O elevador

O elevador

Às vezes, tenho a impressão de que as paredes do elevador se aproximam e me acolhem com delicada impaciência. Passam por meu corpo faminto e suado e me dizem coisas desconexas, que somente elas entendem. Seguro-as com força: as mãos espalmadas, o peito encostado em suas carnes metálicas. Sinto um leve arrepio. Não consigo afastar-me, como se estivesse irremediavelmente preso, quase fundido em suas fibras e entranhas. O elevador para no décimo andar. Um homem entra e finge não me ver. Ao mesmo tempo, as paredes se afastam, tal como eu, que me encosto no ângulo da esquerda. Ali, a minha visão é privilegiada. Olho em torno, retribuindo a distração. Ele abre uma maleta, retira um netbook e examina qualquer coisa, sem muita atenção. Observo-o firmar os olhos na direção da porta. Parece ansioso. Reparo que tem olhos claros e frios. Talvez seja um executivo, um professor de línguas, um advogado. Não é, porém, um cidadão de bem. Percebo a aflição que paira inquieta em seus olhos. Um olhar oblíquo, dissimulado. As mãos magras e ossudas. De vez em quando, lambe os lábios, ressequidos, e se eu não estivesse ali, talvez lambesse os dedos. Ou coçasse a cabeça, ou limpasse o nariz com o mindinho. Sei que se comporta em atitude imóvel, porque estou aqui, bem a sua frente. O elevador para no vigésimo andar. Ele tenta abrir a porta. Espalma as mãos, com força, mas nada acontece. Emperrada. Decidida. Mais forte do que ele. Às escondidas, dou um meio sorriso. Sei como são estas coisas e como acabam. Ele empurra com o joelho, esfola a perna. Debate-se na parede. Então, se volta para mim, aturdido. Pergunta: ― que está acontecendo? – não respondo, também tenho meus caprichos. Aquela sofreguidão na fala, a total insegurança, o medo estampado no rosto, me deixam quase feliz.

Ele me olha cada vez mais apavorado. Aperta todos os botões. Grita por socorro. Por fim, eu vaticino, despreocupado: ― Já estou acostumado.

__ Acostumado com o que? Que quer dizer?

__ Que tudo é possível, quando se está assim, sozinho dentro desta caixa, não há como sair, escapar, fugir. É inevitável.

__ Como assim? Por que diz isso? Eu quero sair daqui, imediatamente! Pelo amor de Deus, eu quero sair! Aqui dentro – afirma ofegante – eu fico louco!

― É tudo uma questão de hábito. Com o tempo, tudo fica normal.

__ Como “normal”?! Nada é normal preso aqui dentro. Escuta, eu quero sair, dessa porra! Pelo amor de Deus!

__ Sinto muito, meu amigo. Não posso fazer nada.

__ Por que está tão tranquilo? Por que não pede ajuda?

__ Porque nunca mais sairemos daqui. Estamos no vigésimo, não?

__ E daí, você é louco! Claro que vou sair, imediatamente. Alguém tem que nos ajudar! Socorro! Socorro! – dá pontapés na porta, em absoluto desespero.

__ Não adianta, ninguém vai ouvir você daqui!

__ Não diga bobagens! É só uma questão de tempo. Faça alguma coisa, você também!

__ Não posso, porque chegamos ao vigésimo!

__ O que isso tem a ver? Não me interessa em que andar estou, quero é sair dessa merda, não ta me entendendo?

__ Uma pena, que você não possa entender.

__ Então me explique, pelo amor de Deus! O que quer dizer com isso?

__ Que o vigésimo não existe! Do décimo nono, saltamos para o 21.

__ Como assim?

__ Muito simples. O vigésimo é uma porta sem saída, para o nada. Quando chegamos aqui, devemos ser pacientes e esperar, apenas.

__ Você é louco, não vou entrar na sua insanidade! Vou pedir socorro pelo celular, vou ligar para um amigo, pra polícia, pra minha mulher, alguém que resolva esta merda!

__ Perda de tempo. Aqui não há conexão. A conexão é outra. O mundo é outro.

Ele tecla um número com os dedos trêmulos. Por certo, o sofrimento ainda nem começou, mas aos poucos se dará conta que não há como fugir. As coisas são o que são e acontecem de maneira determinada. Não há o que fazer. Gosto de ver, o quanto a fisionomia deste homem mudou, do olhar frio e dissimulado, passa a ser atarantado, um animal acuado na armadilha. Pânico em suas atitudes, refletindo-se na postura desequilibrada, que se espalha pelo piso do elevador. Sei que não devo ajudá-lo, é preciso que absorva a realidade. Sua mente deve encher-se do novo. Não adianta esbravejar porque o sinal do celular não funciona. Nem se apavorar com o temor da prisão. Isso é somente o começo.

***

Iolanda desligou o celular e desceu as escadas lentamente. Na rua, um silêncio absurdo parecia isolar a praça do resto do mundo. Espiou pela porta do prédio e viu o ambiente amplo, completamente vazio. Sombras de árvores deitavam em bancos de pedra. Alguns caminhos irregulares. Afastou a porta devagar, deslocando-se em ritmo lento pela calçada. Sôfrega. Um cansaço parecia acumular-se nos ombros. Aflita dirigiu-se à praça, atravessando rapidamente a avenida deserta. Que horas seriam? Mais de três horas num dia ermo de semana, sem qualquer possibilidade de movimento. Cães ladravam ao longe e uma pequena brisa começava a sacudir as folhas das árvores. Olhou para o alto. A lua desaparecia lenta, por entre nuvens e o céu tomava um negrume extraordinário. Se não fossem as luzes da cidade, tudo estaria numa escuridão total.

Sentia-se estranhamente tranquila apesar de tudo. Nem mesmo aquele deserto humano a assustava, não fosse o fato de precisar voltar para casa. Mas faria isso? Esperaria aquele elevador infinito que a aturdia, que a impelia a pensar sempre a mesma coisa? Até quando continuará tão solitária ao lado daquele homem de olhar frio e dissimulado? Se tivesse coragem, conversaria com o ascensorista para tomar uma atitude extrema. Ele sim, sabia portar-se como um gentleman, desses que não existem mais hoje em dia. Ah, se tivesse coragem, por certo, Ricardo não atravessaria a porta de casa. Nunca mais alcançaria o vigésimo primeiro andar.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 11/11/2011
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