A ÁRVORE DOS MORTOS

   (A Carlos Moreira, grande amigo, cujo paradeiro perdi nos meandros dessa vida.)


          Deixamos Terezina após um tardio almoço na casa de umas curicas que havíamos conhecido na noite anterior e dali rumamos para o litoral por uma estrada provisória e precária. Era por volta de sete horas, início de noite, quando meu amigo Levy lembrou-nos de que, exatamente um ano atrás, nessa mesma hora, estávamos em Três Lagoas na festa de meu casamento e que isso merecia uma comemoração e com que, prontamente, nosso amigo Carlão concordou. Assim, decidimos parar na primeira corrutela que encontrássemos naquela isolada região do norte do Piauí. O fusca ia devagar, uma minúscula joaninha vermelha perdida naquela imensidão escura. Entretanto, contrariando a expectativa dos três viajantes “Universitários conhecendo este Brasil” — assim estava escrito no tecido costurado na porta da tenda de lona que armávamos para acampar — não demorou muito para que avistássemos ao longe o que poderia ser um povoado.

          A estrada de terra, que até então fora ladeada de densa mata, transformava-se agora em rua que cortava uma vila silenciosa e dormente onde parecia não haver viva alma. Mais ou menos na metade da extensão entre os dois extremos dessa ala de construções sombrias e iguais havia uma grande árvore bem no meio do alargamento formado pela rua que se bifurcava, contornava o enorme tronco e tornava a se juntar mais a frente, formando assim uma espécie de praça. Ao longo da rua sem iluminação não havia qualquer outro veículo motorizado, nem mesmo bicicletas ou carroças estacionadas ou em movimento. O som do motor do fusca ecoava estranhamente na solidão do local. Ao nos aproximarmos da praça, no entanto, notamos que havia uma tênue claridade vinda de uma porta aberta, a qual clareava parcamente as imediações da árvore. Era um botequim rústico como muitos que se viam por aquelas paragens, mas era tudo o que precisávamos para a celebração. Estacionei o carro sob a copa da árvore e descemos para ir em busca de bebidas e de alguma coisa para comer. Um negro velho, de faces encovadas e macilentas, atendeu-nos ao balcão. A luz incerta de quatro fifós de querosene dançava sombras grotescas em seu rosto cadavérico. Adquirimos uma garrafa de cachaça sem rótulo, quinhentos gramas de mortadela fatiada e alguns pacotes de bolachas, mesmo porque não havia qualquer outra opção. Voltamos com as compras para perto do carro e bem humorados dispusemos tudo num dos bancos toscos de madeira que havia, junto ao tronco da árvore. Levy tentava, sem sucesso, sintonizar alguma estação no rádio do fusca, mas, infelizmente, só se ouvia o ruído de estática. Começamos a alternar entre nós a posse do litro de cachaça, bebendo-a em diminutos goles. A noite estava espessa de tão escura e assim a luz que escapava do interior do boteco e a da pequena lâmpada interna do carro era apenas suficiente para criar um ambiente agradável para conversar e beber. Pouco depois, repentinamente, uma pessoa apareceu, vinda não vimos de onde, aproximou-se, e passou a examinar o veículo com uma curiosidade de quem nunca antes houvesse visto um automóvel. Era jovem e magro. Vestia um terno amarrotado de tecido riscadinho e gravata preta (dá para acreditar?). O que mais chamava atenção, porém, nem era tanto o seu andar lento naquela roupa velha e encardida de lama, em volta do automóvel, averiguando o veículo como se fosse um detetive procurando pistas, era sim o fato de estar usando meias sem sapatos, isso mesmo, de meias e sem sapatos! Alegres, Levy e Carlão convidaram o estranho rapaz para beber em minha homenagem. Ele desviou a atenção do parachoque, em cuja lâmina cromada, à guisa de espelho, examinava, sob a parca luz, sua própria figura, e fitou-nos, desconfiado. Levy reiterou o convite e ele então, vacilante, aceitou um trago da cachaça. A conversa, aquecida pela bebida, tornou-se animada e ruidosa, entremeada de piadas e chacotas trocadas entre nós sobre os eventos engraçados da viagem. Cada gafe cometida por um de nós, por mais insignificante que fora, era relembrada com humor e tornava-se motivo para estrepitosas e intermináveis gargalhadas. Outra figura soturna veio se aproximando lentamente. Era uma garota pálida e triste e também se vestia de modo peculiar. Trajava um vestido longo e, não fossem as enormes marcas de barro que maculavam o tecido em vários pontos, poder-se-ia dizer que um dia fora branco. Ela foi incitada a beber um trago e logo após começou a confraternizar-se com o rapaz como se não se vissem há longo tempo, muito embora — pensei — morassem naquele minúsculo vilarejo. Levy passou a atrair para a roda outras pessoas que se achegavam. Apareciam de repente, vindas de diferentes direções e, sem pressa, encaminhavam-se diretamente para nós e então paravam a certa distância, observando-nos. Cobriam-se invariavelmente de maneira formal, embora usassem roupas rasgadas e sujas de terra, a maioria deles sem os sapatos. Alguns negros também tinham surgido das trevas, mas ficaram apartados da roda, fuzilando-nos com olhares de puro ódio. Destoavam do grupo de brancos. Vestiam andrajos impossíveis de se definir como roupas. Os convidados trocavam cumprimentos com incompreensível euforia, riam e conversavam animadamente. Bebiam todos, avidamente, e logo o primeiro litro esvaiu-se. Mesmo antes que pedíssemos, o velho do boteco trazia outra garrafa de cachaça. Parecia não haver outro lugar para ir naquele povoado. Acho que a algazarra do bando acordava os habitantes da sinistra vila e lá vinham eles, feito zumbis, num andar oscilante, como que enfeitiçados pelo som das vozes e das risadas sob a ramagem compacta da imensa árvore. Duas das lamparinas do boteco tinham sido trazidas e colocadas nas extremidades do banco que servia de mesa. Um cheiro indefinido, misturado com os odores da cachaça e os arrotos de mortadela, empestava o ar e invadia nossas narinas cheias de poeira e fumaça.

          A festa já durava umas duas horas quando Carlão, com pose de arauto do rei, sacou do bolso um envelope grande e branco que me entregou. Era um cartão de felicitações pelo aniversário de meu casamento e de reiteração de nossa amizade. Agradeci, emocionado, a lembrança, ciente então da premeditação do evento. Na primeira face do cartão havia a caricatura de um homem sorridente sob a qual se lia: “Um ano de casado...”. Ao abrir o cartão, outra caricatura do mesmo homem, desta feita, exaurido e sob a qual a frase se completava: “... ou de cansado?” O cartão passou de mão em mão. Alguns o leram, mas a maioria apenas riu dos desenhos. Finalmente, Levy espetou o cartão no tronco da árvore usando uma faca que havia aparecido sobre o banco de madeira entre copos, mortadela, bolachas e litros de cachaça. Todos podiam assim, ver o alvo retângulo com os desenhos, colocado bem acima de nossas cabeças, preso à casca grossa da árvore pela ponta da faca, cuja lâmina polida refletia a luz mortiça e trêmula do ambiente.

          A festa ficou mais interessante para os circunstantes quando Carlão empunhou o violão que até então jazera no banco traseiro do carro. Ele começou a entoar velhas canções que até então eu achava que somente ele conhecia. Ledo engano. Muitos dos convidados fizeram com ele um coro de vozes graves e saudosas em melodias que eu jamais ouvira e muito menos Levy que era o mais jovem dos três viajantes. O som daquelas vozes tristes mudou totalmente o clima inicial de alegria do ambiente. Quando cantavam notas altas e longas parecia se ouvir lamentos que vinham em resposta de entre as paredes das construções escuras mais ao longe. Como o uivar de cães. Devia ser o eco. O fato é que a noite também começara a esfriar e arrepios constantes causados também pela desidratação (já havia pelo menos seis litros vazios sobre o banco) punham-nos desconfortáveis. Podia se ler isso nos olhos cansados de meus dois amigos.

          Reuniam-se naquele momento, digamos, por volta de onze horas da noite, umas vinte pessoas, homens e mulheres de diferentes idades que cantavam ou conversavam. Algumas delas pareciam já preocupadas de estar ali até tão tarde, pois murmuravam entre si, repetidamente: “Não podemos ficar mais. Já está quase na hora. Temos que ir. Temos que ir”. Começaram a sair sem se despedir, sem darmos por fé, num momento nosso de desatenção. Erguíamos os olhos e veja: o grupo havia se tornado menor. Já iam longe, iam devagar e em diferentes direções, da mesma maneira como tinham chegado. Num momento sumiam, engolidos pela escuridão entre os muros.

          Um dos homens, entre as poucas pessoas remanescentes, forte e truculento, bem diferente das demais que eram fracas e mirradas de corpo, pois, cismou que Carlão tinha que cantar mais uma canção. Uma canção que meu amigo não conhecia e que jamais ouvira. Carlão, completamente afônico, já havia desistido do violão. O moço era do tipo encrenqueiro e sem mais nem menos começou a destratar meu amigo que, pacificamente, tentava contemporizar. Para encurtar o caso, a ironia do rapaz se transformou em ira e esta em ameaça de quebrar o violão. Levy e eu observávamos em silêncio o desenrolar do destranque. Levy era tido entre os amigos como uma pessoa afável e brincalhona. Poucos sabiam, porém, que perdia o controle facilmente e que sem demora respondia às provocações. Percebi que a melhor atitude seria irmos embora dali. Como era eu o motorista, comuniquei minha decisão e, ato contínuo, guardei o violão e entrei no carro logo seguido por Carlão. Por último e ainda altercando com o rude morador do lugarejo entrou Levy. Arranquei de imediato, contornando a árvore e pegando a estrada a nossa frente.

          A noite parecia-nos agora ainda mais densa de escuridão, uma massa instransponível como se jamais houvera no céu uma estrela ou uma lua. Assim que os últimos sinais do povoado ficaram para trás, a estrada de terra estreitou-se e transformou-se num caminho pavimentado com pedras irregulares de quase um século atrás. Levy lembrou-se que alguém na festa, referindo-se aos negros, dissera que eles haviam construído aquela estrada até alcançarem o mar. Eram escravos e muitos deles tinham morrido de exaustão e maus tratos durante a demorada construção. Havíamos já percorrido uns vinte quilômetros desse acanhado caminho de pedras quando me dei conta de que havíamos esquecido o cartão de felicitações pregado no tronco da árvore. Volto não volta, volto não volta, decidi, contra a vontade dos dois amigos, retornar ao local da árvore para resgatar o cartão. Já passava da meia-noite, estávamos cansados, sonolentos, semi-embriagados, e queríamos chegar à praia de Luís de Freitas para armar nossa tenda. Talvez não encontrássemos mais o cartão que poderia ter sido rasgado ou levado por um dos presentes à festa... Enfim, meus amigos usaram todos os argumentos para me convencer a não voltar. Contra-argumentei insistindo que o cartão era muito importante para mim, pois seria uma recordação de momentos inusitados e inesquecíveis passados naqueles ermos. Manobrei o carro na estrada estreita e tomamos o trajeto de volta, um olho no caminho, o outro no hodômetro. Rodamos vinte, vinte e um, vinte e dois quilômetros, e o povoado nada de aparecer. Teríamos tomado por engano uma variante, um desvio sem nos apercebermos? Fomos adiante mais uns três mil metros e nada. “Com certeza você já passou o povoado” — dizia Levy. “Você errou o caminho, cara” — acrescentava Carlão. “Como errar o caminho, se só existe esse?” — gritava eu. “Bem que eu falei”— repetiam os dois chatos de quando em quando. “OK, vamos refazer o percurso, devagar. Vê se param de discutir e criticar e me ajudem a prestar mais atenção na trilha”— aconselhei, amuado.

          Após dois mil metros rodados na direção que supúnhamos estar o povoado percebi que havia um caminho cortando a estrada transversalmente. Cem metros depois, outra transversal. Havia uma terceira logo em seguida. Optei por entrar numa delas. Era bem estreita. Os faróis do fusca iluminavam pequenas ruínas de tijolos, irregulares, indefiníveis, escondidas que estavam entre arbustos e cipós, nos dois lados da alameda. Paramos o carro e descemos completamente desorientados para examinar. Constatamos, estarrecidos e trêmulos, que estávamos dentro de um velho cemitério. Olhamos uns para os outros, em silêncio, mal disfarçando uma sensação desconfortável de medo que nos invadia e, apressados, voltamos ao carro para pegar de novo a estrada e sumir dali, o cartão já de comum acordo abandonado. Agora não encontrávamos a estrada de pedras também. Virávamos aqui, virávamos lá e tínhamos a sensação de estar vagando num labirinto cercado de lápides e cruzes arrebentadas. Desesperados e nervosos, rodando a esmo pelas vielas, desembocamos numa alameda mais larga, e ao fazermos a curva, o facho de luz do automóvel varreu a escuridão e iluminou uma fila de túmulos enormes, mas igualmente arruinados pelas intempéries de muitas décadas, e bem na metade da extensão dessa alameda que se bifurcava, formando uma espécie de praça central, havia uma grande árvore. Arrepiei-me. Parei. Dei ré, focando o farol na árvore, sem querer acreditar no que pensava ter vislumbrado quando a luz alta passou pelo tronco escamoso da velha árvore do cemitério: Bem no meio do tronco escuro da imponente árvore, uma velha faca enferrujada pelos anos prendia na casca grossa um cartão de felicitações, impecavelmente branco.









 
HFigueira
Enviado por HFigueira em 19/08/2011
Reeditado em 01/02/2012
Código do texto: T3170384
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