Fogo e Água
Essa noite eu fui passear num povoado bastante primitivo. Era um povo negro, muito magro, que usava roupas feitas de um tecido bem grotesco de algodão e fibras. Habitavam espécies de casebres na beira de um rio e tinham uma espécie de salão comunitário, de madeira, bem grande, oval (como uma oca gigante mesmo) com arquibancadas altíssimas, onde as pessoas se aglomeravam para as celebrações, festas e cultos. O rio (que não era tão grande) passava dentro do salão e eles fizeram tipo um represamento que formou uma espécie de piscina natural, onde as famílias se refrescavam e sociabilizavam. Havia muitas crianças naquela piscina. E eu sempre olhando lá de cima...
Ali eles passavam muito tempo, tinha de tudo. Adoração a uma espécie de pedra que eles chamavam de Deus; escola, onde as crianças ficavam sentadas no chão aprendendo cantigas e ritos ancestrais; havia um refeitório, onde todos tomavam um caldo grosso, acompanhado de uma farinha amarelada; E como eu havia dito, tinham as arquibancadas, que ficavam em frente a uma espécie de palco.
E naquela hora estavam acontecendo as apresentações de danças e cânticos aprendidos pelas crianças, e a arquibancada estava lotada de pais, avós, irmãos mais velhos, todos assistindo o "espetáculo" infantil. Mas de repente eles notaram que a arquibancada pegava fogo e esse fogo havia começado de baixo para cima, impossibilitando a saída das pessoas dali. E como era tudo de madeira e palha, o fogo se alastrou numa velocidade espantosa e a gritaria e cheiro de carvão e carne queimados era insuportável. Não demorou muito para tudo desabar, formando um amontoado de madeira, cinzas, pessoas mortas e pessoas vivas agonizantes e outras somente feridas em um desespero total.
Um espaço de tempo se deu e eu me vi numa espécie de funeral coletivo. Os corpos que não foram carbonizados estavam dispostos em urnas feitas de madeira (imaginem uma gamela grande parecida com uma canoa com as laterais abauladas como uma meia lua) e as pessoas ajeitadas ali, com as pernas cruzadas, numa posição quase sentada mesmo. E uma grande fogueira, que serviria de crematório, para terminar o serviço que o fogo havia começado no templo.
Muitos mortos, muitas crianças órfãs, muita tristeza e destruição. Um povoado que já me pareceu tão pobre e que perdeu todo o referencial de vida num piscar de olhos (para mim pareceu um piscar de olhos). As cinzas foram todas jogadas naquele rio e misturadas ao elemento mais importante à nossas vidas, a água, que segundo eles, os levariam aos céus através da evaporação.
E depois do grande ritual fúnebre, o celular despertou e me disse que era hora de retornar ao meu mundo. Mas as minhas impressões foram tão reais, que me deram a sensação de que realmente eu estive lá e presenciei tudo. Quando acordei, ainda podia sentir aquele cheiro de coisa queimada misturada na água.