Sou sua loucura, bem-vindo à sua mente!

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(Este relato é verídico, ou pelo menos, o mais verídico que consigo me lembrar)

Abri meus olhos. Estava em um lugar muito estranho, escuro, com desenhos e símbolos dos mais variados tipos a encobrir toda a parede, o teto e o chão. Eram pinturas coloridas, grafites, frases e coisas indecifráveis pintadas sobre a sala negra.

Repentinamente, da parede, o desenho de uma caixa criou vida, se abriu, e dele saltou um rosto de palhaço. Exatamente como aquelas caixas das brincadeiras de criança, da qual salta uma cabeça de palhaço presa à uma mola envolta por algum pano. Mas esta cabeça estava viva, e esta mola se esticava indefinidamente e se movia como uma cobra.

A cabeça veio em minha direção e de repente, abriu a boca. A boca se arregaçou, quase dividindo a cabeça de palhaço ao meio, da boca saltaram mais três cabeças, vindo em minha direção...

E me engoliram.

Me vi descendo por uma espécie de tubo, como um tobogã, ou como uma garganta me engolindo.

Então, caí no mesmo quarto em que eu estava antes. Mas agora, as cabeças de palhaço não estavam lá, e sim um palhaço completo.

- Não tenha medo - Ele disse

- Onde estou? - Perguntei

- Na sua mente, e eu sou seu lado louco, sou sua loucura e sua criatividade. Por que foges de mim? Por que tens medo de mim? Por que não me aceita como parte de você?

Eu fiquei confuso, mas logo entendi, e o aceitei, e então percebi que não precisava dizer mais nada, ele sabia que eu o havia aceitado, a minha loucura e criatividade estavam lá, e eu não tinha mais medo, e nenhuma cabeça de palhaço me engoliria novamente.

- Muito bem, agora que aceitou-me como parte de você, por que não deixa que sua própria loucura, que sua abstração te guie pelos caminhos de sua mente? Vem comigo e conhecerá cada centímetro de sua mente, e compreenderá a si mesmo, como nunca antes o fez.

Eu aceitei de bom grado, e em instantes estávamos num corredor dourado, como se fosse feito de ouro que se estendia infinitamente para a frente e para trás. Portas lado-a-lado dominavam todas as duas paredes do corredor. Infinitas portas idênticas, feitas de uma bela madeira maciça adornada e talhada precisamente com formas em alto e baixo relevo, suaves, curvilíneas.

Eu já havia entendido, mas ele pôs em palavras

- Cada porta destas, dá para um local diferente de sua mente, como você deve ter percebido (e eu havia) isto é um sonho, portanto não temos muito tempo, irei lhe mostrar brevemente alguns dos locais mais importantes.

E abriu a primeira porta.

Era um local completamente feito de madeira, repleto de poeira, e uma luz branca emanava de cima, como a luz solar, seus raios ficavam bem visíveis atravessando a poeira.

Uma mesa de madeira com vários brinquedos também de madeira. Um deles me chamou a atenção. Era um astronauta montado em uma espécie de foguete. Assoprei para lhe tirar a poeira.

- Estes são os seus sonhos infantis abandonados. Largados e empoeirados.

Só então me recordei de como passava noites à fio quando criança, olhando as estrelas e me imaginando entre elas. Um astronauta, era isto que eu queria ser, quando era criança.

Andando mais um pouco vi um livro empoeirado e em branco que indicava meu sonho de ser escritor, vi um dinossauro de brinquedo (quando criança, fiquei fascinado com Jurassic Park e me sonhava ser um cientista para poder realmente reviver um dinossauro). E a visão mais chocante que tive foi de um enorme globo terestre. Logo entendi: o meu antigo sonho, e o sonho de toda criança se não me engano, de mudar o mundo!

Voltamos ao corredor e a próxima porta que abrimos deu para uma enorme bibloteca repleta de livros de todos os tipos e tamanho.

- Este é o seu conhecimento, que você vem adiquirindo ao longo da vida.

Folheei alguns livros, relembrei coisas das quais não me recordava e voltei ao corredor. Próxima porta: uma enorme arquivo metálico, com estantes com gavetas separadas por data e dentro delas pastas com divisórias por assunto.

- Suas lembraças. - Disse minha loucura.

Havia artigos com diálogos que fiz com outras pessoas, fotos de momentos importantes de minha vida e até mesmo fitas de vídeo e de som (sim, fitas, não DVDs nem CDs). Havia também pequenos lembretes, notas, papéis rasgados, alguns meio apagados, alguns com cheiros diferentes. E haviam recipientes, como vidros de perfume, que guardavam apenas cheiros, o cheiro da chuva, de minha amada, da grama, do orvalho da manhã...

Ao sair desta sala não me lembro em quais outras entrei, mas sei que foram várias, me lembro apenas de quando meu lado louco se pôs a andar apressado à minha frente, me levando pelo corredor, ignorando quase todas as portas que estavam ao seu lado.

- Aonde vamos? - Perguntei.

Ele nada respondeu até que o corredor chegou ao fim.

Ele terminava numa magnífica escada em caracol de mármore que descia para as profundezas do meu ser, para os cantos mais remotos de minha mente.

- Esta escada dá para o seu inconsciente. - Explicou-me a minha loucura, a minha abstração. Acho que havia um significado muito forte de quem estar me guiando ser meu lado louco, significava que só com todo o poder de minha abstração conseguiria entender o que estava acontecendo ali.

Descemos a escada que parecia não ter fim, degrau por degrau. Ao nosso lado surgiam memórias esquecidas, conhecimentos perdidos e desejos ocultos.

Não, não ocultos, nem perdidos, apenas esquecidos. Pois ainda não estávamos no meu inconsciente, estávamos no meu sub-consciente, as coisas que vagavam por ali estavam à meio caminho: se subissem, seriam lembradas e se tornariam ativas, se descessem, caíriam no incosnciente e nunca mais seria recuperadas. E elas subiam e desciam aos montes, o tempo inteiro, numa dança frenética.

Ao terminar de descer a escada, chegamos a uma sala vazia, onde apenas uma forte luz amarela emana de um buraco no chão.

Olhei o enorme buraco, era um vórtex feito da luz amarela, um redemoinho que lançava tudo o que caía ali dentro a um esquecimento profundo.

Olhando para aquele vórtex, olhando o meu próprio inconsciente vislumbrei todo o meu ser. E tive uma compreensão incrível de mim mesmo.

Um som contínuo como um apito começou a soar.

- O que é isto? - Perguntei à minha loucura.

- Está na hora de você acordar, quando despertar, se sentirá incrivelmente bem, em paz consigo mesmo e não se lembrará de nada o que aconteceu aqui. Aos poucos, vai se lembrando de cada momento, como se este próprio sonho louco estivesse a subir a escada do subconsciente.

Ele me olhou bem nos olhos e perguntou:

- Está pronto?

- Sim - respondi

- Então acorde - disse ele por fim, apontando seu dedo em minha direção.

Uma explosão de luz branca e então, a escuridão, o apito ficando cada vez mais intenso e as lembranças daquele sonho se perdendo no ar.

De repente percebi, o apito era o despertador do meu celular. Levantei, exatamente como o palhaço havia previsto. Me sentindo extremamente bem, como se tivesse atravessado uma longa jornada de auto-conhecimento. Mas não sabia explicar por quê.

Através dos dias e das semanas seguintes, pequenas coisas do dia-a-dia me traxiam à tona fagulhas daquele sonho, sem que eu pudesse entender completamente o que eram. Até que entendi. Como um choque, o sonho inteiro se materializou em minha memória, tanto, que tentei revivê-lo outra noite, tentei me encontrar novamente com meu lado louco. Mas não pude. Então entendi, meu lado louco não estava mais fora de mim, minha abstração e criatividade se manifestava no meu dia-a-dia, não mais no meu sonho.

E foi assim que eu fiquei em paz com a minha loucura, e depois deste dia eu fiquei em paz com o meu ser.

Acredite ou não, mas uma noite, isto realmente aconteceu, como uma mágica. Não sei explicar muito bem, só sei que aconteceu. Este sonho louco cheio de simbolismo e filosofia foi real, mais real talvez, que a própria realidade.

Gabriel Valeriolete
Enviado por Gabriel Valeriolete em 18/08/2011
Reeditado em 25/06/2012
Código do texto: T3167339
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