A Morte Veste Verde!
O musgo começou a crescer na casa de Dona Joaquina e, de início, ninguém deu muita importância. Cuidávamos, na pequena e pacata Serelepe, de nossas vidas miúdas, de acordo com a ótica dessa gente apressada da cidade grande. O que importa é que um dia fomos felizes. Sendo o professor da cidade. E digo da cidade, pois era o único. Dava aulas em três períodos. De manhã, cuidava dos pequenos da 1ª à 4ª série. O vespertino ficaria para os da 5ª à 8ª e a noite era para a alfabetização dos adultos.
Os jovens que queriam o segundo grau deviam migrar para outras paragens e esse era um dos motivos da morte lenta de Serelepe: ninguém voltava. Depois de saírem e de conhecerem possibilidades que a vida lhes oferecia além dos montes, nem sequer davam-se ao trabalho de olhar para trás. A cidade foi assim perdendo gente e perdendo vida e os poucos que restavam só tinham olhos para o horizonte, para fazer as malas e partir.
Fiquei ali devido ao desgosto e à desilusão que a vida me trouxe ao perder tudo e todos que tinha, sempre de modo brutal e violento. A vida me fora má. Agora só me restava a companhia daqueles últimos e poucos alunos. Não era incomum ver cada vez menos deles na sala.
- E o Toninho? – Perguntava ao resto da turma:
- Mudou-se ontem com a família para Horizonte Verde. – E essa era a sina.
O musgo veio para romper com a história. Dona Joaquina, ouvi-a dizer ao Zé da venda:
- Verdade, seu Zé. O musgo cresceu do dia para noite e já cobre todo o meu muro. – Tanto ele quanto eu, não demos a importância que a anciã fazia por merecer. Segui abobado para minhas aulas e seu Zé meneava a cabeça sem muito crer, em mera cortesia à freguesa. Ainda olhou para mim de soslaio e trocamos um bom dia, bem como troquei outro com a velhota. Dei as costas e segui adiante.
No dia seguinte, quando fazia uma passagem diferente para a escola, e mudar de rua era uma das poucas variações que minha rotina permitia, vi a casa de Dona Joaquina coberta até o teto por um musgo verde. Pequena aglomeração de gente se formava discutindo a questão. Apontavam de assombro, pois o musgo não estava ali ontem.
Dona Joaquina, preocupada, já afirmava:
- O musgo também está dentro da casa. Cobre as paredes, o chão e os móveis. O que hei de fazer? – Uma das características das pequenas comunidades é a solidariedade, e o povo todo se pôs a raspar, como podia, o musgo da parte interna, das paredes e dos muros. O mutirão tomou o dia todo e, como quisessem os alunos mais testemunhar os eventos e participar, não tendo cabeça para a matemática, fomos ajudar o povo a raspar.
Foi um dia alegre. Fizemos um almoço juntos, além de vários lanches. O povo do interior é dado a se alimentar bem. A fartura à mesa é ponto de honra. Limpamos quase todo o lodo sendo que homens valorosos subiram ao telhado fazendo o que podiam. Fomos todos dormir em paz.
No dia seguinte acordei com uma gritaria incômoda. O lodo não só voltara a cobrir toda a casa de Dona Joaquina, mas avançara forte sobre as casas vizinhas e boa parte da rua atingindo até o outro lado. O calçamento em paralelepípedo, desde o tempo do ouro, ficara verde e escorregadio.
A população entrou em pânico ao constatar que Dona Joaquina fora envolvida completamente pelo musgo. Divisava-se apenas sua silhueta sobre a cama. Tentamos abrir espaço para que as narinas respirassem, mas ao remover uma camada, fomos percebendo que havia apenas musgo. Raspei uma parte sobre o que seria um dos braços, mas nas profundezas via apenas musgo. Era verde sobre verde. Dona Joaquina fora absorvida por aquela força.
Se o povo já queria ir embora antes, com o surgir da maldição muitos aceleraram o passo e os vizinhos de Dona Joaquina foram os primeiros a demandar. O povo não gostava de luta contra coisas assombradas e sem explicação. Durante o dia mesmo podíamos notar que o musgo crescia a olhos vistos avançando com pressa centímetro sobre centímetro. Suspendi as aulas e o padre veio benzer. Na primeira leva de água benta logo ouvimos o grito de Dona Joaquina:
- Socorro! Quero sair daqui!
- Daqui onde? – Perguntei.
- Daqui! De todo lugar....
Dona Joaquina era o musgo e o musgo era Dona Joaquina. Dali em diante foi que o povo debandou mesmo. A água do padre fez efeito contrário e o musgo avançava ainda mais.
- Serelepe está condenada. – Disse o Zé da Venda antes de correr para salvar o estoque saindo fora. Tentei acalmar o povo, mas foi tudo em vão. Com a chegada da noite o quadro ficou mais grotesco. Os gritos de Dona Joaquina viraram um terror e o musgo aumentou a taxa de crescimento por mil cobrindo de vez várias casa e ruas chegando já a dominar vários quarteirões inteiros. Tentei, juntamente com alguns bravos, raspar, mas assim que raspávamos o musgo voltava.
Desistimos. Ficamos o padre e eu como últimas testemunhas e, a uma distância segura, vimos no final do terceiro dia o musgo dominar Serelepe por completo. Nossas coisas estavam ajeitadas sobre uma carroça e partimos. De longe ainda ouvíamos os gritos de socorro de Dona Joaquina, mas fazer o quê? Deixamos que a distância nos trouxesse o silêncio. No entanto, a cada noite, acordo apavorado, sentido que algo me abraça, entrando pelas narinas e ouvidos, devorando-me vivo e, devo afirmar que, apesar de nunca mais ter voltado a Serelepe, jamais voltei a dormir em paz novamente...
O musgo começou a crescer na casa de Dona Joaquina e, de início, ninguém deu muita importância. Cuidávamos, na pequena e pacata Serelepe, de nossas vidas miúdas, de acordo com a ótica dessa gente apressada da cidade grande. O que importa é que um dia fomos felizes. Sendo o professor da cidade. E digo da cidade, pois era o único. Dava aulas em três períodos. De manhã, cuidava dos pequenos da 1ª à 4ª série. O vespertino ficaria para os da 5ª à 8ª e a noite era para a alfabetização dos adultos.
Os jovens que queriam o segundo grau deviam migrar para outras paragens e esse era um dos motivos da morte lenta de Serelepe: ninguém voltava. Depois de saírem e de conhecerem possibilidades que a vida lhes oferecia além dos montes, nem sequer davam-se ao trabalho de olhar para trás. A cidade foi assim perdendo gente e perdendo vida e os poucos que restavam só tinham olhos para o horizonte, para fazer as malas e partir.
Fiquei ali devido ao desgosto e à desilusão que a vida me trouxe ao perder tudo e todos que tinha, sempre de modo brutal e violento. A vida me fora má. Agora só me restava a companhia daqueles últimos e poucos alunos. Não era incomum ver cada vez menos deles na sala.
- E o Toninho? – Perguntava ao resto da turma:
- Mudou-se ontem com a família para Horizonte Verde. – E essa era a sina.
O musgo veio para romper com a história. Dona Joaquina, ouvi-a dizer ao Zé da venda:
- Verdade, seu Zé. O musgo cresceu do dia para noite e já cobre todo o meu muro. – Tanto ele quanto eu, não demos a importância que a anciã fazia por merecer. Segui abobado para minhas aulas e seu Zé meneava a cabeça sem muito crer, em mera cortesia à freguesa. Ainda olhou para mim de soslaio e trocamos um bom dia, bem como troquei outro com a velhota. Dei as costas e segui adiante.
No dia seguinte, quando fazia uma passagem diferente para a escola, e mudar de rua era uma das poucas variações que minha rotina permitia, vi a casa de Dona Joaquina coberta até o teto por um musgo verde. Pequena aglomeração de gente se formava discutindo a questão. Apontavam de assombro, pois o musgo não estava ali ontem.
Dona Joaquina, preocupada, já afirmava:
- O musgo também está dentro da casa. Cobre as paredes, o chão e os móveis. O que hei de fazer? – Uma das características das pequenas comunidades é a solidariedade, e o povo todo se pôs a raspar, como podia, o musgo da parte interna, das paredes e dos muros. O mutirão tomou o dia todo e, como quisessem os alunos mais testemunhar os eventos e participar, não tendo cabeça para a matemática, fomos ajudar o povo a raspar.
Foi um dia alegre. Fizemos um almoço juntos, além de vários lanches. O povo do interior é dado a se alimentar bem. A fartura à mesa é ponto de honra. Limpamos quase todo o lodo sendo que homens valorosos subiram ao telhado fazendo o que podiam. Fomos todos dormir em paz.
No dia seguinte acordei com uma gritaria incômoda. O lodo não só voltara a cobrir toda a casa de Dona Joaquina, mas avançara forte sobre as casas vizinhas e boa parte da rua atingindo até o outro lado. O calçamento em paralelepípedo, desde o tempo do ouro, ficara verde e escorregadio.
A população entrou em pânico ao constatar que Dona Joaquina fora envolvida completamente pelo musgo. Divisava-se apenas sua silhueta sobre a cama. Tentamos abrir espaço para que as narinas respirassem, mas ao remover uma camada, fomos percebendo que havia apenas musgo. Raspei uma parte sobre o que seria um dos braços, mas nas profundezas via apenas musgo. Era verde sobre verde. Dona Joaquina fora absorvida por aquela força.
Se o povo já queria ir embora antes, com o surgir da maldição muitos aceleraram o passo e os vizinhos de Dona Joaquina foram os primeiros a demandar. O povo não gostava de luta contra coisas assombradas e sem explicação. Durante o dia mesmo podíamos notar que o musgo crescia a olhos vistos avançando com pressa centímetro sobre centímetro. Suspendi as aulas e o padre veio benzer. Na primeira leva de água benta logo ouvimos o grito de Dona Joaquina:
- Socorro! Quero sair daqui!
- Daqui onde? – Perguntei.
- Daqui! De todo lugar....
Dona Joaquina era o musgo e o musgo era Dona Joaquina. Dali em diante foi que o povo debandou mesmo. A água do padre fez efeito contrário e o musgo avançava ainda mais.
- Serelepe está condenada. – Disse o Zé da Venda antes de correr para salvar o estoque saindo fora. Tentei acalmar o povo, mas foi tudo em vão. Com a chegada da noite o quadro ficou mais grotesco. Os gritos de Dona Joaquina viraram um terror e o musgo aumentou a taxa de crescimento por mil cobrindo de vez várias casa e ruas chegando já a dominar vários quarteirões inteiros. Tentei, juntamente com alguns bravos, raspar, mas assim que raspávamos o musgo voltava.
Desistimos. Ficamos o padre e eu como últimas testemunhas e, a uma distância segura, vimos no final do terceiro dia o musgo dominar Serelepe por completo. Nossas coisas estavam ajeitadas sobre uma carroça e partimos. De longe ainda ouvíamos os gritos de socorro de Dona Joaquina, mas fazer o quê? Deixamos que a distância nos trouxesse o silêncio. No entanto, a cada noite, acordo apavorado, sentido que algo me abraça, entrando pelas narinas e ouvidos, devorando-me vivo e, devo afirmar que, apesar de nunca mais ter voltado a Serelepe, jamais voltei a dormir em paz novamente...