O vendedor de vidas
Num lugar imemorial, sem matérias ou medidas, onde todos estivemos um dia e para onde nunca voltaremos, um ser ainda impossível de ser definido entrou numa espécie de loja. O vendedor, sentado atrás de um balcão, sorriu para o potencial cliente e este retribuiu o sorriso, puxando uma cadeira frente ao balcão.
– Com licença, eu ouvi falar de um produto de vocês. Eu me interessei muito! Queria umas informações e, talvez, dar uma olhada. É possível?
– Sim, é claro. Qual é o produto?
– A vida.
– Ah, então você está interessado em viver?
– Na verdade, eu vi em um comercial. É daquele jeito mesmo?
– Bom, pode ser... A vida é pessoal. Como ela vai ser depende de vários fatores: seus gostos, suas experiências, seus aprendizados... Mas, no geral, é estupendo! Você vai adorar! A vida na Terra é repleta de prazeres, tem muitas atividades, muitas coisas que você poderá estar fazendo...
– Parece bom, não posso fazer nada aqui.
– Pois é, para fazer é preciso existir... E estou aqui para isso! Posso te apresentar as mais diversas atividades para se fazer na Terra! Dê uma olhada: esses são os lugares mais bonitos que você poderá estar visitando. As músicas que você poderá estar ouvindo...
– Nossa, quanta coisa! É só começar a viver e eu já posso começar a fazer tudo isso?
– Ah, quanto a isso – o vendedor fez uma pausa e desfez levemente o sorriso – Na verdade, não.
– Não?! Mas são tantas coisas... Preciso de tempo!
– Sim, mas existe um período de adaptação à vida. Ele é dividido em um nível básico chamado Infância e um nível avançado chamado Adolescência. Algumas coisas você pode fazer durante esse período, outras só depois.
– Adaptação?
– Sim, usuários de vida mais antigos te acompanharão por um tempo. Contudo, devido à fragilidade do seu conhecimento sobre a vida, você ficará sob a responsabilidade de seus acompanhantes e sujeito aos gostos e experiências deles até o fim da Adolescência.
– E eu vou ter que acompanhar alguém também?
– Não, não. Não é obrigatório. Há uma inscrição durante a vida para aqueles que querem acompanhar os novos usuários. Você vai ver que essa inscrição pode ocorrer por acidente e que muitos consideram esse acompanhamento um dos prazeres que a vida pode oferecer.
– É sério? E como eu vou saber quem são meus acompanhantes?
– Você vai conhecê-los imediatamente. Você os chamará de Pais. Todos os usuários da vida têm um Pai e uma Mãe, mas, conforme o caso, você pode conviver com apenas um pai, apenas uma mãe, dois pais, duas mães ou até nenhum dos dois. Pode ocorrer também de os pais evadirem do compromisso de acompanhamento e passarem o novato para os próximos inscritos na lista. Nós chamamos esse último de ERA: Evasão da Responsabilidade de Acompanhamento. E, naturalmente, a ERA não vem sem custos...
– Complicado...
– Nem tanto. Esses termos ficarão mais claros conforme você for aprendendo o sistema da vida na Terra.
– Eu posso escolher os meus acompanhantes?
– Sinto muito, não. Os Pais geram laços que, geralmente, duram por toda a vida, mas você não pode escolhê-los. Também não pode escolher seus Irmãos, estes são novatos que dividirão os Pais com você.
– Mas e se eu não gostar dos meus Pais e Irmãos? E se eu não tiver nada a ver com eles?
– É uma possibilidade, mas infelizmente não podemos fazer nada sobre isso.
– E eu vou ter que passar todo o período de adaptação com eles?
– Não integralmente. Você vai conhecer outros usuários, mas a maior parte, sim, é com eles.
– E quanto tempo dura essa maldita adaptação?
– Isso depende também do seu empenho no aprendizado: pode durar entre 16 e 25 anos.
– Quê?!
– Sinto muito, viver é complicado – disse o vendedor, tentando manter a pose – Não existe supletivo.
– Algumas coisas eu posso fazer durante a adaptação, certo? Que tipo de coisas eu posso fazer logo que chegar lá?
– Para falar a verdade, por um bom tempo sua fonte de prazeres será comer, dormir, arrotar e as caretas das pessoas à sua volta. Naturalmente, vida não é apenas prazeres e haverá, desde início, um risco normal para dor e doenças. Para algumas doenças, o risco será aumentado no início da vida e vai diminuindo, para outras, o contrário.
– Que porcaria! E quanto tempo isso dura?
– Não muito. Essa é só a primeira fase da Infância. Passa rápido. A partir da segunda fase, você começa a adquirir os gostos e as experiências.
– Até que enfim! E eu posso fazer de tudo a partir daí?
– Bom... Não. Como você deve ter visto, há inúmeras possibilidades para a vida e não há tempo para fazer tudo.
– Quanto tempo dura a vida?
– Depende do plano que você comprar. O plano Basic sorteia um valor entre 60 e 70 anos. Com o plano Economy você viverá entre 50 e 60 anos. O plano Plus te dá a possibilidade de viver até 80, mas você tem que se cuidar durante a vida para que isso seja possível. O plano Deluxe aumenta esse prazo para 90. O plano Royal oferece uma longevidade de até 100 anos, com possibilidade de aumento desse valor se o corpo que você utilizar estiver em bom estado. Claro que esses valores incluem o período de adaptação.
– O quê – perguntou o cliente impaciente – Eu posso gastar metade da minha vida em adaptação?!
– Calma, calma – o vendedor tentava mais acalmar a si mesmo do que ao cliente: não podia se dar ao luxo de perder a venda – Para compensar, durante a Adolescência, damos a oportunidade ao usuário de experimentar os prazeres da Terra sob maximização da satisfação por eles causada.
– Parece bom. Daí eu posso fazer o que eu quiser?
– Bom, sim, se conseguir.
– Se eu conseguir?
O vendedor agira não se conteve e suspirou sem esperanças:
– Existem algumas necessidades que você precisa satisfazer como fome, sede, evacuação, higiene, saúde... E existe o sistema. Quando você terminar a adaptação, você tem que se encaixar na sociedade e para isso você tem que trabalhar seus conhecimentos e conseguir um emprego. Esse emprego pode ou não ser algo que te dê prazer de acordo com o modo que você usou para obtê-lo, mas é a única coisa que te proporcionará a possibilidade de satisfazer suas necessidades e fazer as atividades que desejar. E, bom, eu esqueci de avisar que você pode ter seu tempo de vida reduzido sem prévio aviso.
– O quê?
– É um mundo perigoso. Mas, se você perder o plano antes de completar metade dele, te mandamos de volta com um bônus de 10 anos. E você também pode abortar a vida com reembolso parcial. Chama-se plano Suicídio.
– Olha, amigo, não sei se essa é a sua função, mas você é um péssimo publicitário!
– Devido à situação atual na Terra, não podemos mais mandar novos usuários sem explicar todos os termos. Superpopulação, sabe como é...
– Aposto que não teriam esse problema se fossem honestos desde o início...
– Meu caro, isso não é tudo – “Ele ainda não desistiu”, pensava o vendedor, “Não posso me dar por vencido agora!” – Como eu disse, há inúmeras coisas boas na vida na Terra: há sentimento...
– O que é sentimento?
– Para alguns, pode ser uma daquelas necessidades de que falei. Para você pode ser um prazer. Para outros pode ser uma dor. Mas tenho certeza de que...
– Espere aí, dor?
“Agora o perdi de vez”, pensou o vendedor tentando desesperadamente segurar o sorriso no rosto:
– Bom, sentimento envolve uma via de duas direções. Se for correspondido é um prazer, se não é uma dor...
– Que desgraça! Até agora você não me deu uma notícia boa! Adaptação, pais, tempo, emprego, necessidade e agora isso de sentimento! Já estou desistindo...
– Mas há muitas coisas boas – exclamou o vendedor, desesperado – Olhe tudo isso: genética, evolução, astrofísica, música erudita, arquitetura clássica, economia internacional, engenharia química, matemática de jogos... São inúmeras áreas para se estudar! Tem também paraquedismo, mergulho, aviação e uma coisa chamada bungee jump!
– Ok, vamos discutir então como driblar essas dificuldades... Você disse que o um emprego pode ser algo que me dê prazer. Como faço para conseguir isso?
– Estou até com medo de dizer, mas primeiro você vai ter que passar por algo bastante desprazeroso chamado faculdade.
– Lá vem você de novo...
– Não, espere. Faculdade não é de todo ruim, mas pode ser bastante estressante. E é uma das principais causas de úlcera e depressão na juventude. Mas você pode usar um artifício efêmero e viciante chamado álcool para enfrentar essa e outras dificuldades.
O cliente arregalou os olhos e o vendedor se recolheu tímido:
– Você está brincando, não é?
– Pela sua reação, eu queria poder dizer que isso é uma piada...
– Para mim, já deu. Eu não quero isso para mim não! Vou continuar na minha inexistência!
– Espere! Eu posso fazer um desconto!
– Nem se você me pagasse!
– Vamos fazer o seguinte: você leva um plano Economy e eu te dou de brinde um par de ingressos para um show do AC/DC quando você tiver 19 anos. Que tal?
– Você disse AC/DC?
O cliente se sentou novamente e o vendedor teve uma epifania: a vida é uma porcaria, mas são pequenas coisas como uma boa música que fazem com que ela valha à pena.
"É", ele pensou, "eu tenho o pior emprego do mundo".