O pesadelo de um servidor público.

Era mais um final de dia após uma extenuante rotina de trabalho. Sérgio sabia que ao chegar à sua casa poderia confortar-se com suas diversões passageiras e triviais. Nada mais queria além do que poder sentar-se em seu sofá, e entreter-se com o primeiro programa humorístico da Tv, e, mais tarde, poder assistir o clássico de futebol na televisão. Sérgio era um homem solitário. Mais um daqueles insignificantes e esquecidos funcionários de uma repartição pública. Uma instituição conhecida, na qual se embaralhava toda a burocracia governamental, como um jogo de cartas em que, finalmente, não se sabe se o vencedor é mais um daqueles conhecidos burocratas governamentais, ou alguma instituição desconhecida, que está camuflada de toda sociedade comum, e que dirige tudo de lá da penumbra dos negócios obscuros, das relações frias e previamente calculadas, das hipóteses sem evidências, dos corolários sem solução.

Algo naquele dia não estava normal. Não, não estava... Apesar de haver sido um dia comum, o que justamente intrigava Sérgio era esta simplicidade incomum àquelas toneladas de documentos, processos, notas fiscais, e petições que o atormentavam. Ele não havia tido problemas neste dia, e isto o incomodava, pois como um funcionário correto e eficiente, Sérgio não estava acostumado com estas facilidades tão simplificadoras. Ele sempre tinha de quebrar a cabeça com os documentos mais obscuros, com as petições mais empoeiradas, e, quase sempre, procurar os supostos responsáveis por toda aquela parafernália burocrática. Eram ligações sem fim, horários perdidos com funcionários ranzinzas e mal encarados, em secretárias eletrônicas, em agências do correio, em gigantescos depósitos recheados de prateleiras metálicas com documentos e, por fim, quando Sérgio conseguia esclarecer quem eram os responsáveis por aquele processo, tinha de muitas vezes aturar rispidez, grosseria e calúnia da pior espécie. Estranhamente neste dia ele não havia tido este tipo de problema. Isto o atormentava. Se a calmaria anuncia uma tormenta, Sérgio sabia. Mas ele ignorava.

Sérgio chegou ao seu apartamento, e pode parar sua moto na rua, ao lado de um poste. A luz do poste se encontrava meio falha, fosca. Ao entrar em seu prédio, acionou e esperou o elevador, que em poucos instantes chegou, com uma trepides insistentemente irritante. Adentrou e apertou o botão de seu andar, o primeiro. Uma pequena lágrima escorreu em seu rosto. Abriu a porta de seu apartamento. A primeira coisa que reparou era que alguns móveis tinham trocado de posição. De fato, ele o havia feito uns dias antes, mas a consciência da rotina não o fez notar – simplesmente aquele apartamento estava desorganizado. As lâmpadas de alguns cômodos haviam queimado há bastante tempo, e ele não fez questão de trocá-las. Já a grande janela que ficava na sala estava encoberta por uma fina cortina, branca, macia, que era aprumada pela brisa noturna que adentrava aquele apartamento, e que pouco interceptava toda aquela luz vinda da rua que iluminava o ambiente. Ele trocou de roupa rapidamente. Foi até a cozinha pegar um copo de água; o copo se encontrava em cima da mesa. Colocou água gelada de uma vasilha e tomou em pequenos goles. A cada gole, dava pequenos sussurros e repetia a dose, até acabar.

Sérgio rumou para a cama desarrumada e deitou com a cabeça em direção ao lado esquerdo, olhando para a janela que dava direto para a rua onde ele podia ver no horizonte, a luz fosca daquele poste. Fechou os olhos. Por algum tempo fez força para tentar cochilar, mas não conseguia. Foi perdendo a paciência, rolando pela cama, puxando o lençol, até que repentinamente perdeu a paciência de vez; abriu os olhos: havia se passado bastante tempo desde o momento que tentou dormir até aquele instante. Virou a cabeça para o lado esquerdo olhando para a luz do poste - aos poucos aquela luz fosca, gélida e solitária foi adentrando a sua mente como uma hipnose, ou mesmo como uma abdução. Era estranho como aquela luz era envolvente, como era fria e fulminante; por um momento Sérgio entrou em estado de transe. Olhar para aquela fria luz branca era como uma vertigem, uma miragem, como um pesadelo intenso, embora inicialmente não houvesse personagens havia o pior, uma sensação de vazio como uma dimensão paralela onde o tudo e o nada ao mesmo tempo se encontravam para formar o desconhecido, o intangível. Como no pior de seus pesadelos, como na pior de suas experiências de vida, Sérgio queria rapidamente sair daquela posição, mas não havia forças, não havia controle de seu corpo, de sua percepção; não havia domínio algum de seus sentidos. Era como se estivesse paralisado, em estado de choque e nada poderia fazer.

A ilusão assolou a sua mente, e por um momento Sérgio visualizou uma linda senhorita. Ela surgia repentinamente daquela luz, podia notar sua face em sua mente, podia tocar suas belas e macias mãos numa ilusão outrora estranha, por vezes delinqüente, mas acima de tudo fascinante. Essa ilusão era como uma droga, a morfina dos sonhos de Sérgio, era como o remédio contra sua vida miserável. Mas como um trovão, surgiu algo misterioso: manchas negras que começaram pequenas e desprezíveis naquela dimensão fantasiosa aos poucos aumentavam e ganhavam o formato de figuras. Essas imagens não lhe eram estranhas, porém, ainda não lhe eram reconhecíveis. Quando de repente um estalo surgiu em sua mente e pode perceber do que se tratava. Processos. Processos que surgiam insistentemente, em bandos, flutuando pelo ar, em fichários empoeirados, em arquivos enferrujados que arremessavam gavetas e os derramavam às hordas, em carrinhos de mãos que carregavam toneladas deles, em atas volumosas em rolos, que ao desenrolar chegavam a ponto de desaparecer no horizonte tamanho era o comprimento das anotações. Assustadoramente, aquela bela senhorita havia se tornado um burocrata gordo e ranzinza vestindo um vistoso terno, que surgia como um monstro arrogante, que lhe apontava o dedo e punha-se a gargalhar de Sérgio, que parecia querer esmagá-lo com suas gigantescas mãos, aquele ser nefasto e isolado que não podia se mover, não podia falar, podia apenas observar tudo àquilo como um espectador insignificante em um teatro fantástico. Em certo momento surgiu uma gigantesca mancha negra, que como um buraco negro absorvia tudo para si, inclusive todos aqueles documentos que o infernizavam insistentemente. Tudo aquilo havia se tornado um gigantesco redemoinho que ia aumentando de tamanho conforme documentos e processos eram absorvidos na sua altura e comprimento, até serem sugados pela mancha obscura, que parecia diminuir conforme mastigava aquelas atas de documentação. Toda aquela situação passou a ser insana, a imagem de todos aqueles documentos desapareceu, e apenas a figura daquele burocrata arrogante lhe vinha à mente. De repente toda essa fascinante e psicótica ilusão desapareceu e apenas o sentimento de vazio sobrou.

Aos poucos Sérgio conseguiu recuperar a sua consciência, retomar suas forças, podia já sentir algum controle de seus sentidos, escutar sua respiração ofegante, notar seus punhos apertando fortemente o lençol, e perceber que estava com os pés frios e muitos calafrios adentravam seu corpo. Tomando consciência completa de seus sentidos, notou que muitos minutos haviam passado neste estado de transe; estava exausto, e como num piscar de olhos, finalmente dormiu.

Ao acordar, Sérgio sentiu que havia tido um tremendo pesadelo nesta noite. Ele não se lembrava de detalhes, mas, inconscientemente, sabia que algo assustador havia ocorrido. Ele pode ligar a sua moto, e rumar para o seu trivial e sensato destino. Durante o trajeto, Sérgio tentava entender aquele algo confuso que, interiormente, parecia o estar sufocando.

Ao chegar à repartição, Sérgio cumprimentou o guarda da portaria como rotineiramente fazia. Logo ele pode pegar o elevador, e chegar ao andar em que trabalhava, onde pode guardar suas coisas naquele minúsculo biombo em que se situava. Bem ao lado de seu computador havia um calhamaço de documentos, contendo processos atrasados e desconhecidos que seu chefe exigia ter esclarecidos até o final do dia. Sérgio sabia disso. Mas Sérgio, estranhamente como nunca havia feito em seu serviço, ignorava tudo aquilo.

De repente Sérgio viu o Office-Boy de seu setor correndo na sua direção. Ele estava suado e ofegante, e aparentemente muito assustado. Sérgio perguntou o que havia ocorrido. O Office-Boy nem mesmo se explicou, logo o conduziu até o gigantesco depósito, no térreo, onde se amontoavam em pilhas todos os documentos daquela repartição, em arquivos e prateleiras formando corredores sem fim. Por lá estavam seu chefe e muitos dos outros funcionários daquele lugar. Todos se fitavam perplexos. Eles cochichavam entre si, e tentavam inventar explicações. Os mais engraçadinhos davam risadinhas de escárnio e detinham certo ar de ironia. O chefe da repartição possuía uma expressão de fúria em seu rosto. Franzindo o cenho e argumentado para todos de modo severo ele queria explicações, pois aquele depósito se encontrava absolutamente vazio.

Paulo Tasso Diniz Filho
Enviado por Paulo Tasso Diniz Filho em 07/10/2011
Reeditado em 09/10/2011
Código do texto: T3262863
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