Cheiro de flores
A música era sempre a mesma. Sempre executada no piano. Espalhava-se serenamente pelo quarteirão todo. Dia após dia se ouvia aquela música por horas.
Não sabiam de onde vinha ou quem a colocava no aparelho para tocar. Procuravam, perguntavam uns aos outros, ninguém sabia.
Uma música bem suave. Ninguém dizia se era triste ou se alegre, apenas ouviam e ficavam abobalhados.
Nesta semana, além de ouvir música, ele começou a sentir um cheiro de flores que ninguém mais sentia. Logo na segunda-feira aquele cheiro já o infernizava. Ele nunca gostou muito deste cheiro. Gostava do perfume das flores, mas não do cheiro delas, o cheiro de seiva, dos caules e das folhas.
No sábado ele saiu cedo de casa para ir até o bar e a melodia não o deixava em paz. A música calma, agora lhe parecia insuportável. Neste dia estava mais alta do que de costume e vinha acompanhada do som de sinos. Piano e sinos.
Despediu-se da mulher, porém ela não disse nada. Foi como se ela nem tivesse ouvido. Há alguns dias que ela já estava assim: não falava com ele, ficava nervosa por qualquer motivo e chorava pelos cantos da casa.
Na rua o som ecoava pelos lugares. Alto. Piano e sinos.
“Bom dia” – falou para um vizinho sem obter resposta.
O bar ficava próximo de sua casa, porém ele sempre fazia um caminho maior, percorrendo dez ou doze quadras, demorava quinze minutos para ir, caminhando, para ver os amigos e como dizia: “para esticar as canelas”. Ele tomava algumas pingas, jogava baralho, batia papo com os amigos e depois voltava feliz e sem estresse para casa.
Seus amigos de bar ainda não haviam chegado. Ainda estava cedo. Pediu uma branquinha para esquentar a goela. O dono do bar, exibindo uma cara fechada, abastecia o freezer com cervejas e não ouviu o seu pedido. O cheiro de flores ficou mais forte: margaridas, crisântemos e dálias.
Ao sair para a rua ele encontrou o Nunes: “Bom dia”. O Nunes passou apressado e nem ao menos olhou para o lado. Era um tipo orgulhoso, o Nunes, por causa do dinheiro que tinha.
Piano e sinos. Cheiro de flores. Sua cabeça agora doía. O homem do bar baixou as portas até ao meio e saiu. Ele não entendeu o que estava acontecendo, então resolveu voltar para casa. Neste dia resolveu fazer o caminho mais longo para voltar, foi até próximo da padaria, para ver se tinha alguém lá, não tinha. “Na quitanda?” Estava fechada. “É muito cedo ainda”.
Pensou em ir para outro bar. Pensou em trair seus amigos e o Filão, dono do bar, mas, não teve coragem. Ao voltar para casa avistou uma multidão na rua. Seus amigos estavam todos ali. Descobriu o porquê de todos eles não estarem no bar.
O som do piano agora estava mais forte. E o cheiro de flores insuportável. Parecia que estavam sob o seu nariz. O pólen o sufocava, dando coceira e irritando a garganta. Ficou com raiva do dono do bar, por não ter lhe servido a pinga, que lhe aliviaria esta situação.
Foi se aproximando da casa. O aglomerado de pessoas era grande. Tinha: automóveis, bicicletas, motos, gente chegando andando, outros montados em cavalos, de charrete, coisas de cidade do interior.
No meio do povo ele identificou seu primo João. Mas não poderia ser o João, disseram-lhe que ele estava muito doente. “O João está nas últimas” - lhe disseram.
A garagem de sua casa estava lotada de gente. Cumprimentou um ou outro e todos permaneceram em silêncio.
Sua esposa chorava. Sua filha tinha os olhos vermelhos. Ficou espantado. Lembrou-se da sogra que estava adoentada. “A velha se foi” pensou.
Ninguém lhe dirigiu a palavra, apenas o João se aproximou e lhe cumprimentou. “Fica tranquilo, comigo também foi assim”. Depois veio o Telmo, mas apenas bateu em suas costas confortando-o. O cheiro de flores estava forte. A música estava alta. “O Telmo morreu”. Lembrou-se de alguém ter-lhe dito. “O telmo não morreu?” Pensou.
Espremeu-se no meio das pessoas e conseguiu entrar na sala. Viu a urna: marrom, envernizada, suportes dourados, ele diria bonita se não fosse falar algo tão incomum para uma situação tão triste. Ficou atrás de algumas pessoas e só conseguia ver as flores e as coroas: margaridas brancas, crisântemos amarelos e dálias alaranjadas. O cheiro lhe dava náusea. Achou um espaço para olhar. Esticou-se. Olhou. Viu as mãos cruzadas. Conhecia aquelas mãos. Não eram as mãos de sua sogra. Eram mãos de homem e tinha uma aliança fina na mão esquerda, era alguém casado. Olhou para as cadeiras ao lado do corpo, alguns conhecidos, mas não viu a viúva. Esforço-se para ver o morto, mas não conseguiu.
As pessoas começaram a sair e agora ele poderia se aproximar e ver o morto. O homem da funerária se aproximou, pegou a tampa e começava a fechar quando ele chegou perto e viu o rosto do morto. Era um rosto familiar, mas ele não se lembrou quem era. A tampa foi colocada. Tudo ficou escuro, negro, e ele não pode ver mais nada. Sentiu um solavanco, como se alguém lhe desse um empurrão com força. O cheiro das flores era sufocante. Piano e sinos.
Agora podia ver bem, estava ao lado do caixão. As pessoas começaram a passar se despedindo. Choro. Gritos. Histeria das mulheres. Viu que estava no cemitério, mas não sabia como viera até ali. Olhou o morto novamente. Conhecia-o. Quando todos passaram e o homem da funerária se aproximou novamente com a tampa, ele deu a última olhada para o corpo, porém não reconheceu quem era. A tampa veio em sua direção e fechou em seu rosto. Agora ele estava dentro da urna. Um último raio de luz ainda entrou pela fresta e ele se lembrou do rosto do morto: era o seu.