Re-pressão

Quando chegara a cidade, hospedara-se em um pensionato onde já estavam duas amigas que a receberam com o maior carinho. Após contar as novas que trazia com a bagagem, ouviu uma série de alertas e conselhos: a capital era diferente do interior, os homens eram uns sem-vergonha, os pivetes infestavam o centro, as coisas eram mais caras .... mas havia uma notícia boa: o emprego de secretária na contabilidade já estava garantido. Mostraram-lhe a cama e a parte do guarda-roupa com a qual ficaria e explicaram as tarefas e as regras que as duas já cumpriam e às quais ela teria que se adaptar para que houvesse um bom convívio entre as três. Embora ela tivesse percebido uma certa injustiça no distribuir das tarefas, nada comentou, pois, além de ser a novata, possuía um temperamento brando, que a incapacitava de refutar.

Em pouco tempo começou a trabalhar na Contabilidade Almeida Ltda. e, mesmo sendo o salário uma mixaria, já era alguma coisa. Com sua voz cândida e aveludada, conquistou a simpatia de todos na firma, menos do Sr. Almeida, que, correspondendo à descrição dos colegas, era uma verdadeira carranca.

Não demorou muito para ela perceber por que as amigas conterrâneas arranjaram o emprego com tanta facilidade: diversas mulheres já haviam passado pelo cargo e, não suportando o chefe, pediam demissão em menos de um mês. Ela, porém, exercendo a paciência das bordadeiras e dos pescadores de São Francisco, engolia sapo do Sr. Almeida todos os dias: um café muito doce, um recado ilegível, um erro de ortografia. Não bastasse o desnaturado, engolia sapo das amigas do pensionato também, pois, depois de fazer as horas extras a que era obrigada e que não recebia, encontrava todos os dias uma pilha de louças para lavar.

De fato, de tanto engolir sapo, desenvolvera uma azia no estômago, que mais tarde se transformaria em uma úlcera difícil de ser tratada. Emagrecera muito e criara o hábito de se molhar constantemente. Na realidade, desenvolvera uma estranha atração por umidade e água e justificava falando que ultimamente sentia muito calor.

Certo dia, acordou com os olhos extremamente ressecados e, quando se olhou no espelho, sentiu uma imensa dificuldade de fechar as pálpebras: havia dormido com os olhos abertos! Ao pingar algumas gotas de colírio, percebeu algo como escamas ao redor dos lábios. Preocupada, abriu a boca e verificou a garganta. Estava normal, porém achou a língua mais comprida e achatada e atribuiu a isso o problema ocular.

Chegou atrasada à Contabilidade, pois enfrentara uma fila imensa para marcar consulta. Mesmo com todas as explicações e com os olhos esbugalhados e vermelhos, ouviu calada o chefe chamá-la de incompetente mais de dez vezes. “Agora estou engolindo sapos-boi”, pensou ela.

Chegando ao pensionato, ouviu as duas amigas reclamarem das camas que ficaram mal-estendidas, uma delas até mesmo contou quantos frisos deixara no lençol. Sem dizer uma palavra, entrou no banheiro e lá ficou durante toda a noite debaixo da água fria, com as luzes apagadas.

Esse comportamento preocupou as outras, que sem dormir, batiam insistentemente na porta, perguntando se estava tudo bem. Contudo, ouvia-se apenas o barulho da água caindo e descendo esgoto abaixo. Como não obtinham resposta, apelaram para si mesmas, reclamando que perderiam uma noite de sono devido à loucura dela.

Lá pelas quatro da manhã, já exaustas e não suportando mais, chamaram o filho da dona do pensionato que resolveu arrombar a porta.

Superado o obstáculo, observaram, estupefatos, uma cascavel enroscada no vaso sanitário.

Wellington P. Coelho

Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 05/07/2011
Reeditado em 05/07/2011
Código do texto: T3077575
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