As Lentes da Morte



Ainda era um tempo em que se revelava fotos do modo natural, no estúdio escuro, sob a intensa radiação da matriz vermelha. Freelancer, ganhava suados os centavos de cada dia. O cheiro forte da química já lhe era há muito tão familiar que ficou indiferente como os casais casados de papel ou não passado. Depois de molhadas, deixava as lâminas penduradas nos vários fios tecendo uma teia assimétrica. Em seguida passou a acompanhar o que aos poucos era desnudado.
Bateu de frente com uma foto intrigante. Não se lembrava de ter visto aquela figura aos fundos. Era uma criança branca, com os cabelos loiros encaracolados, vestindo um traje estranho, disforme, como se fosse um borrão e irritou-se:
  • Que coisa!
Não gostava daqueles erros e tinha a certeza de não ter visto aquela criança no momento do clic.
  • De onde veio esse menino?
Era a foto dos passageiros na estação do trem, esperando pela partida comum de todos os dias. Tirou várias fotos da estação e as outras também foram surgindo e, aos poucos, começou a ficar ainda mais irritado. Outras imagens do garoto foram surgindo sempre ao lado de alguém, com a aparência tênue e os trajes disformes. Percebeu que o mesmo menino aparecia mais de uma vez em várias daquelas fotos entre os passageiros.
  • Que droga é essa?
Não conseguia tecer explicação. No momento das fotos tinha absoluta certeza de não ter visto aquelas crianças, ademais, loirinhas e belas, praticamente idênticas umas às outras, lhe teriam chamado a atenção imediata. A irritação virou fúria e raiva pelo lote de fotos perdidas do caos na estação.
  • Trabalho perdido.
Saiu para fumar um. Acendendo o rolinho amarfanhado, viu a fumaça desenhar figuras que escapavam-lhe ao entendimento até que o susto do telefone tocando o despertou do alheamento. Era o chefe, cobrando que fosse imediatamente para o interior cobrir o descarrilhamento do trem que há poucas horas vira partir para não mais voltar.
O carro do jornal apanhou-o na porta do apartamento 12 minutos depois e foram conversando alheios aos mortos, falando de mulher, política e futebol. O local do acidente era uma sucursal do inferno. Parecia cenário de guerra com corpos e membros espalhados. Desastre atrai muita gente e o povo, com o olhar de abutre, comentava a desdita daqueles tantos. Profissional, começou a clicar e ainda pegou muitos em agonia, sendo transportados em macas, atendidos às pressas por parte da multidão. Gostou, principalmente, de um padre de paróquia próxima que dava a última bênção para alguns e mesmo os sem vida abençoava.
Ficaram um bom tempo e correu para o estúdio querendo revelar rapidamente. O motorista ficou de fora, na sala do pequeno apartamento, lendo revistas de mulher pelada e lambendo a beiçola. Correu a revelar. Quando as primeiras fotos começaram a surgir, viu o vulto dos garotos em muitas delas, acompanhando vários vítimas sendo que, ao lado dos mortos, havia uma bolha negra suspensa no ar. Ficou irado. Como entregaria o serviço daquele jeito? Esperou assim mesmo para tentar ver se alguma escapara da presença dos meninos ou das bolhas negras. Decepcionado, assim que podia acender a luz, saiu e comunicou ao motorista que as fotos não prestavam.
  • Como? Você tá louco? O chefe só mandou você e se não tiver foto está tudo acabado. Eu que não chego lá sem foto. Deixa ver o que foi.
O motorista entrou e começou a ver as fotos.
  • Que tem de errado? - Perguntou.
  • Os meninos e os borrões negros...
  • Que meninos, que borrões? Você precisa para de tragar...
Ficou espantado, o motorista não via nada. Nem garotos, nem borrões, nem o padre cercado por uma espécie de névoa brilhante-acinzentada. As fotos foram enviadas e reveladas. Durante o dia constatou que os passageiros fotografados na estação ladeados por garotos haviam morrido. Ficou com medo de si mesmo. O interessante é que somente ele via os meninos nas imagens.
Durante dias nada ocorreu. Certa manhã despertou e, ao regular as lentes diante de sua imagem no espelho, viu uma daquelas crianças ao seu lado no reflexo. Deu um salto e olhou ao redor. Não havia nada. Observou novamente pela lente e viu a criança com o olhar vazio, os trajes indefinidos, borrados, uma névoa piscando como flashes. Tinha que sair para o serviço. Decidiu regatear com a morte:
  • Hoje não saio de casa.
Acendeu um e apoiou-se na janela para observar a rua. Uma bala perdida partindo de um morro ao lado encontrou seu peito desprotegido. Caiu de costas e viu o menino se aproximando, olhar vazio, como se duas pérolas negras habitassem as órbitas. Sentiu um frio, viu tudo ficando embaçado ao tempo que diante de si abriu-se um vórtice escuro e por ali migrou sua alma...