Véspera Madrilleña
Vinte e três de dezembro, o La Vaguada lotado e lá foi Pepita para as compras de última hora. Em lojas repletas de coelhinhos peludos e ovos de chocolate, ela se acotovelava com outros atrasadinhos. O mais incômodo mesmo eram as músicas judaicas que se repetiam em todos os auto-falantes por onde andava, em especial a Hava Nagila.
O tumulto começou na Oysho, onde quatro vacas tentavam comprar casacos de pele de raposa, quando foram interpeladas por ativistas do Justicia Animal, que gritavam palavras de ordem contra a matança de animais. Elas, peruíssimas, apertavam os mimos peludos contra seus úberes, argumentando:
– Nós temos direito!
– É uma reparação!
– Como herbívoras, sofremos séculos de jugo, num mundo dominado por devoradores de carne.
Isto confundiu um pouco os ecologistas, já que também são “veganoxiitas”. Após alguma deliberação, invalidaram este raciocínio de que um erro justifica o outro e voltaram à manifestação.
Pepita quis aproveitar-se da situação para furar a fila do caixa, mas sua manobra foi descoberta por um toureiro anão que se postou à sua frente em posição de combate, espada e capa vermelha nas mãos. Diante daquela cena, a multidão que os cercava exclamava “Olé!”, a cada movimento que eles faziam: ela para avançar ao caixa livre, ele para impedi-la.
Aquele impasse durou uma eternidade e só encerrou-se quando uma monstruosa cabeça de touro que enfeitava a entrada da loja saltou da parede com moldura e tudo, avançando sobre o homenzinho:
– Foi por causa deste sujeitinho irritante que eu perdi a cabeça! – justificou-se.
Com uma chifrada, jogou o pequenino na praça de alimentação, sobre uma grande mesa onde turistas ingleses haviam conseguido que um dos restaurantes lhes servisse arroz com ovo, já que acovardaram-se diante das paellas, tapas e todas aquelas comidas espanholas condimentadas e gordurosas.
Pepita pode enfim pagar suas compras. Conferiu o relógio: quase 16 horas. Desanimou-se. Seu horário de almoço estava acabando, nem que comesse muito rápido chegaria a tempo no trabalho. Comprou um sanduíche e seguiu para o elevador. A porta ia se fechando quando um grupo de figuras deformadas em cubismo entrou. Elas cercaram Pepita com suas caras tortas em esgar de dor.
– Quem são vocês? – perguntou.
– Esboços de Guernica...
Como as figuras olhassem insistentemente para o pacote da lanchonete que carregava, Pepita perguntou:
– Fome?
– Sim! – elas responderam.
E, sem dar chance de reação, engoliram o pacote inteirinho, disputando-o belicosamente entre elas. Em instantes suas feições mudaram e tornaram-se suaves.
– Presumo que esta seja a paz... – Pepita disse.
“Já eu, devo estar com cara da outra parte do quadro” – completou em pensamento, ao sentir o estômago roncando.
Desembarcou na garagem e ia correr em direção ao seu carro quando deparou-se com um grupo de dançarinas de flamenco que ensaiavam logo à saída do hall de elevadores. Ela tentou desviar por um lado. Havia uma centena de curiosos atrapalhando a passagem. Pelo outro, os carros dos curiosos é que tumultuavam. Resolveu passar pelo meio mesmo, atrapalhando as moças. Foi um Deus nos acuda! Todas avançaram sobre ela, com seus sapatinhos barulhentos, saias rodadas e leques. Foi salva do linchamento pelo grupo do Justicia Animal. Ao testemunharem o ataque covarde das dançarinas sobre a pobre senhora, partiram em sua defesa, aos brados de “salvem as baleias!”.
Pepita virou uma fera:
– Baleia, eu?! Só estou um pouco cheinha!
Ao ouvir isso, os ativistas reconheceram o erro e deixaram que ela se virasse com suas agressoras. Pobre Pepita! Enquanto apanhava, gritava:
– Voltem! Voltem! Sou baleia, sim! Voltem!
Em vão: nenhum deles falava baleiês... Quando as moças partiram, Pepita recolheu as compras e o que lhe restava de dignidade e refugiou-se no carro. Fechou os olhos. Ao abri-los, estava nas arquibancadas do Coliseu.
– O que o Coliseu veio fazer em Madrid!? – ela questionou, confusa.
– Isto é surrealismo, baby! Tudo vale se fizer sentido. – gritou, da arena, um cristão, sendo devorado por um leão.
– E qual seria o sentido disto? – ela insistiu.
– Já pagou imposto de renda no Brasil? – perguntou ele, sendo engolido em seguida.
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Texto escrito para o 7° Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Categoria Conto - Etapa 1.
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