Expiação

A mãe havia tomado um Diazepan e um Rivotril, mas já eram duas horas da madrugada e nada de dormir. Estava lá deitada na cama, olhando para o teto e ouvindo o marido roncar. Às vezes os remédios funcionavam, às vezes não. Esse era o caso daquele dia e, como sempre, quando isso acontecia, ficava se lembrando do tempo em que se casara, dormia como um anjo e o ronco grave do esposo era uma sonoplastia sonífera que a fazia dormir... Agora, aquele barulho infernal a despertava; nervosa, ela ficava recapitulando os problemas do dia: a briga dos filhos por causa da televisão, as baixas notas do rapaz, o novo namorado da garota, a discussão que tivera com o marido por causa da sogra, a conta de luz que aumentara, suas rugas e seus cabelos brancos...

Dormiu. Custou, porém dormiu. Não aquele sono dos justos, profundo, constante, oco e sem sonhos, mas um sono picado, entremeado por fragmentos de pesadelos inacabados; dentre eles o mais comum era um em que ela vestia uma meia calça medicinal para varizes, suas pernas, pesadas, cansadas de suportar o peso da vida daquele dia e, de repente, aparecia um gato acinzentado, quase sem pêlos, esquelético, que tentava subir-lhe pelas pernas, as garras grudando no tecido da meia, desfiando-a, chegando mesmo a cravar-lhe nas veias inchadas, o sangue esguichando pelos orifícios. Então acordava, ensopada de suor.

Não foi o despertador que a acordou às cinco e trinta, mas um barulho diferente, estranho, parecia um.... mugido de vaca! Sim, era um mugido de vaca e vinha de dentro da própria casa! A mulher se levantou rapidamente, o marido virou para o lado resmungando alguma coisa e caindo no sono novamente. Era sábado, nem ele nem o casal de filhos precisava acordar cedo. A mãe calçou errado as sandálias e foi arrastando os passos para ver o que era aquilo. Ao chegar à sala, deparou-se com o absurdo que imaginara: era mesmo uma vaca, grande, gorda e malhada, em cima do tapete, mugindo e mastigando na sua condição de bovídeo, presa por uma corrente cuja extremidade estava fincada no assoalho de tábua corrida. Aproximou-se cautelosa do animal, esfregou os olhos como que para dissipar uma miragem ou despertar de um delírio. A vaca continuava lá. Ruminando. Parecia olhar fixamente para um porta-retrato, onde estava uma foto da família. A mulher começou a rodeá-la lentamente, protegendo-se fora do diâmetro imaginário em que a outra poderia se locomover. Quem fizera aquilo? O pior era que a corrente parecia brotar do chão, como uma raiz rompendo o concreto na rua. A vaca mugiu novamente, alto e reverberante. A mulher se assustou, saiu correndo pelo corredor, entrou no quarto, balançou o marido, fustigando-o com gestos bruscos: - Acorda homem! Tem um vaca na nossa sala de estar!

O marido acordou resmungando. As pálpebras semi-fechadas:
- Que foi mulher?! Ficou louca?

- Tem uma vaca na nossa sala de estar! Vem ver! Você não vai acreditar.

E não acreditou mesmo. Ficou atônito, pasmado, estupefato, com uma das mãos sobre a boca, observando a vaca. O que o perturbou nem foi o fato de vaca estar ali, dentro da sua casa, mas sim a ausência de vestígio de trabalho humano: não havia pó, serragem ou lasca de madeira, apenas os grilhões que surgiam do chão e circundavam o pescoço dela. E os elos da cadeia de metal? Totalmente inteiros, uniformes, sem um mínimo traço de emenda. Saindo de seu torpor, ele segura a corrente pelas duas mãos, inclina-se para trás, faz uma força imensa para arrancá-la, as veias do pescoço estufadas. Tudo em vão: a corrente estava firmemente grudada no chão. Ele pára ofegante. Esfrega o queixo. A filha surge do corredor.
- Que é isso?

O pai e a mãe olham simultaneamente para a adolescente. Ele, com os cabelos grudados na testa pelo esforço, responde nervoso:
- Uma vaca. Não está vendo?

- Como ela foi parar aí? – perguntou a menina abrindo os braços.

Logo atrás, aparece o rapaz bocejando. Passa pela cena inusitada, vai direto à cozinha e grita para mãe:
-Mãeeeee! Não tem café?

-Não. Tem leite. Serve? – respondeu a mulher com um sorriso meio sarcástico, meio delirante nos lábios.

O marido olha para ela sério, reprovando a brincadeira.

O rapaz entra na sala coçando as nádegas e pára abruptamente, com o queixo caído, ao ver a vaca.
- Pô, que doido!!! Como ela foi parar aí? – repete a mesma pergunta que a irmã.

- Acabei de colocar, não está vendo? – ironizou o pai.

- Pô, mas não tem nem sinal de trabalho, tipo assim, uma sujeirinha!

- Pois é, idiota, ela apareceu aqui sem mais nem menos, alguém deve ter feito isso à noite.

- Por que alguém faria isso? – indagou a mulher, balançando a cabeça.

- Pô, se fosse alguém a gente iria ouvir o barulho. Eu não ouvi nada – falou o rapaz.

- Nem eu – completou a moça.

- Como se vocês tivessem o sono leve como o meu, né? Dormi eram quase três horas, acordei agora e tenho certeza de que não ouvi barulho nenhum, a não ser o ronco do seu pai... é talvez fosse isso: o trovão do ronco do seu pai me impediu de ouvir.

Os filhos riram.

- Calem a boca! Isso não é hora para brincadeiras. Tem algo estranho aqui. Mesmo se alguém fizesse isso, teria deixado algum tipo de sinal, mas não tem porra nenhuma! A corrente sai da tábua como se fosse uma planta.

- É, e o chão está enceradinho como eu o deixei ontem – comentou a mulher apontando para todo o assoalho da sala.

- Vamos procurar se tem alguma pista de algo pela casa, mas cuidado, heim! Anda! Vamos, não fiquem aí parados! – gritou o pai, tirando todos daquele estado de assombramento.
Procuraram em todos o lugares: levantaram os tapetes, vasculharam as latas de lixo, as portas, janelas e fechaduras, nenhum sintoma de arrombamento ou possíveis marcas de pegadas estranhas, nem das patas do animal encontraram. Nada.

- MMMMMMMMuuuuuuuuuuuuuuuuu. – mugiu a vaca e todos correram para a sala novamente, chegando quase ao mesmo tempo.

- Engraçado – disse a menina – ela parece que está encarando nossa foto na estante.

- Deve estar olhando para você, coleguinha dela, né? – zombou o garoto.

- Ou então você, pois acha que você é um touro por causa dos chifres – respondeu a garota.

- Calem a boca, seus idiotas, já disse, porra, isso não é hora de brigar. E você, sua tonta, vá pegar minha caixa de ferramentas – gritou o marido com a mulher.

- Tonta é a sua mãe, aliás, ela também é uma vaca – respondeu a mulher ao marido enquanto ia à garagem.
A mulher voltou quase arrastando a imensa caixa de ferramentas e a entregou ao marido.

- Imprestável!!! Como me deixa carregar esse peso todo sem nenhuma ajuda?

O homem abriu a caixa com orgulho, falando dos nomes e dos tipos de ferramentas, da marca e do made in, uma verdadeira maravilha de última geração para os pais de família, comprada do programa Allshop. Contudo a serra de lâminas circulares para corte de metal, o machado afiadíssimo e até mesmo o maçarico, nada, nem mesmo um risco se fez em qualquer elo da corrente, que se mantinha ali intacta, trança de material misterioso indestrutível.

- Puta que o pariu! Que negócio é este?

- Acho que estamos todos tendo uma alucinação coletiva, o professor de filosofia falou um negócio desse na sala, doido... – o garoto tentou explicar.

- Que alucinação o quê? Não vê que estamos todos lúcidos – discordou o pai.

- Ai, porra!!! – Berrou o garoto ao ganhar um beliscão da irmã.

- Viu? -disse a menina- não é sonho nem alucinação.

- Agora, sua vaca, eu é que vou te pegar.

E o irmão pulou em cima da irmã que escapuliu para o outro lado, e ficaram os dois correndo ao redor da vaca.

-Paaaaaaaremmm!!!

-MMuuuuuuuuuuuuuuuuuu!!!

Gritou histericamente a mulher e mugiu bem alto a vaca.
Silêncio total. Todos estáticos.

- Porra, o que eu faço? Chamo os vizinhos? Não! Vamos virar motivo de chacota. Ligo para polícia? Como vou explicar essa porcaria para eles? Não sei nem o que fazer. Só falta a gente ter que criar esse animal aí. Mais gastos... despesas com ração... Que merda! – exclamou o pai.

- Tá louco? – interrompeu a mulher – Merda vai ser o que ela vai fazer se não tirarmos ela daí: vai cagar e mijar na minha sala toda. Meu tapete persa!!!

- Eu tive uma idéia – disse o garoto, indo à cozinha e logo depois voltando com um copo na mão. – vou beber o leite dela!

- Cuidado, ela pode te dar um coice!

- Não, mãe, ela parece ser tão mansinha!

O menino, lentamente, aproximou-se da vaca, arredou a mesa de centro para perto dela, sentou-se e, meio desajeitadamente, começou a comprimir-lhe a teta. E não é que, mesmo sem ter ordenhado qualquer animal antes, o primeiro jato saiu tão impetuosamente, tão abundante, tão caudaloso, a ponto de quase encher o copo inteiro? O líquido era de um branco viscoso, espumante, morno e exalava um cheiro envolvente, tenro e suave, produzido nas entranhas da maternidade para alimentar qualquer infância perdida.

E foi com ânsia que o rapaz levou o copo à boca. Lábios tremendo e coração palpitando. Mas bebeu. Bebeu primeiro experimentado, depois fazendo um aceno de aprovação com a cabeça para a família que o observava como se ele estivesse provando da ambrosia que Hebe servia aos deuses. Depois bebeu a goles fortes: o pomo-de-adão em movimentos claramente visíveis. O leite escapulia pelas extremidades da boca, descendo pelo pescoço, ensopando a camisa do pijama. Os olhos fechados, a fisionomia informando um sabor indescritível.

Qualquer um que estivesse ali, naquele momento, sentiria sede. Foi por isso que a mãe foi à cozinha e apareceu com mais três copos. O marido e a filha concordaram sem dizer uma palavra, cada qual apenas pegando o seu. A mãe assentou ao lado do filho, na mesa de centro, o pai e a filha se ajoelharam do outro lado da vaca. As quatro tetas agora ocupadas. Os jatos foram como o primeiro: jorros copiosos e golfadas fartas, de sobejar os copos de vidro e escorrer pelos dedos, braços e respingar pelos cotovelos. Poças alvas se formando ao redor de cada membro da família, os semblantes, iluminados.

Todos se serviram diversas vezes até se saciarem. O primeiro a dizer algo foi o pai:
- Meu Deus!!!

- Que é isso??? – exclamou a mãe.

- Doido... – murmurou o garoto.

- Será que tem jeito da gente guardar na geladeira? - perguntou a garota.

Não, não tinha. O leite secou completamente. Por mais que espremessem, por mais que apalpassem, por mais que apertassem e deslizassem a mão sobre as tetas, não saía uma gota sequer. O líquido havia exaurido.

- Engraçado. A vaca parece rir – observou o filho, começando ele mesmo a sorrir e aos poucos a soltar gargalhadas que contaminaram a todos os membros da família.

Em pouco tempo, todos davam risadas de arrebentar os pulmões, de fechar os olhos e balançar o corpo freneticamente. E uma mão nas pernas, puxou o movimento que se tornou um carinho, que refletiu no outro, cujo ombro recebeu a cabeça do companheiro ao lado, que retornou um afago. Os quatros estavam agora em pé, abraçados, rindo, chorando, acarinhando-se e perdoando-se.

- Esse licor-lácteo nos embriagou e ébrios, tornamo-nos fracos diante de nosso orgulho estúpido, rendemo-nos, assim, ao amor – disse o pai.

- O pai tá falando esquisito – observou a filha – mas... eu entendi!

- Já sei como retirá-la daí! – afirmou a esposa. Nos olhos, uma claridade espiritual – Vamos cortá-la e comê-la!

- Mas ela nos deu tanto de si... não seria isso uma maldade? – questionou a filha.

- Sim, uma crueldade – concordou o irmão - bebemos do leite dela até secar!

- MMMuuuuuuuuuuuu! – novamente mugiu a vaca.

- Nossa! De novo ela parece sorrir, olhando para a nossa foto !!! – mencionou a garota espantada.

- Doido! Parece que ela está concordando com a idéia da mamãe! – observou o irmão.

- Posso usar alguma ferramenta minha, para matá-la. – disse marido.

- Não! – retrucou a mãe.

A genitora chamou a filha e ambas entraram na cozinha. Um barulho de gavetas e portas, um remexer de talheres, sinfonia de aço inox. Em pouco tempo as duas aparecem no umbral da sala. A mãe com um facão que havia sido adquirido para alguma ocasião especial, em que convidados importantes estivessem presentes.

O objeto reluzia refletindo um facho de luz da alvorada que vinha de uma aresta da cortina. A esposa entregou-a ao marido. O movimento fez um ângulo que jorrou o brilho da aurora nos olhos do homem, mas isso pareceu não incomodá-lo, ao contrário, a claridade pareceu repercutir dentro dele. Os olhos pareciam efeito de fotografia, quando ficam vermelhos.

Os quatro se posicionaram quase em ângulos simétricos ao redor do animal. Havia uma compaixão infinita no olhar de cada um, porém a única forma de tirar a vaca dali era despedaçando-a, visto que os grilhões eram, aparentemente, indestrutíveis. Mas não era esse o motivo do sacrifício, era algo mais subjetivo, mais inconsciente, mais etéreo...
Embora o pai nunca tivesse matado nem mesmo uma frágil galinha e tampouco entendesse da anatomia de qualquer ser, o primeiro golpe foi fatal. Cortou o pescoço do animal, atingido uma veia, talvez importante, de onde esguichou sangue suficiente para cobrir todo o porta-retrato da família, e a estante, e a estátua de mármore do deus grego hades (porém eles não sabiam), e as taças de cristal (chegando mesmo a quase encher algumas delas), e o tapete persa até que a vaca caiu, quebrando a mesa de centro, a respiração diminuindo. O folêgo da família quase acompanhou simultaneamente a frequencia do animal até a morte.

- Meu Deus! Ela não emitiu um único gemido! - exclamou a filha interrompendo o silêncio.

A poça de sangue se esparramava grossa, brilhante, exalando um cheiro forte de vida por todo o aposento num movimento lento, porém constante e, aos poucos, aquele líquido viscoso-rubro já tomava conta de todo o chão de tábua corrida da sala, formando um imenso espelho vermelho.

A mãe retornou à cozinha e trouxe mais facas. Distribuiu-as ao esposo e aos filhos. Todos se ajoelharam e começaram a cortar. Primeiro a pele, um couro se deixou desprender numa peça quase inteira de veludo preto e branco. As carnes eram de um macio vigoroso, não oferecendo resistência à lâmina, porém apresentando a existência da fibra e os contornos de alcatras, contra-filés e músculos. Um cheiro agora de carne inundou a sala despertando uma fome estranha, algo entre primordial e essencial. Os ossos foram desmembrados, desarticulados, um a um, nenhum foi quebrado.

- Assaremos a carne – afirmou o pai.

E como se estivessem ensaiado, cada dupla foi para um local: o pai e o filho foram para o quintal nos fundos da casa. A mãe e a filha para a cozinha.

Lá fora, os homens retiravam toda a quinquilharia envolta por teias de dentro da pequena churrasqueira, que há tempos não era utilizada e, como não havia carvão, os destroços da mesa de centro, foram usados como lenha. Enquanto isso, mãe e filha carregavam peças gordas e consistentes de carne, colocavam em sacos plásticos, lotaram todo o freezer e a geladeira e depois, começaram a temperar o que sobrou: o sal grosso era jogado à medida dos olhos, e as quatro mãos revolviam as compostas gordurosas, vermelhas e fibrosas num revirar harmônico. Golpes eram desferidos, formando sulcos nos quais o sal, embebido da salmoura que minava aos poucos da carne, era introduzido.

O pai e o filho admiravam a força das mulheres, que carregavam vasilhas grandes lotadas de pedaços generosos de colchão mole, fraldinha, alcatra, costela e picanha, o contorno dos bíceps delicados iluminado pelo suor refletindo o sol da manhã.

O pai dispôs a grelha sobre um tronco de uma árvore que servia de mesa e todos se assentaram ao redor. A boca entreaberta esperava pelo movimento da mão, a língua recebeu um quinhão e desgustando, contorcia-se em prazer. O rosto desenhou na fisionomia o gozo profundo e os olhos fechados contemplavam uma diversidade de sensações, que se acumulavam no coração e explodiam num fluxo pela ramificação dos vasos. Floresceu um êxtase reverberado em pêlos eriçados por todo o corpo. Agora um entrelaçamento de oito braços formava um ser só, rosa carnívora orvalhada de lágrimas exalando o odor da dor transmutado em amor. As narinas contraindo-se e relaxando-se, fôlego misto de espírito e fumaça ascendendo em espirais lentos, formando uma nuvem que se dispersava sutilmente sobre a casa, despertando em quase toda a vizinhança saudades do que poderia ter sido, perdão para poder ser.

Há quem diga que viu uma estrela brilhando ao lado do sol pela manhã, naquele dia. Um mendigo, um meteorologista e um agricultor afirmaram ter visto algo como um cavalo voador, um Pégaso ou algo parecido atravessando o céu e sumindo no horizonte.

No centro comercial, na fila diante do açougue, alguns reclamavam do preço da carne.

Wellington P. Coelho
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 06/07/2011
Reeditado em 06/07/2011
Código do texto: T3078365
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