha aulas nas sextas-feiras de manhã. Infelizmente, o Victor trabalhava nesse dia e isso fez com que nossos encontros matinais ficassem prejudicados. Só podíamos ficar juntos aos sábados e aos domingos, isso fez com que eu quase me arrependesse de pegar aula na quarta-feira, dia de folga dele. Nas sextas-feiras, então, eu ficava sozinho em casa de manhã e a esse ponto o Victor já até deixava a roupa usada no meu quarto. Só que as de quinta-feira não ficavam mais com o cheiro dele, eu sabia que era de outro homem. Não é o fato de ele sair com outro homem que me irritava e sim o cheiro dele que ficava nas roupas do Victor.
Por vários finais de semana eu não disse nada. Mas aquilo estava, realmente, começando a me irritar.
- Por que você não come em casa, às quintas?
- Porque trabalho.
- Você não trabalha à tarde.
- Tenho obrigações com o colégio. Fico trabalhando na papelada.
- Você não sabe mentir, Victor. Muito menos pra mim.
- Pra sua mãe é mais fácil.
- Eu vou contar pra ela.
- Não vai, não. Você sabe que precisa de mim.
Era verdade, precisava mesmo.
- Vamos ver, então.
- Que você quer que eu faça? Quer que eu pare de ver ele?
- Não. Quero que você use outra roupa quando estiver com ele. E mande pra lavanderia. Ou ele que lave, sei lá.
Funcionou. Só sentiria o cheiro do Victor, agora.
Capítulo XI
Fronteira era o nome de um bar que, apesar das visíveis boas intenções arquitetônicas, não passava de um quiosque de madeira e palha, com um bar que servia um só tipo de bebida – em uma garrafa verde-musgo -, no centro, a bancada da lanchonete à esquerda e atrás do que provavelmente era a cozinha ficavam os chalés que eu tinha visto ao longe. Tudo de madeira. Também de madeira parecia o velho que secava os copos no bar, não pela cor de sua pele, já que era óbvio que não tomava sol havia muito tempo, mas sim pelas suas rugas que pareciam entalhadas e seus movimentos lentos. Ao fundo, alguns tocos estavam espalhados e em uma mesa – essa, assim como as outras coisas e até o velho, grossamente esculpida – apoiavam-se três homens com o aspecto muito parecido com o do velho, só que mais jovens – o que, na verdade, não dava para dizer com certeza, porque o lugar parecia perdido no tempo. Pelo cheiro, o que estavam fumando era maconha, talvez fosse essa a causa da lentidão dos movimentos. Crescia um mato alto atrás do bar e atrás dele grandes arbustos.
O velho servia a bebida a um homem que estava sentado no bar que, com certeza, não pertencia ao lugar. Usava uma camisa azul, calça e sapato sociais. Mas o que denunciava que ele não pertencia ao lugar era o smartphone que estava em cima da bancada, próximo a ele. E a única coisa que ele fazia era beber e olhar para o aparelho, nervoso. Aproximei-me do bar e, sem me sentar, perguntei qual era o melhor caminho até o Lago.
- Não tem.
Eu sabia qual era, mas não me pareceu educado passar pelo lugar sem dizer nada.
- E atrás dos arbustos?
- Não tem nada.
- O velho tá, há vinte minutos, tentando me convencer a não ir por lá.
Dessa vez quem falou foi o homem bem vestido. Os óculos deixavam seu rosto mais envelhecido. Ou talvez fosse apenas seu aspecto de cansado.
- Ninguém passa por ali. Vou arrumar um quarto pra vocês. Se tiverem sorte, um carro deles (apontando morro a cima) vem buscar vocês em seis ou sete dias.
- E não tem outro caminho até o Lago?
- Tem. A estrada que dá a volta pelo muro tudo. São uns oitenta quilômetros.
Eu não conseguia entender. O homem pareceu compreender a minha cara confusa.
- O parque depois dos arbustos foi dominado. Eles não deixam ninguém passar, por isso o bar foi construído. Fazer o caminho de volta a pé, como você bem sabe, também não é uma opção.
Ele parecia estar bem informado. Algo nele me incomodava, talvez fosse seus óculos, talvez seu cheiro. Mas com certeza seu jeito de falar, como se fosse onisciente. Eu mesmo não tinha feito o caminho a pé?
- E o que eu devo fazer? Esperar aqui, seis ou sete dias, eu não vou, não. E as
- Eu estou esperando meu... Um amigo. Mandei uma mensagem pra ele, estou esperando a respostas. Mas com certeza ele vem me buscar, podemos te dar uma carona.
Seria impossível ficar no mesmo carro que ele, com aquele perfume insuportável.
- Obrigado. Eu vou tentar a sorte, passarei pelos arbustos.
Mas eu não iria prontamente. Tinha duas coisas que me incomodavam mais do que qualquer e eu não poderia continuar o caminho com isso. Eu precisava comer e ir ao banheiro.
Sentei em um dos bancos da lanchonete, queria ficar longe do homem. Uma mulher surgiu por trás de uma cortina improvisada, no lugar do que deveria ser uma porta. Ela era baixa, com o cabelo crespo e era provavelmente mais forte que os três maconheiros juntos. O cardápio – todo vegetariano - que ela me entregou, em silêncio, era escrito a mão com tinta preta e alguns desenhos, aparentemente infantis, a tinta vermelha. Pareciam as representações dos mais diversos animais, todos sem a cabeça. Eu levantei a minha, que ainda estava intacta, e a mulher assentiu com a cabeça sem que eu abrisse a boca.
- Açaí pequeno.
- Quanto é?
- Nada.
Achei estranho. Mas também não tinha certeza que eu teria algo para pagá-la. E certamente o lugar não aceitava cartões. Ela voltou para de trás da cortina. Nesse momento senti o cheiro insuportável novamente. O homem bem vestido tinha acabado de sentar do meu lado.
- Eu vou com você.
- É perigoso.
- Mas você vai, não vai? O que te deixa tão confiante? Aliás, eu não tenho mais nada a perder.
- Tem sua vida.
Deu de ombros e continuou bebendo. Aquela não era a atitude de um homem bem vestido. Dei de ombros também, concordando.
A mulher voltou.
- Não tem morango e a banana tá verde.
- Tudo bem.
Não poderia exigir muito de algo que viesse de graça. Também não poderia exigir muito daquele lugar. Antes que ela voltasse ao lugar de onde veio, perguntei se havia um banheiro, ela apontou para os chalés, disse para eu continuar reto até o fim.
Os chalés abrigavam uma comunidade pequena, de mulheres e homens muito parecidos com o velho ou os três apoiados à mesa. Tinha um aspecto de comunidade fechada, faziam atividades como transportar água em baldes, trabalhar a terra com enxadas. Havia uma horta e um pomar ao longe. No chão de terra molhada, galinhas, porcos e bodes circulavam livres. Crianças brincavam com animais esculpidos em madeira, todos sem cabeça. As cabanas (o termo “chalé” me parecia muito luxuoso agora) não tinham portas, nem janelas, havia apenas um buraco na entrada e uma cortina mal pendurada no lugar, além do que pareciam tapetes feitos de folhas e ervas. Em algumas, que estavam abertas, dava pra se ver o interior: alguns colchões e roupas. Pareciam não ter nenhum aparelho elétrico, pareciam estar parados no tempo. No centro da comunidade, no que parecia ser uma fogueira gigante, apagada, uma velha estava agachada balançando um colar de búzios. Não me surpreenderia o fato do lugar ser supersticioso. Ou religioso, que seja. Quando passei, a velha, sem desgrudar os olhos das cinzas, apontou o colar para mim, chacoalhando com força. Cheguei ao um banheiro nada higiênico, me parecia que todo o lugar compartilhava-o. Pelo menos tinha porta de verdade. A latrina era artesanal, me fez sentir nojo. Por sorte não teria de tocar em nada, até a porta eu abri e fechei com os pés. Quando terminei, reparei que o lugar não tinha pia, muito menos uma torneira e o único lugar com uma água mais ou menos limpa era um balde, no canto atrás da porta. Preferi limpar as mãos na calça mesmo.
Quando sai (tomando o cuidado para não encostar-me a porta), a comunidade parecia ter encerrado suas atividades, todas as cortinas estavam fechadas, todas as pessoas haviam entrado para suas cabanas. Os animais, porém, continuavam a zanzar pelo lugar. Andei em direção ao bar com pressa, tive a impressão de estar sendo observado de dentro das cabanas e estar ouvindo cochichos.
Cheguei e sentei ao lado do homem. O meu açaí estava ali em cima da bancada. Não queria comer, o clima do lugar me fez perder a fome.
- Vamos.
- Não vai comer?
- Não. Perdi a fome, vamos logo.
- Você é quem sabe. Meu amigo não respondeu.
Atravessei o mato o mais rápido que pude até chegar aos arbustos. As folhas estavam estranhamente geladas, dava para sentir minhas pernas molhadas, como se pedras de gelo estivessem derretendo nelas. Minhas calças, no entanto, estavam secas quando consegui passar tudo. Olhei para trás e percebi que meu companheiro estava ainda na metade do caminho. Apressei-o, mas parecia que ele não conseguia ir mais rápido, era como se estivesse atravessando um chão lamacento, mas eu mesmo tinha pisado nele e sabia que estava seco. Terminou o caminho com os sapatos limpos.
- Como você chegou tão rápido?
- Correndo, ué.
- Mas como, com esse barro?
- Seus sapatos estão limpos.
Nem gelo, nem barro. Logo percebemos que seria impossível passar por entre os arbustos, que cresciam alto, rentes ao chão e pareciam ter galhos intermináveis, pelo menos até onde os olhos e os braços alcançavam. Fomos caminhando para a direita, onde parecia que, ao longe, os arbustos eram mais baixos. No caminho, ele me fez perguntas, como qual era o meu nome, o que eu fazia, eu sempre respondia desinteressado, sem nem perguntar de volta. Arriscou, até, a perguntar o que eu iria fazer no Lago. Nem eu mesmo sabia responder a essa pergunta. Nem tive tempo de pensar se iria valer à pena passar por tudo aquilo. Depois de tudo que tinha acontecido entre mim e o Wes, eu sabia, mesmo que inconscientemente, que valeria a pena.
Depois de muito andar, percebemos que havíamos caído em grande ilusão de ótica, os pinheiros ali não eram menores que os anteriores e pareciam continuar em uma linha sem fim. Sentei no chão, não me importava mais em sujar a roupa, estava muito cansado. O desespero e a sede estavam deixando o homem impaciente. Homem. Percebi que até ali ainda não sabia o nome dele. Sugeriu que voltássemos para pegar água, estava mesmo desesperado. O meu silêncio disse o que pensava sobre a ideia, ele ficou em silêncio também. Por tanto tempo, que eu percebi que ele não estava mais à vista. Levantei e continuei o mais depressa que pude – o que não era muito – pelo caminho. Não era possível que ele tivesse me deixado para trás.
- Eduardo! Vem cá, achei uma coisa.
O grito vinha de entre os arbustos, bem perto de onde eu tinha saído. Fui voltando.
- Não tô te vendo.
- Aqui, vem cá!
Ele tinha se enfiado por entre os galhos, tinha sumido quase completamente, só conseguia ver seu braço. Fui para onde ele estava, parecia realmente que havia uma folga no espaço entre as árvores, ali. Ou elas, estranhamente, se abriam sozinhas. De qualquer forma, ele estava sentado em portão de ferro, quase invisível naquele verde, que estava entre uma árvore e outro. O portão estava trancado, mas era baixo, foi fácil pular. Continuamos o caminho por entre os arbustos com a mesma sensação estranha de que o espaço se abria para nós.
Já dava pra ver a luz entrando quando o chão passou da terra para o concreto. As árvores continuavam crescendo ali, mesmo assim, sem nem mesmo danificar o solo. Logo que saímos, a claridade cegou nossos olhos. Estava um profundo silêncio e nada dava pra ver à frente. Percebi que o perfume insuportável do meu companheiro havia se extinguido. No lugar dele, sentia o cheiro de mato. Nós não nos arriscamos a avançar, sem conseguir enxergar. Mesmo tendo me acostumando com a claridade, não conseguia ver nada que estava muito longe, uma névoa escondia nossos próximos passos. Sabia que deveria continuar, mas estava com muito medo para entrar a névoa. Não sabia o que dizer, sem conseguir ver direito, eu já não estava tão confiante.
- Você não me disse seu nome.
Meu companheiro olhava, boquiaberto, para frente. Achei um exagero sua expressão. Sim, a névoa dava medo, mas sua expressão era de pavor, como se tivesse visto algo que realmente o assustasse. Logo percebi que não era para a névoa que ele olhava, era para uma cerca de arame farpado logo a frente, que eu ainda não tinha reparado. Mais precisamente, olhava para as dezenas de carcaças de animais que estavam enroscadas na cerca, retorcidas, com uma gigantesca poça de sangue seco no chão. Nenhum inseto, verme ou qualquer animal carniceiro estava ou havia atacado as carcaças. Todas pareciam congeladas, intactas, a não ser por um fator sinistro: alguém (ou algo) havia arrancado a cabeça de cada um dos animais. Não respondeu à minha pergunta.
Capítulo XII
Como eu havia dito, algo nos relacionamentos do Victor estava prestes a ruir. Acontece que Carlos, para o Victor, era o menor dos problemas. O impasse estava entre minha mãe e eu.
Segundo o Victor, estava ficando impossível que ele conciliasse essa “relação a três” – eu julgava que eram quatro ou mais -, ainda mais tendo que esconder tudo da mamãe. Nunca imaginei que a odiaria tanto como no dia que ele disse isso. Disse para ele que desse um jeito, se ele passasse a não me “ver” mais, eu contaria tudo a ela. Mas eu sabia que a culpa era dela: a mesma quantidade em que ela ignorava meu pai era o que ela tinha de ciúmes pelo Victor. Ficava sempre desconfiada, perguntando o que ele tinha feito nos dias de folga, reclamava quando ele chegava mais tarde.
Victor estava em um dilema, porque saberia que, nesse caso, eu não perderia contando a ela. Claro que eu só falaria do caso dele com Carlos e se ele mencionasse alguma coisa do que havia entre nós dois, eu negaria tudo. Podia não conseguir mentir para o Victor, mas para ela – e para a maioria das pessoas – era uma das coisas mais fáceis de fazer. Se ele decidisse só pela mamãe, perdê-la-ia. Se decidisse só por mim – o que era quase impossível -, mamãe o expulsaria de casa e ainda o acusaria de mentiroso. O jeito era ficar com os dois e foi o que ele fez.
Depois de ter feito essa escolha, o Victor não era mais o mesmo comigo. Me tratava friamente - principalmente na presença da mamãe – e tentava evitar que nós encontrássemos a sós. Esse comportamento, ao contrário do que eu imaginava, foi melhorando com o tempo à medida que ele tratava a mamãe muito melhor, também. Uma noite, sabendo que ela se zangaria pelo atraso dele, o Victor trouxe flores e chocolate para melhorar o humor dela. Ele era tão cavalheiro com ela, porque comigo não podia ser assim também? Ele nunca me trazia nada, comecei a sentir ciúmes novamente. E agora não tinha nada a ver com as roupas, era ciúme dele mesmo, queria que fosse só meu. Eu não conseguia mais suportar e por isso era a minha hora de decidir. Alguém teria que cair fora: ou eu, ou mamãe.
Capítulo XIII
Hesitei em continuar, não sabia mais se valeria a pena, principalmente se eu fosse arriscar a vida de mais uma pessoa. Meu companheiro tomou a frente, parecia mais corajoso depois que desbravou os arbustos. Eu realmente estava temendo pela minha vida, mas fui atrás dele. Passamos por baixo da cerca, arrastando no chão. A não ser pelo sangue seco, o chão estava impecavelmente limpo. Conforme fomos andando, os brinquedos do playground começaram a aparecer. Os balanços, escorregador, gangorras, gira-gira. Tudo de metal e nas mais perfeitas condições. Não me espantaria se estivessem congelados. Também de metal e perfeitamente conservados, haviam contêineres gigantes, uns três ou quatro. O silêncio foi quebrado por um cochicho parecido com o quê eu havia ouvido na comunidade.
- Mostrem-se, estranhos.
A voz vinha de um dos contêineres, masculina, alta e metalizada, provavelmente pelo eco do metal. Não entendi o que a voz queria dizer com aquilo, ficamos parados.
- Quem tá aí?
- Onde estão os animais?
- Nós... não... é... nós não viemos trazer... animais, foi só... é que... estamos só de passagem.
- Ninguém passa por aqui, queremos animais.
Eu não sabia o que fazer e, se o homem sabia, não o fez. Vozes repetindo “Queremos animais!” em coro pareciam sair dos contêineres. As vozes se aproximavam, mas nada era visível, pareciam que eram apenas isso: vozes. A mesma voz que pediu nossa identificação gritou, repentinamente:
- Considerar-vos-emos animais, se não se apresentam. Tragam-me as cabeças!
Meus olhos começavam a se fechar, me senti tonto, parecia que ia desmaiar. Fechei os olhos e quando abri a névoa tinha sumido. Podia ver todo o playground, as vozes que, ainda assim não tinham dono aparente, cessaram. Percebi nesse momento o porquê de ele não tem reagido, nem falado: ele estava petrificado. Como os animais, como os brinquedos, os contêineres, como tudo ali. O céu estava negro e começou a chover de leve, o vento era insuportável.
- Vá, pode passar.
Disse a mesma voz.
- Desfaçam o que fizeram com ele.
- Não há como.
- Desfaçam!
Senti-me um idiota gritando com vozes invisíveis.
- Não há como, ele agora pertence ao tempo. Está congelado, como tudo o que você vê.
O tempo também parecia parado. Qualquer tentativa de “acordá-lo” foi inútil, parecia uma estátua de cera, conservava a expressão na face, a temperatura, a cor, sua pele continuava com a mesma textura. Os cabelos e a roupa reagiam ao vento, mas a chuva parecia não conseguir molhá-lo, cada pingo sumia antes de tocá-lo e, por isso, permanecia seco, sabia que teria de continuar e aparentemente não poderia fazer mais nada. Fui andando devagar, tinha medo que algo como aquilo me acontecesse, parecia quase um instinto a minha reação de deixá-lo, tão tranquilamente. Era como se algo me fizesse parar de se importar com ele assim que a névoa sumiu. Em um último impulso, quando o chão de cimento estava terminando e a decida para o vale começando, olhei para trás e foi quando eu vi o homem pela última vez. Sua cabeça foi desgrudando do pescoço como se algo a tivesse puxando, o sangue começou a jorrar, escorrer e a sujar o chão e as roupas. Quando ela finalmente se desprendeu totalmente do corpo, a névoa encobriu tudo novamente e eu não vi o que aconteceu depois. Aquilo não me chocou, realmente. Comecei a descer.
Capítulo XIV
Eu sabia que não poderia contar com Victor. Eu teria que pensar, sozinho, em um plano para que eu pudesse ficar com ele sem despertar a raiva da mamãe. Era quase impossível, eu sabia, seriam muitas coisas absurdas de uma vez só. O marido gostar de homens. O marido a trair com outros homens. O marido a trair com o próprio filho. Muita gente ia sair prejudicada se eu não tomasse cuidado.
Contar de uma vez não servia, seria como dá-la a corda – com os nós já feitos – para que ela nos enforcasse. Eu poderia, também, fazer com que o Victor terminasse com ela, de alguma forma. Seria impossível fazer isso diretamente: o Victor não deixaria – nasceu em um dia ensolarado – e a mamãe já me conhecia o bastante para deixar isso acontecer. Eu só conseguiria, então, se criasse motivos entre os dois. Mas isso daria muito trabalho e talvez demorasse muito tempo. Além do mais, eu teria que continuar vendo o Victor clandestinamente. Fugir, não, ele não aceitaria. Só se fosse eu quem desistisse do Victor, mas isso era a mais impossível das possibilidades. Como ele mesmo havia me dito: eu precisava dele.
Cada vez mais odiava mamãe, cada vez menos queria vê-la. Não me importava que ela não pudesse fazer nada, pra mim, era a culpada do meu sofrimento. Eu sabia que o Victor só a tratava bem por culpa e só ficava com ela por causa do dinheiro. Ele gostava muito mais de mim. Eu sabia que só tinha um jeito de isso acabar como eu queria e para isso eu precisava da ajuda do próprio Victor.
Capítulo XV
Fui descendo a escada em ruínas com pressa, já estava cansado, queria chegar logo. As árvores no caminho deixavam-no frio e escuro. Como cresciam em fileiras e em distâncias iguais, dava para perceber que foram plantadas e não cresceram aleatoriamente ali. Provavelmente era para que quem visitasse o logo não tivesse a visão do playground. Eu mesmo não me lembrava se dava ou não para vê-lo lá de baixo. Entre as copas, dava para ver que o tempo se abria, mas a luz e calor não penetravam na floresta.
No pé do morro, saindo do emaranhado organizado de árvores, tive uma das visões mais belas da minha vida, nem me lembrava que era tudo tão lindo ali. O restaurante, à esquerda, erguia-se praticamente suspenso no ar, há uns setenta metros do chão, mantido apenas por duas colunas. Parecia um paralelepípedo gigante, com as bases de concreto, brancas, e os lados feito de placas de vidro, intercaladas com pequenas barras de metal. O acesso ele era feito através de elevadores transparentes. O estacionamento ficava do outro lado de onde eu estava, mais ou menos na metade da altura do restaurante e o acesso a ele era através de uma escada. O sol refletia na superfície da água e muitas pessoas estavam aproveitando a parte descoberta (a coberta – por uma redoma de vidro - ficava embaixo do restaurante), tomando sol e mergulhando. No morro, à direita, cresciam rosas. Tudo dentro de uma infinita cerca elétrica, não podiam arriscar que intrusos entrasse. Naquele instante eu lembrei o porquê tanta gente percorria um caminho tão longo para chegar até ali. Era o único lugar do país em que o sol aparecia todos os dias, sem exceção. Era, porém, um paraíso particular. Desde que eu me lembrava, a região era privilégio das famílias que poderiam pagar por ela, uma espécie de clube. Também era por isso que tanta gente estava frequentando-o numa terça-feira: ninguém ali, provavelmente, tinha que trabalhar.
Reparei que a antiga portaria não estava mais ali, tinham destruído ela e, por isso, para que eu pudesse entrar, teria que dar a volta por toda a cerca elétrica. É claro que eu não faria isso, seriam mais horas de caminhada, não dava nem para ver onde ela fazia a curva. Me arriscaria a passar pela cerca, era só me concentrar e aconteceria o mesmo que com a névoa. Me aproximei e segurei um dos fios da cerca com as duas mãos, com força, e aí tive a mesma sensação que senti no playground: tontura, visão turva e fraqueza. Fechei os olhos e algo atingiu com força minhas mãos, mas sem doer ou machucar. A mesma força passou pelo meu corpo, fazendo cócegas, até chegar ao chão, fazendo-o tremer de leve. Abaixei os fios com a mão e pulei a cerca, já era a terceira ou quarta que eu o fazia só naquele dia. Quando soltei os fios, uma descarga elétrica vinda do chão que tremia atingiu a cerca. As luzes dos elevadores piscaram e eles param por dois ou três segundos, depois voltaram a funcionar novamente.
Percebi, no caminho até um dos elevadores, os destroços da antiga portaria destruída. Entre eles estava uma grande placa de madeira, que eu não me recordava de ter estado ali da última vez, metade enterrada superficialmente. O pedaço exposto dizia “O Lago...” em tinta branca. Afastei a areia com os pés para ver o resto. Bem, o que tinha originalmente já não se via, estava raspado, mas, no lugar, havia uma inscrição com outra letra, provavelmente manual, em tinta vermelha, que parecia até sangue. “...dos corações partidos”.
Continuei o caminho até os elevadores e, me aproximando da água, percebi que não era mais um lago de fato. Apesar da grama e terra em volta, por dentro ele era feito de pedras obviamente encaixadas ali. Antes não era assim, o Lago era de verdade. Alguns adultos se espreguiçavam na margem e umas dez ou onze crianças nadavam. Desviei o caminho, não queria chegar tão perto. Uma placa de metal, perto dos elevadores, dizia: “Nos elevadores 4 e 5, apenas banhistas são permitidos”. Seria fácil burlar a regra se dois seguranças não guardassem cada um dos elevadores. Eu teria, então, que atravessar a redoma de vidro para chegar do outro lado.
Logo que abri a porta de vidro, senti um intenso calor vindo de dentro. Na redoma, a água estava calma e muito mais azulada que lá fora, ninguém nadava. Também tinha um aspecto muito maior de piscina do que a parte exterior, provavelmente pela falta da terra e da grama. Á esquerda, trinta placas de vidro (tive o cuidado de contá-las) erguiam-se em linha de cinco e colunas de seis, cada uma com uma escada própria para chegar até elas. Nas superiores, seis pessoas, entre homens e mulheres, tomavam sol, apáticos. Percebi que o vidro não protegia dos raios solares e sim os intensificava, aquecendo a água e tornando mais fácil o bronzeamento. Sai daquele lugar abafado e me pareceu até frio em comparação ao calor que fazia lá dentro.
“Nos elevadores 1, 2 e 3, banhistas não são permitidos”. Chamei o do meio, o elevador 2 e ele desceu rapidamente. Dentro, tinha apenas três botões: “Restaurante”, “Garagem” e “Lago”. Apertei o botão do meu destino e ele foi subindo, rapidamente, deve ter demorado uns doze segundos. Eu não consegui acreditar que estava chegando, depois de tudo aquilo. Um homem, impecavelmente vestido, abriu a porta e uma mulher, alta, de cabelos lisos e negros, com um tablet na mão, veio me atender.
- Boa tarde. O senhor tem reserva?
Boa tarde? Tinha perdido a noção do horário.
- Luz. Douglas Luz.
Capítulo XVI
Eu conheci o Wes quando eu tinha quatorze anos e ele dezenove. Enquanto eu ainda estava no nono ano, ele já estava no terceiro período da faculdade de Ciência da Computação. As aulas dele e as minhas aconteciam dentro do mesmo complexo e não era raro que alguns alunos mais novos frequentassem as festas universitárias. Em uma delas, que era para arrecadar fundos para o TCC de um curso, eu o conheci. Foi um processo bem natural, nós nos beijamos na festa, depois começamos a nos ver várias vezes até começarmos a namorar. Foi nessa época que meus mais se separaram e foi mais fácil passar por isso com ele ao meu lado. O Wes também me apoiou quando eu decidir contar tudo à mamãe. Foi até estranho ela não ter implicado com nada e principalmente pelo fato de ele ser mais velho. Eu percebi mesmo que ela ficou mais moderna e mente aberta depois de ter se separado do papai.
Para comemorar nosso primeiro ano de namoro, o Wes me levou a uma viagem no litoral. O hotel em que ficamos era horrível e muito longe do centro da cidade. O quarto era apertadíssimo, mal cabia uma cama de casal e um armário. Havia apenas dois banheiros masculinos e dois femininos por andar – o que não era bem um problema, porque no nosso, nenhum outro quarto estava alugado -, o serviço de quarto era inexistente e não era servida nenhuma refeição. É claro que eu poderia pagar algo melhor que aquilo, mas o Wes sempre foi orgulhoso, nunca deixaria que eu fizesse isso. E o que ele podia pagar, naquela época, era aquilo. Pedia-me desculpas a toda hora por causa disso, mas eu realmente não me importava, o importante era estar com ela. Na terceira ou quarta noite, o Wes quis me levar para jantar em um restaurante no centro – normalmente comíamos em um barraca da praia mais próxima. O tempo estava pesado naquele dia, poderia chover a qualquer instante, mas fomos mesmo assim. O centro era a uns 30km dali e era necessário pegar a estrada.
Apesar da rua não ter lugar para estacionar e o Wes ter tido que parar o carro longe, o restaurante em que entramos estava praticamente vazio. Era perfeito. O garçom dos entregou o menu e o Wes disse que eu poderia escolher. Falei que não fazia questão. Ele abriu-o e foi passando os olhos, que ficavam cada vez mais espantados.
- Desculpa, amor, não vai dar.
Eu entendi o que ele quis dizer, imaginei que ela não pudesse pagar por um jantar para dois naquele lugar. Eu nem me ofereci, o orgulho dele já estava ferido demais. Quando saímos, além do vento que já fazia antes, chovia muito. Ele foi buscar o carro na chuva mesmo e eu fiquei esperando na porta do restaurante. Entrei no carro quando ele buzinou e me senti um pouco mal por estar seco e aquecido enquanto ele estava molhado e tremendo de frio. Fomos a mais dois restaurantes e foi a mesma coisa. Ele já nem olhava na minha cara ou falava comigo quando saímos do terceiro, de tanta vergonha que estava sentindo. Jantamos um cachorro-quente cada um em uma lanchonete mesmo. Na volta, a chuva estava realmente pesada e eu disse que o melhor era que passássemos a noite em um motel. Ele concordou com a cabeça, sem falar nada, nem olhar para mim. Espantou-me quando ele falou, de súbito.
- Você sabe quantas orações são feitas em um Rosário?
Apesar de tudo, à época, ele ainda era religioso.
- Quantas?
- Oitenta e uma.
- Você sabe quantos prêmios da Academia o último Senhor dos Aneis, Ben-Hur e Titanic ganharam?
- Quantos?
- Onze.
- Sabe quantos filhos eu quero criar com você?
- Hum?
- Dois. Dois meninos.
- Queria um menino e uma menina.
- Por que nós não temos apelidos carinhosos?
- Sei lá. Eu acho brega.
- Eu acho bonitinho.
- E você quer que eu te chame de quê? Coelhinho?
Rimos juntos. “Coelhinho” era como a mãe dele o chamava.
- Não, por favor, Coelhinho, não. Mas não gosto quando você me chama de Douglas, também, parece minha mãe brava. Me chama do nome do motel que nós ficarmos.
Eu ri como nunca na minha vida.
- Eu tô falando sério!
Eu nunca achei que o chamaria mesmo, mas acabei falando tantas vezes por brincadeira, que acabou pegando. O nome do motel era “West Motel”, mas o néon, com uma cowgirl em luz vermelha, falhava na letra “t” e, por isso, ficou só “Wes”.
No último dia da viagem, o celular do Wes tocou enquanto eu arrumava nossa mala. Eu atendi porque pensei que fosse minha mãe, tinha dito a ela que ligasse no celular dele porque a minha operadora provavelmente não pegaria na região. Para minha surpresa, era a voz de outro mulher.
- Alô? Alô, Douglas? Amor, você tá aí?
“Amor”! No mesmo instante o Wes entrou no quarto, eu gelei e desliguei o celular.
- Quem era?
- Não me fala dela. Eu vou fingir que ela não existe, só não me fala dela. Tudo bem, é normal, ela deve ter coisas que eu não tenho. Só finge que ela não existe quando estiver comigo.
Porra, não era normal. Eu nunca consegui entender essa reação que tive. Só que eu gostava muito dele e não queria terminar. Tinha estado tudo bem até eu saber que existe outra mulher, continuaria igual, então. Mas nada foi igual dali para frente. Apesar de ele não falar mesmo dela, passou a ser estranho para mim imaginar o que ele fazia enquanto não estava comigo. Fizemos, então, um acordo que, futuramente, seria um dos dois principais motivos para o término do nosso namoro: ele sairia com a outra, enquanto eu poderia sair com outros, também. Mas ele, ao saber que eu saía com outros, não se contentava em ficar com só uma mulher e foi atrás de outras também. Assim, eu comecei a me sentir, cada vez mais, o “outro” e exigi que isso terminasse. Acontece que ele, provavelmente, já não gostava mais de mim tanto assim e achou melhor que ao invés de acabarmos com o acordo, acabássemos com o namoro. Eu aceitei, não tinha mais o que fazer, não poderia continuar insistindo se ele já não me queria mais. No final do mesmo ano ele e a namorada se mudaram para a cidade natal dela. Eu tinha uns dezesseis anos.
Capítulo XVII
Ao contrário do vidro da redoma, o do restaurante não o deixava nem um pouco abafado. Ao contrário, estava até um pouco frio para o sol que fazia lá fora. Fui acompanhando a mulher até a mesa onde Wes estava. Ele não estava muito diferente desde a última que eu o tinha visto, exceto pela barriga que havia crescido um pouco – nada que desse para notar realmente, mas eu conseguia perceber a diferença – e estava com a barba por fazer, do jeito que eu gostava mas ele nunca deixava. Na mesma mesa, à frente dele, estavam sentados dois meninos, de mais ou menos seis ou sete anos. Ele usava uma aliança de ouro na mão esquerdo. Aquela visão me fez querer desabar, me fez querer sair correndo e pular pela janela. Por todo o caminho eu fui pensando que valeria a pena, que ele tinha se arrependido pelo que tinha feito, que estava de volta para ficar comigo. Ele tinha acabado de pagar a conta quando me viu, eu estava prestes a dar meia-volta mesmo assim, mas ele se levantou com pressa e veio em minha direção, com os braços estendidos. Eu, obviamente, não me deixei ser abraçado.
- O que foi, não tava com saudades?
- O que você pretendia?
- Eu queria te ver de novo.
Por sorte as pessoas falando e os barulhos dos talheres abafavam nossa conversa.
- E essas crianças? E essa aliança?
- Ah! É que... eu achei... não, acho que você entendeu errado. É... me desculpa, eu... eu devia ter explicado melhor.
Se tivesse uma faca por perto eu a enfiaria na garganta dele.
- Você é um idiota.
- Me desculpa. Eu ia vir sozinho, ia te esperar o tempo que fosse, você sabe. Mas eu tive que trazer meus filhos. Minha esposa iria levá-los para almoçar hoje, não eu, mas ela não deu tinha dado notícias até a hora de eu sair e eu não poderia deixá-los sozinhos.
- Seus filhos?! Esposa?!
- É. Bem, eles não seu meus filhos biológicos, claro. São filhos da Cláudia. Quando voltamos para a cidade dela nós nos casamos e eu adotei os dois. Eu também fiz mestrado e comecei a dar aulas.
- Parabéns. O que você queria comigo então?
- Só queria te pagar um almoço em um lugar decente, como eu nunca pude fazer antes.
Naquele momento meu coração amoleceu. Esqueci completamente o ódio que sentia por ele. Senti-me até envergonhado por ter sido grosso, ter pensando mal dele e ter ignorado seu abraço. Eu ia dizer alguma coisa, quando o celular dele tocou. A expressão em seu rosto foi ficando mais tensa a cada palavra que ele ouvia e concordava com a cabeça.
- Desculpa, eu tenho que ir. Era do Hospital, a Cláudia sofreu um acidente de carro, parece que foi grave. Depois a gente se fala.
Chamou os filhos e os três desceram pelo elevador. Eu já tinha perdido a fome, não estava cansado ou com sede. Não sentia mais nada. Voltei para o elevador e apertei o botão do Lago. Na verdade eu não sabia para onde estava indo. Talvez pensasse em tentar me afogar, não sei.
Na água, as mesmas crianças nadavam e os mesmos adultos se espreguiçavam. Sentei na beira para contemplar o nada. Reparei em um homem que não tinha visto da primeira vez, era jovem, bonito, forte e estava de sunga branca. Era o Victor! Ele me cumprimentou de longe, mergulhou, veio nadando em minha direção e parou na margem, ao meu lado.
- Veio comer?
Dei de ombros.
- Vê a hora pra mim, por favor.
Tirei meu celular do bolso, estava desligado. Tentei ligá-lo de várias maneiras, mas não consegui. Aí abri o compartimento da bateria, que estava toda queimada, é claro que o celular não ia lugar.
- Pega o meu ali. Tá dentro do bolso de trás.
As roupas dele estavam largadas em um banco. Gritei as horas e ele fez um gesto de agradecimento. Era realmente tarde, nem daria mais para almoçar com a Marina. No mesmo instante, uma mensagem de texto chegou ao celular dele. Fiquei em dúvida se deveria ler ou não, mas a curiosidade foi enorme. “Querido, desculpe o atraso, mas eu me perdi. Ao invés de dar a volta pela cidade, peguei a estrada velha e estou em um bar ao fim dela. Você sabe onde é, né? Venha me buscar, por favor.” O Victor vinha em minha direção, devolvi o celular ao bolso com pressa.
Ele se secou, colocou o calção, a camiseta e sentou no banco para colocar as meias e o par de tênis. Um homem desceu correndo pela escada do estacionamento, estava com uma pistola na mão. Tinha cabelos grisalhos, mas não era velho e estava de óculos escuros. Varreu o lugar com o olhar e parou no Victor, apontando, trêmulo, a arma para ele.
- Vem comigo!
Os adultos perceberam o que estava acontecendo a gritaram para que as crianças saíssem da água. O Victor não obedeceu, foi se afastando de mim e do banco de costas, em direção ao Lago. O homem foi acompanhando os passos do Victor e deu uma coronhada na cabeça dele, fazendo com que caísse na água. Deu três tiros na água, sem acertar o Victor.
- Saia daí e venha comigo!
- Pai, não!
Uma menina de dez ou onze anos estava parada ao pé da escada, vestindo uma roupa estranhamente chamativa para sua idade e para o frio que fazia.
- Volta pro carro, Amanda!
Olhei para ela e nossos olhares se cruzaram.
Capítulo XVIII
De repente me vi em um lugar escuro, parecia a redoma de vidro que cobria uma parte do Lago, só que entrava pouca luz e, ao invés de transparente, tudo era castanho como os olhos de Amanda. Nada assim tinha me acontecido antes. Para minha surpresa, a menina estava em minha frente, parada, olhando para mim.
- Você não vai entrar.
- Você não vai me impedir.
A redoma foi se fechando, ficando cada vez maior. Amanda via o que estava acontecendo com olhares rápidos e assustados.
- Como você faz isso? Eu tento e nunca dá certo.
- Você vai aprender.
- Me ensina.
- Não.
A redoma diminuía em velocidade maior.
- Me ensina!
- Não.
Amanda começou a gritar e chorar, fazendo birra, enquanto o espaço ficava menor. Aquilo com certeza funcionava com seus pais, mas não comigo. Rapidamente, o castanho deu lugar a um branco infinito e Amanda desapareceu. Aí eu pude ver normalmente outra vez.
Amanda nasceu em um dia de muita chuva, um sinal de má sorte para alguns, mas eu via como uma coisa boa, até. A má sorte da menina, na verdade, vinha de antes de ela nascer. A mãe, de uma cidade do interior, com treze anos tinha engravidado de um garoto um pouco mais velho que ela e que, logo depois que os dois transaram, fugiu para não ter que casar-se. O pai dela disse que não a aceitaria mais dentro de casa, que ela agora deveria casar com o homem que a engravidou. Determinada e ingênua, foi até a capital para tentar encontrá-lo, mas não imaginava que a cidade fosse tão grande e tudo fosse tão difícil. Gastou o dinheiro que tinha em pouco tempo com comida e hospedagem. No dia em que a expulsaram da pensão por falta de pagamento, a chuva estava tão forte quanto suas dores. Bateu em vários lugares que a ignoraram, na verdade, ninguém ousava abrir a porta em um dia chuvoso. Conseguiu abrigo em um convento, onde pariu Amanda algumas horas depois, de parto normal. Dois dias depois, fugiu do lugar e deixou a menina, que foi levada à um orfanato.
Três anos depois, Amanda foi adotada por um casal de homens. Eles haviam iniciado o processo legal quando ela tinha apenas um ano de idade, mas naquela época essas coisas ainda demoravam. Criaram Amanda com mimos e caprichos, fazendo com que, de fato, ela crescesse uma criança chata, que podia fazer tudo o que queria e os pais adoravam isso. Aos nove anos já gostava de se vestir como as mulheres que via na televisão, arrumava o cabelo, usava maquiagem, vestia roupas curtas e chamativas, ao contrário de qualquer outra de sua idade. Era sempre repreendida no colégio por não se vestir adequadamente, mas seus pais não se importavam. Mesmo que fosse uma instituição conservadora, a diretora prezava pelo dinheiro e não ousava expulsar a menina, preferia que os pais conversassem com os professores, o que não adiantava muito.
Depois de uma conversa séria que teve com os pais depois de um deles ter sido chamado pelo professor de Educação Física – gostava de fazer essas aulas de short bem curto e top, enquanto as outras meninas usavam camiseta e saia -, Amanda teve a impressão que seus pais ficaram mais distantes – dela e um do outro. O que trabalhava, saía cada vez mais vezes e ficava longe cada vez mais dias. O outro, que ficava em casa, começou a sair com mais frequência, deixando a menina sozinha em casa e por vezes esquecendo-se de buscá-la nas aulas de piano ou balé.
Um dia, quando uma menina de sua turma torceu o pé fazendo um demi pilé e a professora teve que encerrar a aula mais cedo, Amanda voltou pra casa de carona com a mãe de uma colega, já que o pai não atendia o celular. Percebeu que tinha um carro estranho na garagem e a casa estava toda fechada. Foi subindo pelas escadas devagar e ouviu barulhos estranhos vindo do quarto de seus pais. Olhou a fechadura e viu uma cena que criança nenhuma deveria: seu pai nu amarrado na cama, com os olhos vendados, sendo chicoteado por seu professor de Educação Física. Ficou inerte por um tempo, não pelo horror da cena e sim imaginando como poderia usar aquilo a seu favor. Com passos leves, foi até seu quarto e ficou fechada lá até o professor ir embora. Mais tarde, quando o pai se surpreendeu quando ela disse que veio mais cedo, Amanda fingiu que não tinha visto ou ouvido nada, dizendo que achou que não tinha ninguém em casa. No quarto, trancada, decidiu que contaria sim ao outro pai, mas só em um momento propício.
Acontece que os dois começaram a ficar cada vez mais ausentes. O que ela tinha visto com o professor quase não parava em casa. Um dia, ouviu na extensão a conversa dele com o professor.
- Preciso conversar com você sobre uma coisa muito importante para nós dois.
- O quê, querido? Pode falar.
- Não posso, estou em casa. Vamos ao Lago?
- Ótimo! No final de semana?
- Não posso. Pode ser terça-feira mesmo?
Amanda desligou o telefone. O pai ficava mais alegre a cada dia mais próxima de terça-feira, percebeu que começou a arrumar suas coisas discretamente. Na segunda, escondeu duas malas embaixo da cama e na terça-feira de manhã colocou todas as suas roupas nelas, antes que o outro pai chegasse de viagem. Também pegou sapatos, escova de dente, de cabelo, perfumes, enfim. Tudo que era dele e desse para levar em um carro. Chamou um táxi e partiu sem avisar, sem deixar bilhetes, nada. Ainda por cima deixando Amanda sozinha em casa. A menina ligou insistentemente para o outro pai, mas ele só chegou 45 minutos depois. Ela contou tudo, o que tinha visto antes, o telefonema, o pai fazendo a mala e partindo. Só que o pai não reagia, ficou sentado, sem dizer nada, parecia não se importar. Mas Amanda não queria deixar barato e ainda tinha seu poder de manipulação.
- Pai... tem mais uma coisa.
- O que é, filha?
- O professor... ele... as vezes ele fica me elogiando demais e...
- Fala, querida!
- Ele passou a mão em mim algumas vezes.
Isso foi o suficiente para que o pai levantasse, pegasse sua pistola escondida em cima do guarda-roupa e arrancasse com o carro, junto com Amanda, em direção ao Lago. No caminho, uma curva que fez, não conseguiu parar o carro antes de bater em outro que saía de uma garagem.
No momento da batida, tudo explodiu em branco e depois eu estava de volta à redoma castanha. Amanda estava lá também.
- Desmente tudo.
- Não!
- Vai desmentir sim. Você quer que eu te diga o que vai acontecer com seu pai se não desmentir?
Amanda começou a gritar e a chorar novamente, na esperança que a redoma diminuísse novamente, mas nada acontecia.
- Vai desmentir ou não?
- Tá bom, eu vou.
O castanho sumiu. Estava de volta ao Lago no mesmo momento em que nossos olhares se encontraram.
Capítulo XIX
- Não, pai!
- Amanda, volta pro carro, eu já disse.
- Era mentira pai. O que eu disse sobre o professor, era mentira.
- Não, Amanda. Não precisa ter medo.
- Eu tô falando sério, pai. Para com isso!
O homem baixou a arma.
- Desgraçado!
Amanda chorava. Seu pai, com olhar triste, foi até ela, a pegou no colo desajeitadamente e subiu a escada. Sentei no banco e o Victor sentou-se ao meu lado, todo molhado.
- O que você queria com ele?
- Vou terminar com ele. Mas ele tá muito atrasado.
- Ele não vem mais.
- Mesmo?
- Uhum.
- Sua mãe está morta.
- Já? Eu esperava que demorasse mais. Foi você?
- Não. Você sabe que isso não funciona em mim. Acho que foi seu pai.
- Pode ser. Vamos?
- Vamos.
O Victor foi só meu dali para frente