MARIA E ARAGÃO
MARIA E ARAGÃO
O sol nasceu preguiçosamente atrás da Serra da Praça. Tobias Barreto acordou com desejo de viver. Seu povo como um formigueiro grande caminhava para cá e para lá. As pessoas saíam em busca do pão, o sagrado pão nosso de cada dia. O rapaz do leite batia no pau da carroça: “leite, leite!” As donas de casa, de vassoura na mão, corriam para dentro de casa para pegarem um vaso.
- O leite aumentou dez centavos comadre.
- Foi comadre Carlota. A coisa tá ficando feia.
- Só Deus concerta o mundo.
Descendo de bicicleta a rua do Rosinha Felipe rumo ao centro, Fernando pensava em que dizer para Seu Gildervam, seu patrão. Fernando trabalhava na loja “Rei do Pano” e havia faltado a terça feira passada. “Não sei o que dizer. Nem sei o que houve”. De fato Fernando ouviu um barulho fora de sua casa na noite da segunda para terça. O rapaz morava só, quando o som estranho aumentou de intensidade, ele se levantou de sua cama para ver o que era. Contudo, ele não se recorda de nada. “Foi muito estranho”. Pensou ele.
- Seu Gildervam, eu não vim na terça porque estava desarranjado. Fui ao banheiro umas seis vezes ou mais. Tive que tomar soro e descansar. Gildervam nem olhou de lado, continuou a fazer o que fazia e Fernando entendeu que ele ficou chateado, mas, tudo estava bem.
A manhã passou rápido. Por volta das onze e trinta uma funcionária que respondia pelo nome de Ana Paula inicia uma conversa com sua colega Taislane. Fernando a alguns metros de distância percebe o ocorrido e continua a enrolar os panos.
- Mulher, estou muito preocupada. Hoje faz quinze dias. Procuraram por toda a cidade, inclusive nas roças, mas, nada de achá-lo.
- Eh, mulher, já vi coisa estranha, mas, essa é muito estranha.
O jovem Fernando tinha 34 anos. Seu pai falecera cedo. Ele nem o conheceu. Sua mãe, dona Dindinha, viveu como pode, mas, o diabetes a derrotou aos 56 anos, uma partida muito dolorosa para ela e para o filho. Desde então Fernando viveu sozinho. Nunca namorou sério, era um moço muito tímido. Concluiu o ensino médio e pretendia fazer uma faculdade, contudo, seu emprego na loja nunca lhe deu uma chance de voltar a estudar.
“Sobre o que elas estão falando? Quem desapareceu?” Perguntou Fernando a si mesmo.
O rapaz se aproximou das duas moças e perguntou-lhes sobre o ocorrido. As meninas continuaram a conversa sem lhe dar a mínima atenção. Fernando entrou em pânico. “Será que serei demitido no final do expediente? Pensou o moço.
Mais um dia de trabalho árduo. À porta da loja estavam Seu Gildervam e o gerente. Fernando passa por eles e dá boa noite. Os dois continuaram olhando os funcionários que saíam, uns com bolsa outros sem bolsa como Fernando. Na estrada de volta a sua residência ele repassa as cenas do dia chegando à conclusão que a indiferença de todos era devido a demissão que seria inevitável, afinal, um dia de trabalho perdido em Tobias era imperdoável.
Fernando quando preocupado não dormia bem. Ou demorava a pegar no sono ou dormia e acordava muito cedo. Isso não aconteceu àquela noite. O seu sono foi tão profundo que ele até sonhou; em seu sonho ele viu Tobias Barreto na época dos colonizadores. Ele estava vestido com roupas do século XVII. Usava botas longas de couro, um chapéu que parecia um barco de papel. Portava uma espada e sentia um calor insuportável devido às pesadas roupas por baixo da couraça de couro puro. Ele puxou a espada e apontava para uma pequena vila que era apenas um pequeno ponto povoado em um extenso vale que terminava as margens do Rio Real. “Belchior andou por esse sertão rumo a Itabaiana”. Pensou Fernando. Ele via do alto da Serra da Praça a tropa de boiadeiros que descia a ladeira de Tanque Novo em linha quase reta até o Povoado de Campos. Os homens aproveitavam o inverno; era mais fresco e o mato mais verde para os bichos comerem. A Serra do Cavalo com a cara apontada para o norte formava com a Serra da Praça uma gigantesca arquibancada para as pessoas verem os homens construírem a história. A tropa de boi parou um instante para beber água. Os homens desceram de suas montarias e foram em busca de sombra.
“Todo bicho gosta de sombra”. Pensou Fernando.
Amanheceu a quinta feira e com ela Fernando. Este, logo cedo, tomou banho, mudou de roupa, tomou café e foi fazer seus afazeres antes de sair para o trabalho. Fernando estava caminhando na direção da porta de sua casa quando escuta batidas nela.
- Bom dia! Disse uma moça que usava óculos grandes com lentes grossas.
- Bom dia! Respondeu Fernando.
- Eu gostaria de um minuto de prosa com sua pessoa. Você não é Fernando de Sousa Pinto?
- Eu gostaria muito de saber de que se trata, mas, estou com pressa. Fernando olha para o relógio e faltam quinze para as sete.
- Moço não levará muito tempo. Eu prometo. Fernando olha para a moça que apesar de usar óculos tão feios tinha um rosto de anjo.
- Certo, entre.
A moça sentou no sofá cruzou as pernas, abriu sua bolsa, tirou um bloco de notas e uma caneta azul do tipo comum.
- Bem, eu trabalho para Associação de Achados e Perdidos.
- Eu nunca ouvi falar disso antes.
- Pois, é. Na época dos pioneiros, uma tropa de boiadeiros liderada por seu José Aragão Dantas foi atacada por índios enquanto os homens davam água para os animais. Percebendo que ia morrer, Aragão enterrou no pé da Serra do Canine um saco cheio de moedas de ouro, uma verdadeira fortuna. Ele usaria parte desse ouro para comprar touros de raça em Olindina. Ninguém nunca achou esse ouro.
- E o que eu tenho a ver com isso?
- Nosso departamento tem a informação que você, ou melhor, sua família tem relação hereditária com o Aragão.
- Nunca ouvi falar disso.
- Pois, bem. Nossos arquivos comprovam que você é parente herdeiro da fortuna de Aragão.
- Bem, moça, acho tudo isso muito estranho. Gostaria de ouvir mais, mas, meu tempo está avançado. A moça deixou cair um pedaço de papel por acidente no piso da sala. Fernando olha para o relógio e eram quinze para as sete e os dois se despendem.
“Como? Será que quebrou?” pensou Fernando. Fernando correu para a porta para ver se a via novamente. A calçada estava deserta. “Ela deve ter entrado em alguma casa”.
O jovem tobiense foi para o trabalho. Não mais pensou no ocorrido. Agora sua preocupação era o horário. Ao chegar à loja, desceu de sua bicicleta e nem se apercebeu que a porta principal estava fechada, coisa rara em Tobias; passou pela porta lateral e entrou na loja. Um grupo de funcionários conversava em um quiosque que ficava de frente ao estabelecimento comercial.
- Um rapaz tão bom. Quem diria?
- Num é Feitosa. A gente nunca sabe.
O moço Fernando ouvia as coisas e ficava cada vez mais cabreiro. Seu emprego estava por um fio. A imagem da jovem moça saltou-lhe a mente fazendo-lhe entrar em devaneio. “E se eu achar o ouro de Aragão?” “Ah, aquela mulher é louca”. Não havia expediente na loja. Estavam servindo café e chá. No meio do salão estava um caixão e quatro velas grandes. Duas na cabeceira e duas nos pés. O caixão estava lacrado. As pessoas falavam baixinho.
- Ele foi um jovem trabalhador.
- Sim, sempre cumprira com seu dever.
- Nunca nos deu trabalho.
- Ele era um rapaz solitário. Contudo não se entregou a morbidez.
Fernando estava muito embaraçado. As pessoas desviavam dele o olhar. Segundo ele, estas coisas aconteciam para desestabilizá-lo no ambiente de trabalho. Fernando perdeu a calma e gritou: “Maldita falta, agora o clima está assim”. Ninguém disse nada. Fernando se sentou em uma poltrona cor de vinho e observava o movimento. O padre de Tobias chegou, deu as últimas graças ao finado. Logo em seguida formaram a fila para acompanharem o féretro até o campo santo. Seu Gildervam contratou um carro de som que avisava a comunidade sobre o enterro. Entre um aviso e outro uma Ave Maria. As pessoas choravam com o passar do cortejo. Na avenida sete, a principal da cidade, os comerciantes baixaram a porta pela metade em homenagem ao grande tobiense. Até o bar de Walter fechou as portas naquele dia. Os beberrões protestaram defronte ao bar, mas, nada conseguiram. A cidade de fato sofria com a despedida de seu filho ilustre.
- Mas, rapaz como pode?
- Sei não. Tobias não é mais a mesma.
- Como a cidade está perigosa.
- Ele morreu dormindo, coitado! Nem percebeu nada.
- Ainda bem que não sentiu dor.
- Cortaram-lhe a garganta com um corte profundo.
- A polícia não tem pista do assassino.
- Acharam o cadáver em adiantado estado.
- E os parentes. Todos mortos. Ele morava só. Coitado!
- Fernando lembra-se de mim?
- Sim, você esteve hoje pela manhã em minha casa.
- Vim ver o enterro. Você sabe como ele morreu?
- Nem sei quem é.
- Não há documentos. Não conhecemos sua família.
- E o que o corpo dele fazia na loja?
- Dizem que ele era um Aragão. Por isso foi velado com honras.
- Moça, quem é esse Aragão?
- Aragão foi o homem que desbravou esses sertões junto com Belchior. Ele ficou muito rico. Criava gado e faleceu no alto da Serra da Praça. Diz o povo que ele de lá olhava a Serra do Canine onde ele escondeu o ouro no dia de sua morte. Aragão correu sangrando do Canine a Serra da Praça. Ali, ele puxou sua espada e apontou para Tobias, na época, Povoado de Campos, e disse: “Todos os sertões do norte se lembrarão de ti”. Até hoje ninguém entendeu o que o pioneiro quis dizer. O que interessa mesmo é o ouro dele. Continua um segredo. A Associação de Achados e Perdidos detectou um parente seu com parentesco direto com os Aragãos. E o que é mais curioso, é que você é o único vivo, eu acho.
A palavra vivo entristeceu Fernando. “Vivo? Sinto-me morto!” Mas, afinal, quem era a pessoa do caixão? Essa foi a pergunta que Fernando tentou responder no caminho de volta para sua casa. Em casa o rapaz comeu e foi para a televisão. “Que moça estranha, que departamento estranho: Achados e perdidos; nunca vi isso. Devo ter enlouquecido”. “A loucura parece tão racional. Estudamos a loucura e vemos sua lógica, mesmo assim, continuamos a chamá-la de louca”. Pensou Fernando com os olhos distraídos da tela da TV que contracenava com ele. Sem querer o rapaz olhou para o chão da sala perto da porta da frente e viu um pedaço de papel, como aquele usado para recados. Nele estava escrito: “Rua do Amparo. Maria, beijos eternos”. Fernando leu o papel sem dar atenção ao seu conteúdo. Seus olhos retornam instintivamente para a televisão.
“Amanhã o tempo estará aberto com sol durante todo o dia”.
“Compre Ultra-ozone, a melhor proteção para sua família”.
“Beba com moderação! Se beber, não dirija”.
“O governo aumentou mais três milhões de postos de trabalho”.
“Obama, o primeiro Presidente negro americano perdeu espaço no Senado”.
As imagens e vozes se embaralharam na cabeça de Fernando cujos olhos sucumbiam ante o peso do dia tão cheio de contrariedades. O rapaz caiu no sofá e sua respiração dizia que seu sono seria profundo.
- Nando, onde você está? Nando, Nando!
- Descobre se puder.
- Venha cá seu danado!
- Nem me pega! Há, há, há.
- Vou te pegar seu menino matreiro.
Fernando fazia catequese para a primeira comunhão. O padre seminarista João gostava muito de brincar com os catecúmenos depois da lição. Sua brincadeira predileta era esconde-esconde. Muitas foram as vezes que Fernando sentiu aquela mão fria pegar em sua genitália. Quando isso acontecia, ele fingia estar brincando de esconde-esconde; o padre João tinha muita dificuldade em obter o afeto do pequeno.
“Você não conte a ninguém sobre nossas brincadeiras. Ou eu peço para Deus te punir. Entendeu?”
Toda vez que João falava assim com Fernando, seus olhos saltavam de suas órbitas e sua face se inflava como um peixe sapo. Fernando entendia que era uma ameaça. O rapaz cresceu e logo as lembranças da primeira comunhão com Cristo desapareceram, ou pelo menos foram escondidas em algum lugar. Depois da morte de sua mãe, o rapaz não saía mais de casa e gostava de freqüentar ambientes calmos e de preferência noturnos, entretanto, muito raramente.
- Fernando tem um homem aí.
- Onde?
- Aí na frente da casa.
- Deixa de brincadeira.
- Não sei não. Será ladrão. Vá lá ver quem é.
- Silêncio.
Fernando sente duas mãos agarrarem seus braços por trás. Depois outra mão segura seus cabelos e logo em seguida percebe o sangue quente vertendo de sua garganta. À proporção que o sangue vertia com mais força, seu corpo sentia frio e seus membros, braços e penas tremiam descontroladamente. Seu corpo foi deixado no chão de seu quarto.
Era quinze para as sete quando o moço de Tobias acorda. Olha para o relógio de seu braço e ver que está atrasado novamente. “Não entendendo. É muita sorte, todo dia que eu olho para este relógio, ele marca a mesma hora. Deixa o café para lá. Vou direto para o trabalho”. A caminho do trabalho ele encontra a moça estranha da Associação.
- Você parece mais alegre hoje. Dormiu bem?
- Sim, dormi sono profundo, mas, sonhei com morte. Sonhei que eu morria. Mas, incrível é que estou alegre, dá para entender a cabeça da gente?
- E você descobriu o ouro de Aragão?
- Não. Quer dizer, acho que sim.
- Como assim? Não entendo.
- Achei porque agora posso com mais clareza dizer tudo que penso. E não porque a pessoa ainda está dormindo.
- Sei nem todo mundo acorda cedo.
- Mas depois você conversa com ele.
- Tá bom, até mais.
Os dois se separam no trevo dos boxes, alto comércio de Tobias. Ninguém percebeu. Todo mundo estava ocupado comprando e vendendo ou comprando ou vendendo, outros apenas passando por lá. A caminho de sua loja, o moço tem uma idéia, “Vou, depois, ao cemitério ver o nome do dono do caixão”. Fernando andou a loja toda, brincou com os amigos, mesmo sem risadas ou atenção; ele interpretou tudo como uma brincadeira que logo passaria. Assim, o dia passou rápido. O relógio da loja marcava quinze para as sete. Sete da noite é obvio. “Está um pouco tarde, todavia meu desejo de ver esse nome é maior”. Pensou Fernando.
O cemitério de Tobias sempre foi mal iluminado, na verdade, a Rua do Amparo é mal iluminada há séculos. Às vezes as pessoas entram para fumar maconha ou apenas namorar. A delegacia fica a uns cem metros de distância; qualquer coisa a policia está em cima. Fernando pulou o muro baixo da frente e seguiu agachado em direção ao sepulcro do rapaz velado na loja. Na verdade era uma gaveta e nela no cimento ainda molhado escrito estava o seguinte nome: Fernando de Sousa Pinto e ao seu lado estava a foto de uma moça com óculos grossos e o seu nome Amélia da Cruz Medeiros. Fernando se lembra do pedaço de papel que tinha escrito: “Rua do Amparo, Maria, beijos”.
- Como? Eu? E ela?
- Sou eu, você não lembra?
Seus corpos estavam em decomposição, um diante do outro. Suas bocas não articulavam palavras, eles ouviam o que pensavam. No entanto, Fernando insistia em acreditar que estava vivo. A moça com muita ternura diz:
- Procuro por você há muito tempo.
- Quem é você, afinal?
- Maria de Aragão.
- E eu sou Aragão, então?
- É!
- Nem morto eu acredito em você, tudo isso deve ser outro sonho maluco meu. Quando eu acordar tudo estará esclarecido.
- Tá bem, meu amor.
- Não me chame de meu amor! Nunca vi você antes na minha vida.
Fernando sonhou até cansar de sonhar. Depois que o moço parou de sonhar, ele retorna a Serra da Praça e de lá olha para Tobias todos os dias religiosamente. Nunca mais parou de olhar a humanidade construir seus sonhos em Tobias.
- Aragão! Aragão!
- Sim, Maria.
- Acorde!...