O Lago dos Corações Partidos - Parte I (Capítulos I a IX)
Capítulo I
Eu não agüentava mais estudar. Não que eu estivesse estudando, realmente, mas fingir estudar cansa mais do que fazê-lo de verdade. Eu gosto de estudar, só tinha acordado distraído. Nada de novo, já tinha até acostumado. Aliás, os dias de acordar distraído são aqueles que me fazem querer não ter acordado. E aquele discurso do Chaplin me deixava mesmo com sono. “I’m sorry, but I don’t want to be an...” Era de fome a distração e a Marina ainda não havia me ligado. “Emperor”. Meus olhos estavam começando a se fechar. “We want to live by each other's happiness…”. “Nós, quem?”, pensei. Acreditava que ninguém vivia pela minha. “You have the love of humanity in your hearts”. As pessoas já tinham se esquecido disso. “Let us fight for a world of reason, a world where science and progress will lead to all men's happiness”. Estava pronto a concordar com Chaplin, só para que ele me deixasse dormir um pouco. “Look up...” Para ver o celular tocando. Era mensagem. Com o susto, risquei o caderno, um risco reto. E aquele risco tinha sido a melhor coisa que eu fiz naquele dia. “A Carol vai comer com a gente hoje. Vamos ao Açaí novo, pode ser? O endereço está no mapa em anexo. Beijos, Marina”. Podia ser qualquer lugar, eu estava morrendo de fome. Abri o mapa. A lanchonete era nos Campos Elísios, longe da Universidade. Iria chegar cansado, não costumava pegar ônibus. Além do mais, estava com certeza com cara de nosso, cabelo desarrumado e com um “semi-pijama” que eu costumava vestir para ir para a Universidade. Iria me sentir Éponine em Ascot Gavotte. The rain in spain stays mainly on my own. Bem, estava com fome, iria de qualquer jeito. Respondi a mensagem e salvei. Não poderia me perder.
Tendo passado da portaria, com a mochila pesada, chequei de novo do endereço. Tenho esse costume de ter que ter sempre absolutamente certeza das coisas. É, estava no caminho certo. Não resisti a abrir uma das outras mensagem salvas. “Tô na cidade, vou ficar duas semanas. Quer me ver? Wes”. Já fazia três e eu não tinha respondido, sabia que não queria. Mas era melhor responder. “Quero”, respondi. Dei seis passos e a resposta veio: “Restaurante do Lago, 81 minutos”. Não sabia o que diabos ele queria dizer com “81 minutos”. Em uma hora e vinte (e um!) minutos não ía dar pra fazer os dois ao mesmo tempo, ainda mais a pé. Nem se eu pegasse ônibus, seriam três. Além do mais, nenhum chegaria lá com esse tempo. Era melhor avisar a Marina. “Vou me atrasar muito, vocês me esperam?”, enviei. Nove passos: “Esperamos. Se eu tivesse mais o que fazer, não almoçava com você todos os dias”. Já era um amor desde aquela época. Respondi ao Wes, então: “81+11”. Calculei que ia atrasar uns onze minutos. Não sabia como eu iria. Se eu voltasse pra casa, iria atrasar mais vinte minutos e claro que não iria pegar ônibus. Mas em casa, o Victor me levaria de carro, daria tempo até de tomar banho. Ficaria apresentável. Fui andando.
O carro do meu pai estava parado na frente da garagem de casa. O preto, combinando com o céu, contrastava com o verde dos gramados da rua, era até engraçado. Seria engraçado se a situação não fosse trágica. Era hábito de o meu pai ficar parado na frente de casa desde o divórcio. Fazia isso as quintas-feiras, as vezes nas segundas-feiras, mas nas terças-feiras, como hoje, era a primeira vez. Eu gostava, podia vê-lo mais vezes, mas minha mãe odiava. Não que ela dissesse, preferia ignorá-lo. Poderia até chamar a polícia, se quisesse, mas fingir que ele não estava ali doeria mais, ela sabia. E esse também é um resumo de como foi o casamento dos dois.
- Oi, pai.
- Voltou cedo.
- Hoje é terça-feira, volto esse horário.
- Ah, é mesmo. Já almoçou?
- Vou comer no Lago, depois vou pro Centro. Mamãe tá em casa?
- Comer no Lago com esse tempo? Saiu com um cara.
- É o Victor. Ele tá morando com a gente. De quinta-feira ele não vem pro almoço.
Capítulo II
Victor nasceu em um dia sol, muitos acreditam que isso é sinal de benção. A maioria das pessoas já ficaria feliz se seu filho nascesse em um dia de céu azul e nunca em um dia de nuvens cinzas, como fazia no dia em que se passou essa estória. Como no dia em que eu nasci. Geralmente eram nuvens brancas.
A vida de Victor foi uma benção, de fato. Nunca teve problemas de saúde, não pegou nem catapora quando criança. Nem uma gripe. Foi o que se chama de adolescente popular. Acontece que na cidade pequena em que cresceu, todo mundo era meio popular. Praticamente todos eram conhecidos de todos, mas ele era do grupo que fazia questão de ser melhor, ou pelo menos se considerar assim. Ele sempre foi bonito, cabelos pretos, olhos castanhos, alto. Jogava basquete. Corpo atlético de tanto puxar carroça, trabalhar no sítio do pai e nadar contra a correnteza. A noite fumava cigarro de palha com a família, mais tarde ía pro centro beber com os amigos, escondidos. O centro era menos populoso que o campo e de noite nada funcionava. Uma noite dessas, de bebedeira, desvirginou uma menina. Ela contaria ao pai, com certeza, teria que casar.
“Quando um homem achar uma moça virgem, que não for desposada, e pegar nela, e se deitar com ela, e forem apanhados, então o homem que se deitou com ela dará ao pai da moça cinquenta siclos de prata; e porquanto a humilhou, lhe será por mulher; não a poderá despedir em todos os seus dias.”
Mas Victor contou ao seu pai primeiro. Deixou o homem orgulhoso, mas esse sabia que não poderia manter o filho na cidade. Mandou-o pra capital estudar em colégio militar. Quando terminasse, voltaria, a cidade teria esquecido o caso. Victor tinha quinze anos nessa época. Eu nove. Mamãe trinta e três. Victor terminou os estudos e não voltou.
Capítulo III
- Quer que eu te leve pro Lago? Não é bom você ir sozinho.
- Eu ia pedir pra mamãe me levar, mas pode ser, já que ela não tá.
Dei a volta para entrar no carro.
- Não vai tomar banho?
- Tô sem a chave de casa.
- Eu ainda tenho. Pega, não vou precisar mesmo.
Não me espantava o fato de ele ainda guardar a chave de casa.
Teria que tomar banho rápido, mas queria lavar o cabelo. Estava sem xampu. Desliguei o chuveiro, enrolei a toalha no corpo e saí do banheiro, molhado mesmo. Fui ao banheiro do quarto da mamãe, para pegar o xampu do Victor. Nosso cabelo era parecido, poderíamos ser mesmo pai e filho, até. Bem, irmãos. No banheiro, as roupas dele estavam jogadas no chão, todo o resto estava impecavelmente arrumado, como sempre. O box estava seco. Estranhei o fato de eles terem saído sem tomar banho. Mas mamãe não confiava em empregados e era maníaca por limpeza, provavelmente limpou tudo, tomou banho e saiu, depois de secar o box. Já que iria demorar em lavar o cabelo, não custava nada demorar mais um pouco para aliviar a tensão. E as roupas do Victor foram de grande ajuda.
Saí do banho, me sequei, coloquei a roupa. Todo limpinho para provavelmente me sujar no caminho do Lago. As nuvens estavam cinza, o dia frio e escuro. Entrei no carro e fomos.
Capítulo IV
O colégio não foi tão duro quanto Victor pensava que seria. Ele é que ficava duro por estudar só com meninos. Aliviava-se com a própria mão. No terceiro ano, fazia-o com a de outros - de outro na verdade. O melhor atirador do primeiro ano (que se tornou o melhor de todos os anos, quando a turma de Victor terminou o colégio) sabia como segurar uma pistola. Por mais cinquenta ele encostava os lábios e esperava o tiro, e só. O dinheiro acabou junto com os estudos, mas Victor não queria voltar para o interior, então teria que trabalhar. Como sempre foi bonito, queria o jeito mais fácil. Muitos dos seus professores pagariam o dobro do que ele ganharia lá fora pra ter um de seus alunos na cama. Além do mais, com prazerosa tortura física, se vingava da tortura psicológica executada pelos professores nesses três anos. Que aluno não iria querer?
Foi assim por quatro anos. Sem pagar aluguel, nem contas, nem o que comia Victor pagava. Seus únicos gastos eram com a faculdade. Virou profissional de Educação Física: de manhã dava aula para alunos de 5ª a 8ª série, já a noite era personal trainner em uma academia de ginástica. No primeiro conheceu seu amante, no segundo, minha mãe.
Capítulo V
Não sei quem estava mais distraído, eu ou meu pai. E ambos pareciam querer chegar com pressa. Ele freou o carro. Outro saía de uma garagem à esquerda, parecia estar com pressa, também. No susto, os dois pararam, meu pai buzinou e ela pediu desculpas. “Vaca!”, eu queria gritar, mas me contive. O carro dela ficou metade na calçada, metade na rua. Outro carro veio em alta velocidade da esquerda, na rua que cortava a que estávamos. Passou do nosso lado, entortando o retrovisor esquerdo. Não teve tempo de parar e acertou o carro que saía da garagem – agora parado – em cheio. Metade da parte dianteira do carro entrou no outro, seria impossível a motorista ter sobrevivido. O homem que dirigia o carro desceu trêmulo, tinha cabelos grisalhos, mas não era velho e estava de óculos escuros. A menina que estava do lado do carona também desceu, vestia uma roupa estranhamente chamativa para sua idade e para o frio que fazia. Agarrou as pernas do homem, com certeza o pai dela. Meu pai não quis descer, achei estranho, já foi saindo com o carro.
- Não vai esperar?
- Esperar o quê?
- Ué, a gente viu tudo, o acidente foi feio. Melhor esperar a polícia.
- Polícia? Melhor não. Já tô atrasado. Nós, nós estamos. Você tá, não tá?
- É, tô.
Capítulo VI
Uma das alunas do Victor, Amanda, causava alguns problemas em aula. Não se vestia com o uniforme apropriado para Educação Física e isso era uma grande falta para o colégio. A diretoria exigiu que o professor conversasse com os pais da menina. Victor não gostou muito, mas logo mudou de ideia quando o pai entrou em seu gabinete. Não o imaginava tão novo, nem que ficaria tão bem em um traje social. A conversa seria prazerosa, pelo menos na mente de Victor. Foi uma conversa breve, o pai compreendeu, mas a escola havia exigido a presença de ambos os pais. A mãe saberia conversar melhor com a menina, segundo a diretora.
- Senhor Castro, sua mulher não pode vir?
- Me desculpe, professor, eu não sou casado.
- Imagina, eu que peço perdão. Nós só temos o contato do senhor na ficha da Amanda, o senhor sabe como eu poderia contatar a mãe dela?
- É um assunto delicado. Minha filha é adotiva, eu e o meu companheiro a adotamos quando ele tinha três anos. Esse é um colégio conservador, talvez não aceitasse a Amanda se soubesse disso. Mas vejo que você é mais compreensivo que a diretoria.
- Claro, eu entendo, senhor. Conversem com sua filha, então. E... Fique com meu telefone, pode me ligar se tiver problemas.
Carlos Castro ligou no mesmo dia e treparam na mesma semana. Depois nas semanas e nos meses seguintes. O outro pai de Amanda passava muito tempo fora e Carlos ficava em casa, a roupa social tinha sido só para a ocasião e depois para fantasia dos dois. Amanda se vestia como queria nas aulas de Educação Física.
Capítulo VII
A polícia não demorou, logo vinha pela mesma avenida, não outra mão. Não tinha reparado antes, mas meu pai dirigia de óculos. Era estranho não ter que usar os meus, depois de tanto tempo, sinto falta deles. “Melhor operar agora, essas coisas pioram com a idade”, minha mãe me convenceu assim, meu pai foi contra, mas ela nunca o escutava, mesmo. O caminho era longo e eu não tinha tanto assunto, assim, para conversar com o meu pai. O silêncio e o caminho me deixavam tenso, quase pensava em desistir. Mas já estava ali, não poderia voltar atrás. Além do mais, a cidade já tinha passado, era só chegar à rampa de terra.
Capítulo VIII
O caso do Victor com a mamãe foi diferente do outro. Eles treparam primeiro e depois Victor conheceu o filho dela. Eu, no caso. E relacionamento não começou por nada de diferente. Personal trainner forte, mulher mais velha, rica. Ela tinha acabado de se divorciar, precisava estar inteira outra vez, por isso começou a malhar.
A primeira vez que ele me comeu, os dois ainda namoravam. Eu não sabia que ele iria passar o final de semana em casa. Fui para uma festa sexta-feira à noite, voltei tarde, minha mãe estava saindo para trabalhar na confeitaria. Trabalhava só de manhã, mas todos os dias. Acordei cedo, relativamente, e ainda estava de ressaca, muito mal do estômago. Levantei pra tomar café, a dor não me deixava dormir. Um banho era uma boa ideia, eu sempre conseguia dormir melhor depois de um banho. Estava sem xampu, por isso saí pelado do banheiro, não acendi a luz para passar pelo quart, com a ressaca, ficaria com os olhos irritados. Além disso, não faria diferença se estivesse escuro ou claro, sem meus óculos eu não enxergaria nada, era melhor confiar no meu instinto. Entrei no banheiro e encostei a porta, só por costume. As roupas do Victor estavam jogadas no chão, naquela época já era assim. Nada de estranho, desde o começo ele deixava as roupas sujas em casa para lavar. Não resisti à tentação de peg-a-las, seria mais fácil alimentar a imaginação. Encostado na pia, de olhos fechados, me assustei com o barulho da porta. Ele entrou só de cueca, com ereção matinal. Isso eu enxerguei muito bem, foi a primeira coisa que eu reparei. E ele reparou que eu reparei, e nas roupas que eu tinha na mão. Ele me agarrou e o resto é no que eu penso até hoje quando ele ainda deixa a roupa no banheiro. Só que eu passei a levar a roupa para o banheiro e a me trancar lá, checando várias vezes se a porta estava trancada. Adquiri o costume não pelo fato de não querer que ele me coma, o quê, aliás, ele fez várias outras vezes. Só não gosto de ser pego de surpresa.
Minha mãe e ele se casaram, Victor veio morar com a gente. E várias coisas começaram a acontecer com frequência, como a roupa largada no banheiro.
Capítulo IX
- Ele te trata bem?
- Quem?
- Esse tal de Victor.
- Muito. Bem.
- Mais que eu?
- É diferente. Você é meu pai.
- Ele é mais novo.
- Que diferença faz?
- A diferença é que é mais fácil você gostar dele do que de mim. Quem você escolheria entre mim e ele?
- Os dois. Não posso ter os dois? Pois não tenho os dois?
- Pode. Mas se você tivesse que escolher entre um dos dois?
A rampa chegou e o fato do carro não subi-la foi desculpa para eu não ter de responder. Tentou subir pela segunda vez e nada. O carro parecia estar pesado.
- Estranho.
- Estranho, o quê? É o pneu, é. O pneu tá ruim.
Terceira tentativa e o carro ainda não subia.
- Parece que tá pesado.
- O quê? O carro? Não, não. É assim mesmo. Vou subir de ré.
Virou o carro, eu não achava que iria adiantar. Foi subindo, mesmo, depois virou o carro outra vez. Faltava pouco para chegar até a porteira, tinha que continuar calmo. Pedi para o meu pai parar, quando chegamos. Ele queria me levar até o lago, não queria me deixar na porteira.
- De carro é mais caro, eu me viro sozinho.
- É mais caro, só que mais seguro.
Não era, não.
- Pai, eu nasci em um dia como esse.
Meus olhos refletiam nos óculos dele. Ele desviou o olhar, me disse para ligar se tivesse problemas e me deixou. Perto da porteira estavam os homens armados, vários deles. Muita coisa tinha mudado desde a última vez que eu tinha passado por ali. A porteira não era mais porteira, agora era de ferro e estava trancada. A árvore que costumava fazer sombra estava sem folhas e toda furada de bala. Bem verdade que não havia tantos dias de sol como antigamente, mas os homens agora usavam lonas gigantes para se protegerem, provavelmente, das chuvas. Antes usavam tocos de madeira, agora se sentavam em cadeiras de plástico. Meu celular tocou, era uma mensagem. “+2. Wes”. Não entendi muito bem, por que mais dois minutos? Não conseguia imaginar o porquê de alguém avisar que iria atrasar dois minutos. Como tinha me distraído com o celular, não percebi que um dos caras armados havia se aproximado.
- Vinte e cinco a pé, oitenta de trem, trezentos de carro.
“A pé” significava que eu iria a pé, com um deles armado me acompanhando por todo o caminho, provavelmente um dos grandes, o maior perigo pelo resto da estrada, no entanto, eram eles próprios. “Trem” não era um trem de verdade, era um carro oferecido por eles, mas eu teria que saber dirigir, pois só o carro e um homem armado estavam inclusos, um motorista era pago à parte. Pagar trezentos para atravessar de carro era a maior besteira, eles riscariam a lataria, furariam os pneus e ficariam com o dinheiro.
- Vou sozinho.
- Vai nada.
- Sou obrigado a pagar agora?
- Não é obrigado, não. Quero ver chegar vivo até o Lago.
- Eu me viro.
Nossos olhares se encontraram e o dele começou a falar: vinte e três anos. Não era casado, mas morava junto uma moça. Criava um filho que não é dele. Provavelmente nem sabia disso. Pensei ter visto-o apanhando do pai, mas não, o pai havia morrido, a mãe cuidou de três filhos, sozinha. Era o do meio. O irmão mais velho era o alcoólatra que batia na mãe, depois a comia na frente dos menores - talvez o menor fosse filho e irmão do mais velho -, depois de terminar com a mãe, ainda tinha tempo de cuidar dos dois irmãos mais novos. Cresceu apanhando e sendo estuprado todos os dias. Passou a roubar. Nunca gastou: passava fome, mas não gastava o dinheiro roubado. Com quinze anos, juntou as economias e deu entrada em um colégio militar. Realizou dois sonhos: aprender a atirar e raspar a cabeça. Ganhava dinheiro com trabalhos alternativos lá dentro e assim pagava as mensalidades. Tornou-se o melhor atirador da sua época. Saiu do colégio, matou o irmão e se juntou ao bando. Não era um filho que ele criava, era o irmão mais novo.
Ele percebeu que eu tinha nascido em um dia como aquele.
- Desculpa, pode ir. Eu destranco o portão pra você.
Não conseguiu destrancar. Disse que só conseguiria se eu pagasse. Não acreditei de pronto, mas parecia verdade. Segundo ele, só daria para abrir com um código, gerado através do pagamento. Quanta tecnologia para uma estrada de terra. Eu ainda poderia dar a volta, mas seria impossível chegar a tempo e o muro provavelmente cercava toda a região. Eu não iria pagar. Mesmo sabendo das minhas poucas habilidades, decidi que iria pular o portão. Subi nele com grande dificuldade, os homens riam. Se eu perceber, a manga da blusa ficou enroscada em uma das lanças. Pulei para o chão, a manga rasgou um pouco e a blusa continuou ficou enroscada, lá em cima, os homens riam. Puxei a blusa e a manga rasgou mais ainda, explosão de risos. Bando de idiotas. Coloquei a blusa de volta, mesmo rasgada, e me virei para continuar o caminho. Nesse momento, o barulho de um tiro fez tremer até o muro de cimento. Sabendo que deveria ter pagado, passei a mão na nunca para sentir o sangue, mas não sangrava. Nenhuma parte do meu corpo sangrava. Virei-me e vi o cano da espingarda fumegando. O cara que havia vindo falar comigo acertou o companheiro bem no meio da testa, a cinquenta metros dele. Ele continuava sendo o melhor atirador, acertou para matar. As risadas pararam instantaneamente.
Comecei a andar, sem medo, sabia que nada em afetaria. Caminhei o mais rápido que pude, até o topo do morro, poderia descer com mais calma, assim. Apesar do cansaço, eu não estava suado, provavelmente por causa do vento frio. A região era descampada, por isso ventava bastante. Minha roupa, já rasgada, começou a ficar suja da terra trazida pelo vento. Eu não queria aparecer assim, todo sujo de terra. Tirei a blusa e a camiseta ao mesmo tempo, uma ficou dentro da outra, dobrei-as com dificuldade e coloquei dentro da calça, ficou bastante desconfortável para andar. Depois dobrei a barra da calça até a altura dos joelhos. O tênis ficaria sujo, não tinha jeito. Desci o morro confiante, nada me afetaria mesmo. De longe já dava ver outra coisa nova: havia uma espécie de quiosque e alguns chalés de madeira logo quando a terra acabava e a grama começava. Tinha certeza que algo ali iria me atrasar. Antes, a grama era sinal de que o Lago estava perto, era só atravessar o playground abandonado e descer a encosta até o vale. Coloquei a camiseta e a blusa, desdobrei as barras da calça. A placa de entrada do lugar dizia “Fronteira”.