O homem que pairava
O serviço não rendia como antigamente e as dores nas costas estavam a cada dia que passava mais insuportáveis.
Sentiu uma tontura, largou a enxada e tombou para traz. Sentiu que caía, mas não caiu, pelo menos não sentiu que caiu ou que tocou o chão. Não sentia o chão, ou a terra. Olhou em sua volta e viu que não estava no chão, viu que pairava a um palmo dele. Estava parado no ar!
Tentou se levantar. Tentou apoiar um dos pés no solo, apenas conseguiu se distanciar ainda mais para o alto. Cerca de um metro. Como aquilo poderia acontecer?
Virou-se para o lado, acabou rodopiando deitado no ar. Forçou os pés para baixo e como se tivesse um eixo na cintura, que o sustentava, levantou-se como se estivesse preso por este e conseguiu ficar em pé, no alto, sem alcançar o chão.
Inclinou-se para frente, rodopiou novamente e parou de cabeça para baixo, esticando os braços pode apoiar as mãos no solo. Com as mãos no solo empurrou seu corpo e voltou a ficar em pé, no alto. Sentiu-se como um boneco de pebolim.
Só pensando em se aproximar de uma árvore ali perto, se deslocou no ar como se voasse e conseguiu alcançá-la. Esticou um dos braços e circulou a árvore uma vez. Voava.
Deitou-se e ficou ali relaxado sentindo uma brisa fresca que circulava, pensando no que estava acontecendo e sem conseguir achar uma explicação para aquilo.
Quando teve sede, o simples fato de observar a moringa encostada em uma árvore, fez com que ela se destampasse e a água saísse pelo gargalo em porções, pairando no ar vieram na direção de sua boca, fez um bico e sugou o líquido fresco. Quando matou sua sede a água que pendia no ar voltou rapidamente para a moringa e a rolha girou fechando-a.
Ele pensou em seu serviço. A capinação estava parada e ele não ganharia o dia. O homem olhou para sua enxada e o cabo estremeceu. Ele estremeceu também. A ferramenta se deslocou como se alguém a segurasse e começou sozinha a roçar o matagal.
Ele deslocou-se no ar para chegar mais perto da enxada e seu pensamento fez com que ela capinasse o mato com maior rapidez e eficiência, enquanto ele dormitava no ar. Depois de certo tempo as dores nas costas passaram e ele começou a sentir fome.
O embrulho que ele trouxera na bolsa abriu-se e de lá voaram para perto dele a marmita, duas laranjas e uma faca. Com um movimento suave ele se pôs na vertical com os pés quase no solo. Encolheu suas pernas e ficou sentado no ar.
O arroz se misturou com o feijão, e em pequenas porções e quase enfileirados, saiam da marmita e voavam para sua boca, que os mastigava aos poucos, enquanto o restante aguardava no ar bem em frente à boca, que ele engolisse, para que mais um pouco pudessem entrar. O ovo cozido rompeu-se foi salpicado magicamente, e todas as partes vieram para que ele comesse. A faca girou rapidamente com o comando de seu pensamento e as laranjas foram cortadas, depois espremidas no ar por mãos inexistentes e o suco foi ajuntando-se e depois foi sugado pela boca. Satisfez-se. E suas coisas voltaram para a bolsa de onde saíram.
Ele tentou pisar o chão, queria pegar o rastelo e amontoar os capins cortados, e a ferramenta começou a realizar o trabalho sozinho. Seu facão girou no ar e foi podar as árvores, o forcado carregava os montes de mato e galhos cortados, amontoando tudo nos troncos dos pés de frutas. Com apenas sua vontade as ferramentas faziam simultaneamente todas as tarefas.
Rapidamente o trabalho de uma semana ia sendo realizado em apenas uma tarde. O homem sorriu. Iria impressionar o patrão. Com certeza iria.
Ele se deslocou mais uma vez no ar. Escolheu uma sombra bem acolhedora, a brisa ainda soprava fresca. Virou ficando de lado. Dormiu.
Foi encontrado pelo patrão às dezoito horas, caído sobre a árvore na qual adormecera.
O forcado estava fincado na barriga, o rastelo nas costas e o facão no peito. A enxada desapareceu descontrolada capinando pelo mundo. Muitos contam que suas plantações foram cortadas em madrugadas de lua cheia por uma enxada sem roceiro, outros acham que é mentira.
Todos pensam que o homem que pairava foi assassinado por algum maníaco, mas foram suas ferramentas revoltadas com o trabalho escravo que se rebelaram e acabaram matando-o, enquanto ele dormia.