As Lentes da Morte
Ainda era um tempo em que se revelava fotos do modo natural, no estúdio escuro, sob a intensa radiação da matriz vermelha. Freelancer, ganhava suados os centavos de cada dia. O cheiro forte da química já lhe era há muito tão familiar que ficou indiferente como os casais casados de papel ou não passado. Depois de molhadas, deixava as lâminas penduradas nos vários fios tecendo uma teia assimétrica. Em seguida passou a acompanhar o que aos poucos era desnudado.
Bateu de frente com uma foto intrigante. Não se lembrava de ter visto aquela figura aos fundos. Era uma criança branca, com os cabelos loiros encaracolados, vestindo um traje estranho, disforme, como se fosse um borrão e irritou-se:
O carro do jornal apanhou-o na porta do apartamento 12 minutos depois e foram conversando alheios aos mortos, falando de mulher, política e futebol. O local do acidente era uma sucursal do inferno. Parecia cenário de guerra com corpos e membros espalhados. Desastre atrai muita gente e o povo, com o olhar de abutre, comentava a desdita daqueles tantos. Profissional, começou a clicar e ainda pegou muitos em agonia, sendo transportados em macas, atendidos às pressas por parte da multidão. Gostou, principalmente, de um padre de paróquia próxima que dava a última bênção para alguns e mesmo os sem vida abençoava.
Ficaram um bom tempo e correu para o estúdio querendo revelar rapidamente. O motorista ficou de fora, na sala do pequeno apartamento, lendo revistas de mulher pelada e lambendo a beiçola. Correu a revelar. Quando as primeiras fotos começaram a surgir, viu o vulto dos garotos em muitas delas, acompanhando vários vítimas sendo que, ao lado dos mortos, havia uma bolha negra suspensa no ar. Ficou irado. Como entregaria o serviço daquele jeito? Esperou assim mesmo para tentar ver se alguma escapara da presença dos meninos ou das bolhas negras. Decepcionado, assim que podia acender a luz, saiu e comunicou ao motorista que as fotos não prestavam.
Durante dias nada ocorreu. Certa manhã despertou e, ao regular as lentes diante de sua imagem no espelho, viu uma daquelas crianças ao seu lado no reflexo. Deu um salto e olhou ao redor. Não havia nada. Observou novamente pela lente e viu a criança com o olhar vazio, os trajes indefinidos, borrados, uma névoa piscando como flashes. Tinha que sair para o serviço. Decidiu regatear com a morte:
Ainda era um tempo em que se revelava fotos do modo natural, no estúdio escuro, sob a intensa radiação da matriz vermelha. Freelancer, ganhava suados os centavos de cada dia. O cheiro forte da química já lhe era há muito tão familiar que ficou indiferente como os casais casados de papel ou não passado. Depois de molhadas, deixava as lâminas penduradas nos vários fios tecendo uma teia assimétrica. Em seguida passou a acompanhar o que aos poucos era desnudado.
Bateu de frente com uma foto intrigante. Não se lembrava de ter visto aquela figura aos fundos. Era uma criança branca, com os cabelos loiros encaracolados, vestindo um traje estranho, disforme, como se fosse um borrão e irritou-se:
- Que coisa!
- De onde veio esse menino?
- Que droga é essa?
- Trabalho perdido.
O carro do jornal apanhou-o na porta do apartamento 12 minutos depois e foram conversando alheios aos mortos, falando de mulher, política e futebol. O local do acidente era uma sucursal do inferno. Parecia cenário de guerra com corpos e membros espalhados. Desastre atrai muita gente e o povo, com o olhar de abutre, comentava a desdita daqueles tantos. Profissional, começou a clicar e ainda pegou muitos em agonia, sendo transportados em macas, atendidos às pressas por parte da multidão. Gostou, principalmente, de um padre de paróquia próxima que dava a última bênção para alguns e mesmo os sem vida abençoava.
Ficaram um bom tempo e correu para o estúdio querendo revelar rapidamente. O motorista ficou de fora, na sala do pequeno apartamento, lendo revistas de mulher pelada e lambendo a beiçola. Correu a revelar. Quando as primeiras fotos começaram a surgir, viu o vulto dos garotos em muitas delas, acompanhando vários vítimas sendo que, ao lado dos mortos, havia uma bolha negra suspensa no ar. Ficou irado. Como entregaria o serviço daquele jeito? Esperou assim mesmo para tentar ver se alguma escapara da presença dos meninos ou das bolhas negras. Decepcionado, assim que podia acender a luz, saiu e comunicou ao motorista que as fotos não prestavam.
- Como? Você tá louco? O chefe só mandou você e se não tiver foto está tudo acabado. Eu que não chego lá sem foto. Deixa ver o que foi.
- Que tem de errado? - Perguntou.
- Os meninos e os borrões negros...
- Que meninos, que borrões? Você precisa para de tragar...
Durante dias nada ocorreu. Certa manhã despertou e, ao regular as lentes diante de sua imagem no espelho, viu uma daquelas crianças ao seu lado no reflexo. Deu um salto e olhou ao redor. Não havia nada. Observou novamente pela lente e viu a criança com o olhar vazio, os trajes indefinidos, borrados, uma névoa piscando como flashes. Tinha que sair para o serviço. Decidiu regatear com a morte:
- Hoje não saio de casa.