O sexo dos esqueletos
– Olá?
– ...
– Oi?
– Oi. Interjeição. Palavra que serve de saudação informal e/ou jovial. Indica, ainda, espanto, chamamento, resposta a um chamado ou, na forma interrogativa, o não entendimento do que foi dito.
– Como?
– Quer que repita?
– Não! Quero entender o que quer dizer!
– Ora, já disse tudo o que queria da mais clara forma possível! Se não entendeu, eu vou repetir!
– Não! Não precisa! Eu entendi. Quem é você?
– Por que quer saber quem sou se não sabes nem quem és?
– Como não? Eu sou... sou... Meu nome é... Paulo, eu acho... Ou seria Pedro? Não é possível! Como posso ter esquecido meu próprio nome?
– Nomes são apenas palavras, não têm importância.
– Sim! Tem razão! Ainda me lembro quem sou, não é?
– Não... Você não se lembrará de quem é... ou foi...
– Quem fui? O que quer dizer? Onde estou? Por que está tudo escuro aqui?
– Escuro? Aqui não é escuro. Nem claro. Nem coisa alguma.
– Por que não vejo? Estou cego?
– Você me escutou? Aqui não está claro também. Olhos não lhe prestam mais...
– Onde é “aqui”?
– Esforce-se para se lembrar tudo o que ainda pode, pois logo se esquecerá disso também.
– Não pode ser!
– Será que todos que aqui chegam dizem isso? Queria me lembrar do que eu disse...
– Eu... eu estou morto?
– Morto, inexistente, perdido... Tanto faz...
– Claro que não! Há uma grande diferença! Já não tenho vida!
– E a teve algum dia?
– Sim!
– Então me conte sobre sua vida!
– Eu... Como pode ser? Eu não me lembro!
– Que surpresa...
– Mas... Mas! Eu tenho certeza que tive uma vida! Morri velho inclusive... Ou velha...
– Não faz diferença... Aqui, a primeira coisa que acontece é o esquecimento.
– E onde é aqui?
– Não sei se é um “onde”... Ou um “quando”... Ou um “como”, ou um “quê”, ou um “porquê”...
– Isso é o inferno!
– Não existe tal coisa...
– Ser condenado a esquecer tudo e a viver sem sentir coisa alguma não me parece coisa de Deus...
– Tampouco existe tal coisa. Pelo menos, eu acho.
– Já viste tudo o que existe?
– Aqui só há coisas que não existem.
– Não existo?
– Não mais.
– Isso é horrível!
– Você se acostuma...
– Você está aqui há muito tempo?
– Tempo é outra coisa que não existe... Estou aqui há séculos ou há segundos. Verá que é difícil medir...
– Como morreu?
– Será que eu vou ter que repetir que aqui não existe lembrança?
– Já repetiu... E já percebi que não me lembro mais de como morri.
– Que importa? Não poderá mudar o fato. Além disso, você perdeu tudo daquela vida.
– Tudo não! Ainda sou eu, mesmo que eu não saiba o que isso significa.
– Logo perderá isso também. Tudo o que mantive foram as palavras.
– Usarei elas então para continuar sendo quem sou!
– Pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose.
– O quê?
– Não conseguirá usar as palavras para esse fim. Saberá usar palavras que nunca ouviu, sem saber nem o que significam. Idiomas também aqui não têm valor.
– Então...
– Então o quê?
– Não posso ser nada?
– Ser é uma coisa que eu acho que não existe, mas ainda não terminei minha pesquisa.
– Você fica pesquisando o que existe e o que não existe?
– Não há muito o que fazer aqui...
– Não vejo, não ouço, não cheiro, não toco, não respiro, não sinto meu corpo, nem sei se penso... Não há nada o que fazer aqui.
– Basicamente...
– Olá?
– Outro?
– Outro...
– Quem está aí? Por que está tudo escuro?
– Não vou ter paciência para explicar para esse. Adeus.
– Espere!
– O que é?
– Podemos nos mover?
– Espaço não existe. Ignoro o que está a minha volta e procuro afastar meu rascunho de consciência do que estar ao redor. Só assim há movimento por aqui.
– Nos afastamos do novo morto?
– Eu afastei nós dois. Ignorei-o e te fiz ignorá-lo também.
– Entendi. Do contrário, ficamos à deriva?
– Do contrário, guiamo-nos à loucura. Acredite quando digo que você não desejaria deixar de ignorar tudo que aqui não existe.
– Ficamos nisso então: ignorar...
– Aprendeste!
– Por que ora me chamas de “tu”, ora de “você”?
– Por que te importas?
– Não sei...
– Então também não sei.
– ...
– ...
– ...
– ...
– Não gosto desse silêncio.
– Ainda está aí? Achei que te tinha ignorado sem querer.
– Poderia eu ter fugido.
– Fugirias?
– Não.
– Então não poderia ter fugido.
– Raciocínio complicado o seu.
– Aqui é tudo muito complicado. Você acaba se tornando complicado também.
– Somos espíritos? Almas? Fantasmas?
– É uma definição. Definições é tudo que nos resta.
– E sentimentos?
– Sente alguma coisa?
– Não tenho certeza...
– Então eu me vou... Tenho pesquisas a fazer...
– Está atrasado?
– Tempo não...
– ... não existe. Já sei!
– Ótimo! Vou-me então!
– Não vá!
– Por que não?
– Lembra que eu disse que sentia algo?
– Você não disse isso. Ou já me foi a lembrança.
– Digo-o agora.
– E o que sentes?
– Acho que te amo.
– Não amas.
– Por que não?
– Não podes! Não existe amor também!
– Pode não existir para você, mas para mim...
– Não podes amar aqui! Aqui, todas as almas são gêmeas.
– ...
– Não entende? Não há homens, mulheres, personalidades, existências. Somos todos consciências erodidas a ruínas. Sem sentidos, sentimentos ou capacidades. Qual o sentido de amar, quando não se sente nada ao fazê-lo?
– Tem razão... Não te amo afinal.
– Que pena. Gostaria de ser amado.
– Isso é um sentimento?
– Não. É que seria bom para minha pesquisa.
– Essa pesquisa é tudo que te importa?
– Melhor do que não ter com que me importar.
– E não seria bom uma companhia?
– Não faz diferença.
– Tenho medo de ficar sozinho.
– Se eu decidir te ignorar, não terás escolha.
– Faria isso?
– Estou prestes a fazê-lo.
– Não o faça!
– Por que não?
– Já disse que tenho medo.
– Mais um motivo para fazê-lo.
– Que sem graça!
– Não estou gracejando!
– Quer dizer que estou morto?
– O termo inexistente é melhor aplicado.
– Que conclusão idiota!
– Qual?
– Tudo isso porque não há vida após a morte...
– Concluíste errado.
– Por quê?
– A conclusão é que só há morte após a vida.
– Há quanto tempo nos falamos? Dez minutos? Quinze?
– Eu diria entre três e quatro séculos. Já disse que o tempo não existe...
– Já está me chateando essa sua apatia.
– Ótimo! Já não tens medo de ficar sozinho. Adeus!
– Não! Não foi o que eu quis dizer!
– ...
– Ei!
– ...
– Pesquisador!
– ...
– Droga! Me abandonou! Não deverias abandonar uma dama assim. Ou um cavalheiro...? Uma pessoa!
– Olá?
– Alguém para conversar!
– Quem está aí? O que aconteceu?
– Você morreu e não vai se lembrar de nada para o resto de sua inexistência.
– Como?
– Você está morto! Tempo, espaço, deus e amor não existem!
– Mas...
– Vamos passear por aí!
– Quem é você?
– Meu nome é Ninguém.
– Por que não lembro meu nome?
– Dê-se um nome e comece uma nova vida.
– Mas você disse que eu morri.
– Acho que é para isso que serve a morte...