Cantiga da noite
Estou em uma estrada... Da qual achei não existir... Olho para um lado... Olho para o outro... Nada familiar...
Não sei onde estou e nem como vim parar aqui...
Fecho meus olhos... Deixou minha audição mais aguçada...
Posso ouvir o nítido descer de água de uma cachoeira...
Começo a andar, como em sua direção... Em meios a pedras soltas pelo chão batido...
Sigo em frente desviando de um pequeno galho caído de uma arvore um tanto antiga, com sua casca começando a soltar, porém com lindas folhas verdes...
Assusto-me com o repentino correr de duas crianças descalças chutando uma pinha, como que jogando bola...
Logo ao longe elas somem sem que haja tempo para perguntá-las onde estou...
Ainda confuso, e até certo ponto incrivelmente ludibriado pelo belo pasto que surge dentro a mata densa...
Posso até contar duas vacas, um boi, duas ovelhas e um cachorro peludo a me receber com alto latido...
Um pouco mais adiante vejo ao pé da montanha, uma pequena casa de madeira, aparentemente vazia...
Já é tarde quando noto ao fundo da casa uma mulher saindo com seus dois baldes em direção a um poço de água...
Mesmo assim caminho em direção a pequena casa de vigas de madeira com um pouco do que ainda sobrou da tinta, com uma simpática varanda, nela há uma cadeira de balanço e uma banqueta de madeira... Subo os degraus da escada que range a cada passo... Chego à porta, bato uma vez, duas, três... Provavelmente não há ninguém... Devo esperar, sento-me na cadeira de balanço, que é quando percebo um violão atrás de mim... Um tanto desafinado assim como eu tentando tocar algumas canções...
Ao longe avisto um senhor vindo a passos curtos puxando um pequeno cavalo... Mesmo não me conhecendo ao me notar sentado o senhor já vem com um sorriso como quem vê um filho...
Mas antes de me alcançar, ele para olha para o alto, estica a mão esquerda, puxa uma maçã na árvore, logo após puxa outra, e ainda uma terceira...
Novamente com seu leve caminhar e sem o cavalo hora amarrado a árvore com umas das maçãs colhidas...
Novamente os barulhos da escada rangendo a cada passo, estico o braço para cumprimentar o simpático senhor que com seu chinelinho com fitas de couro desgastadas, seu chapéu, e um capim na boca a mastigar, que no mesmo movimento sem me dizer uma palavra me dá uma maçã, senta ao meu lado, puxa o violão, morde um pedaço da maçã e a acomoda em seu joelho, aloca o violão em seu outro joelho, e lentamente toca lindas melodias, mesmo com o violão estando aparentemente desafinado, não demora muito, as duas crianças que a pouco eu havia encontrado na estrada, estavam sentadas na grama com os olhos brilhando, com uma emoção única...
Entretido com a música, nem percebo a senhora entrar com a água, apenas soube disso, pelo delicioso cheiro de café que toma conta de todo o lugar...
Ainda não sei onde estou, mas não quero estragar esse momento com essa pergunta...
Passados alguns minutos, observo as crianças não cantando, mas se movimentando conforme a música, de um lado para o outro... Que por sinal eu nunca havia ouvido...
O mais perto de uma comunicação que tive até agora com o senhor é na troca de uma música por outra, que o senhor violeiro me olha com um sorriso e com uma singela piscada de olhos...
O cheiro de café se aproxima, é a senhora da casa me trazendo uma caneca de ferro, com um café espetacularmente saboroso... Como se ela soubesse como eu gosto do café, o quanto se põe de açúcar, só faltou o leite, mas isso é de menos...
Tomo meu primeiro gole, porém um pequeno gole para que renda mais...
Praticamente abraçado a xícara de café não percebo o violeiro sair do meu lado...
Em meio a muita paz de espírito, e felicidade ainda não entendo muito bem o que está acontecendo...
Procuro no entorno da casa o senhor e o vejo entrando em um pequeno celeiro... Vou junto a ele, empurro a grande porta de madeira, e vejo o senhor sentado em um banquinho ordenhando uma vaca... Ele estica o braço em minha direção puxa a caneca com ainda metade do café e a completa com leite... E me serve...
Eu ainda sem acreditar fico sem palavras, é como se ele ouvisse meus pensamentos...
Eu tentando entender o ocorrido, pude escutar, mesmo que sem realmente reparar, o senhor sair arrastando seu chinelo a cada passo dado...
Saindo do celeiro eu decido agradecer a bela hospitalidade dessas pessoas, que me proporcionaram uma bela tarde mesmo não me conhecendo...
Em uma distração, escapa uma das ovelhas, que vai em direção a mata...
Sem pensar duas vezes corro e vou à sua direção...
Passando em meio às árvores, pouco consigo ver da ovelha, mas não desisto...
Passado muito tempo, não a vejo mais...
Estou no meio da mata, agora perdido...
Vou para um lado, vou para o outro, passo por cima de uma pequena ponte de madeira, que corta o riozinho de água transparente... Aproveito para beber um pouco dessa água...
Começa a ficar noite, pouco consigo enxergar...
Pássaros começam a se despedir, e grilos começam a dar seu olá...
Cansado, me encosto ao pé de uma árvore, esperando pelo melhor...
É quando fecho meus olhos e posso escutar uma cachoeira... Não demora, sigo em direção ao som...
As corujas também já se fazem presente com seu barulho peculiar e um tanto assustador a me aterrorizar...
Já é muito tarde e não sei onde estou...
Fico por horas sentado em uma grande pedra ao lado da cachoeira... Sem mesmo perceber, pego no sono...
É quando levo um grande susto, algo está sobre minha mão... Abro os olhos, mesmo sem querer abri-los, pelo temor...
É minha fiel amiga, a ovelha... A abraço com carinho...
Neste momento é possível ouvir ao longe um assovio...
Na mesma hora a ovelha ergue a cabeça, e se movimenta na direção do som...
Tento segura-la, para que não se perca novamente, porém ela insiste em ir... E começa a caminhar...
Penso, ela deve conhecer aqui melhor do que eu... Já é tarde, deve passar de meia noite... Vou junto com ela...
Caminhamos incessantemente, em direção aos assovios que estavam cada vez mais pertos...
Confiante na ovelha a sigo até a última árvore...
Atravessando-as mostrou-se novamente o grande pasto e agora pude até notar a grande lua cheia brilhante que toma conta do céu...
Chegando ao campo, a ovelha corre em direção do senhor violeiro, que assoviava a sua procura...
Fico um tanto constrangido pelo transtorno de quase ter feito aquele senhor perder um dos poucos animais que possuí, e caminho lentamente em sua direção...
Ao chegar a sua frente, percebo o senhor com os olhos marejados, quase que em lágrimas ao me olhar...
Falo ao senhor, “desculpe-me quase ter feito o senhor perder sua ovelha, mas por sorte o senhor conseguiu encontrá-la”.
Nesse meio tempo entre as árvores novamente há uma grande movimentação...
É quando de lá saem os dois garotinhos guiados pela outra ovelha, com face de tristes, como quem não acha o que procura, mas essas faces continuam assim apenas até o momentos no qual eles me vêem...
O senhor me olha nos olhos, coloca uma mão em cada ombro meu, e me confessa que não estava procurando a ovelha, pois a ovelha vai pro mato e sempre volta, já conhece o caminho...
Ele estava na verdade a minha procura...
Não consigo conter o choro, após o senhor me contar quantas pessoas ele já havia perdido para aqueles lados, inclusive seu filho que há tempos não o visitava e o fez, mas acabou se perdendo na mata e nunca mais foi visto...
Por meses, o senhor contou que procurou seu filho, mas sem sucesso... Inclusive, que quando cheguei a sua casa ele retornava de uma procura...
Sem conter as lágrimas o senhor me abraça fortemente... E pergunta se tenho onde dormir...
Abro um sorriso, respondo que não...
Em uni som todos dessa família riem, e dizem: “Agora tem!”
Passados alguns dias, já aprendi muitas coisas... Mas com certeza estou aprendendo o valor das coisas mais simples e que para mim agora são as mais importantes...
Em todas as caminhadas de procura que faço com o violeiro que é como o chamo, ele me conta sempre uma nova história...
Se iremos encontrar seu filho, não posso ter certeza... Porém enquanto houver forças em mim para procurar, e tentar ajudar esse senhor que fez muito mais do que poderia ter feito por mim, eu o farei...
Mas ainda não consigo recordar nada sobre mim...
...
Um ano e meio depois, encontramos o filho do senhor, e vivo. Foi uma história um tanto impressionante, eu mesmo ainda não entendi como o filho dele conseguiu, e como eu pude ver ele tão longe... Foi algo incomum... E pensar que aquilo era seu único alimento... Fiquei em lagrimas quando o vi... Mas quem realmente se emocionou foi o violeiro...
...
Ainda não sei em qual ano estou... Nem meu nome... Nem como isso tudo aconteceu...
E ainda não sei como vim parar aqui, mas agora sei o porquê vim parar aqui!
Leandro Morg