A porta
"Pessimista é aquela pessoa que reclama do barulho quando a oportunidade bate à porta"
( Michel Levine )
Como sempre, ele chegou do trabalho lá pelas dezoito e trinta e foi alimentar o seu único companheiro, se é que se pode chamar de companheiro um cachorro magro e pulguento, que nem balança o rabo para o seu dono. O animal ficava amarrado em uma corrente nos fundos da casa. Estácio, esse era o nome do dono do pobre cão, passava todo dia na loja da esquina e comprava a porção diária de ração, que despejava em uma latinha enquanto amaldiçoava: seu cachorro pestilento, inválido, só serve para me dar despesas...
Naquele dia, depois que alimentou Til (esse era o nome do cachorro), levou um tremendo susto ao ver que havia uma porta incrustada na montanha que ficava no fundo do seu lote. Essa montanha terminava formando um paredão rochoso com cerca de cinco metros de altura. Estácio chegou perto da porta e examinou-a com cuidado: ela aparentemente era de sucupira, possuía uma maçaneta feita de um material dourado (ouro não era, quem seria o louco de colocar ouro na casa de um desconhecido?) e uma chave na fechadura. O mais estranho era que a porta estava em um marco, com dobradiça e tudo. De manhã, com certeza ela não estava ali, ah, isso ele poderia garantir. Mas como a colocaram lá? E para quê? Não havia nada ali além de uma rocha, condensada e sólida como qualquer rocha que se preze. E agora, sem mais nem menos, aparece-lhe a maldita porta... Isso só poderia ter acontecido com ele. Ele que já levava uma vida medíocre desde quando se entendia por gente. Nascera com o cordão umbilical enrolado no pescoço e quase morrera asfixiado; parecia que aquilo era um sinal do que lhe aconteceria para o resto da vida: viveria com a corda no pescoço. Ele que sempre teve um péssimo desempenho na escola e que, se não fosse o tio, não teria o emprego de arquivista naquele maldito cartório; ele que nunca tivera sorte com as mulheres as quais só sabiam criticá-lo; ele que como Sísifo empurrava a vida como uma pedra para vê-la de volta ao vale no dia seguinte; ele cuja única sorte foi aquela casa sem graça que os avós lhe deixaram de herança, uma casa que parecia constantemente ameaçada pelo imenso paredão rochoso nos fundos em que, agora, sem nenhuma explicação lógica, aparecera uma porta.
Ficou durante um tempo meditando nas desgraças de sua vida, quando chegou à conclusão que deveria chamar alguém para que presenciasse o fato. O problema era que não tinha nenhum parente vivo, não desfrutava de um relacionamento amistoso com os vizinhos e nem sequer possuía um amigo a quem pudesse chamar. Lembrou-se do velho da casa da esquina que todos procuravam para pedir conselhos, um velho metido a jovem, freqüentador de clubes de terceira idade, que vivia estampando aquela dentadura risonha como se a vida fosse lá essas coisas... De qualquer forma, seria o único que o atenderia com uma certa hospitalidade. Portanto lá foi ele.
O velho realmente o recebeu bem: convidou-o para entrar, ofereceu-lhe café e ouviu com toda atenção o caso da porta, e, sem julgar que ele enlouquecera, acompanhou-o até a casa para averiguar o fato.
- Que coisa incrível, não?! Realmente é uma porta e muito bem colocada por sinal, trabalho de marceneiro de primeira categoria, e olha que disso eu entendo heim! Já ajudei meu pai em alguns trabalhos de marcenaria, quando eu era jovem. Não sei como conseguiram colocar essa porta aí nessa rocha... e você disse que foi de ontem para hoje que ela apareceu?
- É, foi – disse Estácio pensando consigo se aquele velho iria começar com aquela conversa de velho que fica lembrando tudo o que lhe acontecera na juventude, se iria começar um relato de como sua vida fora cheia de fatos agradáveis... Com braços cruzados e cara fechada, continuou – e agora não sei o que faço com isso.
- Por que você não abre? – perguntou o velho.
- Abrir? Para quê?
- Ora, uma porta foi feita para ser aberta, para que passemos por ela...
- Uma porta foi feita para ficar fechada, para separar dois ambientes, para que quem esteja em um lugar não veja o que está no outro. Não vou abri-la.
- Tudo bem senhor Estácio. Depende do ponto de vista. Eu já penso que as paredes servem para separar ambientes e não as portas, estas servem para ligar um local a outro, para que em uma determinada ocasião, possamos passar por elas.
- Não concordo que seria conveniente abri-la. Não sei o que há do outro lado.
- Mas de que outra forma o senhor saberá a não ser abrindo? E observe que quem a colocou aí, colocou-a com tudo: marco, maçaneta e chave, ele espera que o senhor a abra.
- E se tiver algo ruim do outro lado? Não quero me expor a nenhum tipo de risco. Já bastam os problemas que tenho.
- Infelizmente o senhor só saberá abrindo. E olha que a maçaneta e a chave são de ouro! Ouro puro. Disso tenho certeza, meu sogro era ourives e eu o ajudei durante um bom tempo de minha vida...
Lá vinha o velho com aquele discurso nostálgico de suas aventuras, de como sabia fazer isso ou aquilo. Decidiu interrompê-lo de vez:
- Não. Definitivamente não vou abri-la.
- Então quer que eu a abra para o senhor? Pelo menos assim vamos saber se há rocha lá do outro lado ou se há algo mais para ser explorado. Se houver, topo entrar com o senhor. Quem sabe não lhe aguardam coisas maravilhosas? Lembre-se de que a maçaneta é de ouro! Deve conhecer a história velha e conhecida do Abre-te Sésamo? Ás vezes, pode haver tesouros lá dentro... Talvez o senhor tenha sido agraciado pelo universo com um desses fatos inusitados que raramente acontecem na vida de um mero mortal; talvez a porta não seja apenas uma porta, mas um portal que o leve para um mundo de maravilhas... Já ouviu falar de Shangrilá? Dizem que lá é um vale maravilhoso encravado entre as altíssimas montanhas do Himalaia, lá as pessoas não envelhecem e nem morrem... Talvez essa porta seja uma entrada que dê para um caminho que o leve até lá... Olha eu acredito nisso, já vi cada coisa em minha vida, se eu te contar. Certa vez eu e meus amigos, quando brincávamos na roça, vimos um anjo voando no céu, um anjo com asa e tudo, outra vez...
- Sim, mas eu não vou abrir a porta, estou decidido. – disse Estácio em um tom firme e arrogante, agora tentando terminar de vez com aquela lorota fantasiosa do velho, que parecia ter esclerosado subitamente. Ele lá era homem de acreditar nesses absurdos? Ele era um homem-pé-no-chão que sabia da violência, da inflação, da corrupção, do egoísmo, do desemprego, das armadilhas que existiam nesse mundo perverso. Ele não era dessas pessoas idiotas, com um otimismo banal e, portanto concluiu: – Obrigado pelo senhor ter vindo, mas realmente não vou abri-la. Do outro lado pode haver muita coisa perigosa também, cobras, lagartos, ursos, ladrões e salteadores...
- Mas o senhor só vai saber disso abrindo, senhor Estácio! Antes abrir e saber o que há lá do que ficar na dúvida.
- Já disse que não e já lhe agradeci por ter vindo. Por favor, não insista. Depois eu vejo o que vou fazer com essa maldita porta. – E lá foi ele levando o velho em direção a porta da rua, empurrando-o pelo ombro, enquanto o idoso lhe narrava mil casos fabulosos pelos quais já tinha passado.
Velho chato e rabugento! - Pensou ele, encostado de costas na porta da casa que dava para a rua, depois que o outro fora embora. - Não sei onde estava com a cabeça quando fui chamá-lo. Shangrilá... Abre-te Sesámo..., ele deve é estar ficando louco mesmo! Espere aí! Eles acham que sou idiota, mas não sou não. A maçaneta é de ouro! Não vou abrir a porta, mas posso retirar a maçaneta e a chave e vendê-las. Posso fazer uma reforma nesta casa que vai causar inveja aos vizinhos... posso até mandar construir um muro alto, com cerca elétrica e tudo, que vai me separar desses vizinhos idiotas e mexeriqueiros que só sabem me criticar...
Ao pensar nisso, Estácio saiu correndo pela sala em direção ao quintal, bateu com o joelho na mesa de centro, balbuciou um palavrão, mas, animado com a tremenda idéia que teve, ignorou a dor, seguiu pelo corredor, atravessou a porta da cozinha, chegou ofegante ao quintal, pisou no rabo do cachorro, que lhe cravou os dentes no calcanhar, mas ele nem xingou o pobre coitado do animal, nem lhe deu um pontapé, como faria normalmente, pois ficou observando atônito o rochedo nu e cru, condensado, sólido como estava antes, sem porta e sem nada no fundo da sua casa.
Wellington P. Coelho
"Pessimista é aquela pessoa que reclama do barulho quando a oportunidade bate à porta"
( Michel Levine )
Como sempre, ele chegou do trabalho lá pelas dezoito e trinta e foi alimentar o seu único companheiro, se é que se pode chamar de companheiro um cachorro magro e pulguento, que nem balança o rabo para o seu dono. O animal ficava amarrado em uma corrente nos fundos da casa. Estácio, esse era o nome do dono do pobre cão, passava todo dia na loja da esquina e comprava a porção diária de ração, que despejava em uma latinha enquanto amaldiçoava: seu cachorro pestilento, inválido, só serve para me dar despesas...
Naquele dia, depois que alimentou Til (esse era o nome do cachorro), levou um tremendo susto ao ver que havia uma porta incrustada na montanha que ficava no fundo do seu lote. Essa montanha terminava formando um paredão rochoso com cerca de cinco metros de altura. Estácio chegou perto da porta e examinou-a com cuidado: ela aparentemente era de sucupira, possuía uma maçaneta feita de um material dourado (ouro não era, quem seria o louco de colocar ouro na casa de um desconhecido?) e uma chave na fechadura. O mais estranho era que a porta estava em um marco, com dobradiça e tudo. De manhã, com certeza ela não estava ali, ah, isso ele poderia garantir. Mas como a colocaram lá? E para quê? Não havia nada ali além de uma rocha, condensada e sólida como qualquer rocha que se preze. E agora, sem mais nem menos, aparece-lhe a maldita porta... Isso só poderia ter acontecido com ele. Ele que já levava uma vida medíocre desde quando se entendia por gente. Nascera com o cordão umbilical enrolado no pescoço e quase morrera asfixiado; parecia que aquilo era um sinal do que lhe aconteceria para o resto da vida: viveria com a corda no pescoço. Ele que sempre teve um péssimo desempenho na escola e que, se não fosse o tio, não teria o emprego de arquivista naquele maldito cartório; ele que nunca tivera sorte com as mulheres as quais só sabiam criticá-lo; ele que como Sísifo empurrava a vida como uma pedra para vê-la de volta ao vale no dia seguinte; ele cuja única sorte foi aquela casa sem graça que os avós lhe deixaram de herança, uma casa que parecia constantemente ameaçada pelo imenso paredão rochoso nos fundos em que, agora, sem nenhuma explicação lógica, aparecera uma porta.
Ficou durante um tempo meditando nas desgraças de sua vida, quando chegou à conclusão que deveria chamar alguém para que presenciasse o fato. O problema era que não tinha nenhum parente vivo, não desfrutava de um relacionamento amistoso com os vizinhos e nem sequer possuía um amigo a quem pudesse chamar. Lembrou-se do velho da casa da esquina que todos procuravam para pedir conselhos, um velho metido a jovem, freqüentador de clubes de terceira idade, que vivia estampando aquela dentadura risonha como se a vida fosse lá essas coisas... De qualquer forma, seria o único que o atenderia com uma certa hospitalidade. Portanto lá foi ele.
O velho realmente o recebeu bem: convidou-o para entrar, ofereceu-lhe café e ouviu com toda atenção o caso da porta, e, sem julgar que ele enlouquecera, acompanhou-o até a casa para averiguar o fato.
- Que coisa incrível, não?! Realmente é uma porta e muito bem colocada por sinal, trabalho de marceneiro de primeira categoria, e olha que disso eu entendo heim! Já ajudei meu pai em alguns trabalhos de marcenaria, quando eu era jovem. Não sei como conseguiram colocar essa porta aí nessa rocha... e você disse que foi de ontem para hoje que ela apareceu?
- É, foi – disse Estácio pensando consigo se aquele velho iria começar com aquela conversa de velho que fica lembrando tudo o que lhe acontecera na juventude, se iria começar um relato de como sua vida fora cheia de fatos agradáveis... Com braços cruzados e cara fechada, continuou – e agora não sei o que faço com isso.
- Por que você não abre? – perguntou o velho.
- Abrir? Para quê?
- Ora, uma porta foi feita para ser aberta, para que passemos por ela...
- Uma porta foi feita para ficar fechada, para separar dois ambientes, para que quem esteja em um lugar não veja o que está no outro. Não vou abri-la.
- Tudo bem senhor Estácio. Depende do ponto de vista. Eu já penso que as paredes servem para separar ambientes e não as portas, estas servem para ligar um local a outro, para que em uma determinada ocasião, possamos passar por elas.
- Não concordo que seria conveniente abri-la. Não sei o que há do outro lado.
- Mas de que outra forma o senhor saberá a não ser abrindo? E observe que quem a colocou aí, colocou-a com tudo: marco, maçaneta e chave, ele espera que o senhor a abra.
- E se tiver algo ruim do outro lado? Não quero me expor a nenhum tipo de risco. Já bastam os problemas que tenho.
- Infelizmente o senhor só saberá abrindo. E olha que a maçaneta e a chave são de ouro! Ouro puro. Disso tenho certeza, meu sogro era ourives e eu o ajudei durante um bom tempo de minha vida...
Lá vinha o velho com aquele discurso nostálgico de suas aventuras, de como sabia fazer isso ou aquilo. Decidiu interrompê-lo de vez:
- Não. Definitivamente não vou abri-la.
- Então quer que eu a abra para o senhor? Pelo menos assim vamos saber se há rocha lá do outro lado ou se há algo mais para ser explorado. Se houver, topo entrar com o senhor. Quem sabe não lhe aguardam coisas maravilhosas? Lembre-se de que a maçaneta é de ouro! Deve conhecer a história velha e conhecida do Abre-te Sésamo? Ás vezes, pode haver tesouros lá dentro... Talvez o senhor tenha sido agraciado pelo universo com um desses fatos inusitados que raramente acontecem na vida de um mero mortal; talvez a porta não seja apenas uma porta, mas um portal que o leve para um mundo de maravilhas... Já ouviu falar de Shangrilá? Dizem que lá é um vale maravilhoso encravado entre as altíssimas montanhas do Himalaia, lá as pessoas não envelhecem e nem morrem... Talvez essa porta seja uma entrada que dê para um caminho que o leve até lá... Olha eu acredito nisso, já vi cada coisa em minha vida, se eu te contar. Certa vez eu e meus amigos, quando brincávamos na roça, vimos um anjo voando no céu, um anjo com asa e tudo, outra vez...
- Sim, mas eu não vou abrir a porta, estou decidido. – disse Estácio em um tom firme e arrogante, agora tentando terminar de vez com aquela lorota fantasiosa do velho, que parecia ter esclerosado subitamente. Ele lá era homem de acreditar nesses absurdos? Ele era um homem-pé-no-chão que sabia da violência, da inflação, da corrupção, do egoísmo, do desemprego, das armadilhas que existiam nesse mundo perverso. Ele não era dessas pessoas idiotas, com um otimismo banal e, portanto concluiu: – Obrigado pelo senhor ter vindo, mas realmente não vou abri-la. Do outro lado pode haver muita coisa perigosa também, cobras, lagartos, ursos, ladrões e salteadores...
- Mas o senhor só vai saber disso abrindo, senhor Estácio! Antes abrir e saber o que há lá do que ficar na dúvida.
- Já disse que não e já lhe agradeci por ter vindo. Por favor, não insista. Depois eu vejo o que vou fazer com essa maldita porta. – E lá foi ele levando o velho em direção a porta da rua, empurrando-o pelo ombro, enquanto o idoso lhe narrava mil casos fabulosos pelos quais já tinha passado.
Velho chato e rabugento! - Pensou ele, encostado de costas na porta da casa que dava para a rua, depois que o outro fora embora. - Não sei onde estava com a cabeça quando fui chamá-lo. Shangrilá... Abre-te Sesámo..., ele deve é estar ficando louco mesmo! Espere aí! Eles acham que sou idiota, mas não sou não. A maçaneta é de ouro! Não vou abrir a porta, mas posso retirar a maçaneta e a chave e vendê-las. Posso fazer uma reforma nesta casa que vai causar inveja aos vizinhos... posso até mandar construir um muro alto, com cerca elétrica e tudo, que vai me separar desses vizinhos idiotas e mexeriqueiros que só sabem me criticar...
Ao pensar nisso, Estácio saiu correndo pela sala em direção ao quintal, bateu com o joelho na mesa de centro, balbuciou um palavrão, mas, animado com a tremenda idéia que teve, ignorou a dor, seguiu pelo corredor, atravessou a porta da cozinha, chegou ofegante ao quintal, pisou no rabo do cachorro, que lhe cravou os dentes no calcanhar, mas ele nem xingou o pobre coitado do animal, nem lhe deu um pontapé, como faria normalmente, pois ficou observando atônito o rochedo nu e cru, condensado, sólido como estava antes, sem porta e sem nada no fundo da sua casa.
Wellington P. Coelho