Cemitério de Sonhos
Morfeu era coveiro há mais de 50 anos. Conhecia cada canto do cemitério, sabia a localização de cada túmulo. Por isso mesmo, era querido por todos. Era um velhinho simpático, um pouco rabugento quando perguntavam de sua vida, mas sempre fora bastante calmo e atencioso com todos que lhe dirigiam a palavra. Não tinha família, morava sozinho numa pequena casa próxima do cemitério. Talvez tivesse passado mais tempo caminhando entre os mortos do que entre os vivos.
Além disso, Morfeu tinha uma característica, um dom, na verdade, que ninguém sabia: ele conseguia ver os sonhos não realizados de cada um dos mortos que estivesse por perto. Ele nunca contara isso a ninguém, talvez porque isso espantasse a ele mesmo. Era como descobrir os segredos daqueles que não podem mais contá-los.
Em 1964, quando morreu, acidentado, o então prefeito da cidade, Morfeu, em seus primeiros anos de trabalho, percebeu que o acidente impossibilitou a candidatura para governo do falecido. Como era um bom prefeito, talvez fosse um grande governador, caso viesse a ser eleito. Era um sonho, impedido de se tornar realidade.
Quatro anos depois, um jovem de dezessete anos havia sido assassinado após uma partida de futebol. Coisa banal, que acabou com o sonho do garoto de ser jogador da seleção brasileira. Morfeu ficou muito triste naquela tarde, era padrinho do rapaz e sabia que o mesmo tinha talento. Outro sonho interrompido.
Ao longo dos anos, mais e mais sonhos foram descobertos por Morfeu. Obviamente, nem todos eram altruístas. Muitos tinham sonhos pessoais e individualistas, sendo tão comuns que nem merecem tanta atenção. Ser rico e poderoso, por exemplo, era a pretensão de inúmeras pessoas.
No ano passado, morreu uma garotinha de oito anos, que estudava balé e tinha uma vontade enorme de ser bailarina profissional. Ela fora atropelada pouco depois de sair da escola, por um motorista bêbado.
Morfeu, com tantos sonhos não realizados rondando sua cabeça, ficava, muitas vezes, angustiado. Tantas pessoas, tantos sonhos, tantos desejos que não puderam se tornar realidade por infortúnio do destino. Mas ele nada podia fazer, não tinha escolhido ter esse dom, apenas o tinha. E convivera com isso grande parte de sua vida.
Ontem à tarde, Morfeu consertava um túmulo que havia sido depredado. O túmulo de sua mãe, para ser mais exato. Terminou o trabalho, sentou-se apoiado no canto do túmulo e adormeceu. Adormeceu e não acordou mais. Morreu ali, sentado, ao lado de sua mãe. Morreram com ele os sonhos alheios que permaneciam vivos na mente do velho senhor. Morreu sabendo dos sonhos de muitos. E sem realizar nenhum. Nem mesmo os próprios.