Flor de novembro
Já presenciei muitas coisas que me causara espanto, mas primavera agonizando foi à primeira vez. Era novembro, fim de estação, últimos segundos, e sob o olhar da lua nova, ela de cócoras deu a luz a tantas vidas às margens de um córrego tão propício a um imenso jardim...Depois chorou copiosamente como se desejasse molhar os frutos com as próprias lágrimas da despedida, após o aborto voluntário, para libertar-se um pouco do remorso que sentia. Deixou a última semente tão franzina em meio às outras que nem teve tempo de beijá-la antes de ir...
Comparo a primavera a qualquer ser humano que quer dar mais do que pode; pois quantas primaveras já deixaram por aí, algum cravo, uma rosa ou quem sabe trigêmeos girassóis abandonados no berçário de um hospital, numa lata de lixo, na porta de algum ricaço ou até mesmo em mãos alheias em troca de dinheiro; esta deixou as margens de um córrego.
Percebi que estava meio alucinada, com sentimento de culpa, talvez por achar que não houvesse enfeitado suficientemente a vida, saíra por estradas e ruelas sem nenhum tipo de pudor, porque antes de ir embora quisera simplesmente florir.
Sempre tive a mania de comparar mulheres com flores, transformar uma na outra, afinal ambas tem destinos tão iguais e as diferenças entre elas tão somente é que: Mulheres parem crianças enquanto as rosas abortam outras rosas e depois vão embora não sei pra onde...E quem haverá de querer uma flor de novembro?Tão esquisita, franzina, ainda molhada de placenta, com saudade do útero, entregue ao abandono.
Vi uma borboleta aproximar-se, beijá-la e despedir-se meio saudosa; depois um beija-flor que lhe sugou um pingo de néctar, talvez resquício de placenta e foi-se embora batendo asas no compasso do coração tão enamorado; por último a sombra que as demais flores faziam, a escondeu e, ela agonizou, debateu-se entre os espinhos que despontavam das outras, revolveu o coração do jardim florescido e, reclamou...Fenômeno que ninguém ousou descrever, mas eu descrevi porque tenho alma de borboleta e desconfio dos beija-flores que gostam de nutrir-se de beleza e impregnarem-se de raro perfume.
Engraçado...As borboletas e os beija-flores sempre voltam ao primeiro amor com segundas intenções e, uma tal de Georgina curiosa que bem não havia realizado a sua metamorfose, saíra do casulo naquela manhã e com as asas tão enfraquecidas foi buscar a flor de novembro ainda tão pequenina lá ás margens do córrego onde estava germinando e, cansada do vôo prematuro voltou ofegante ao casulo de porta muito estreita e, por horas tentou adentrá-lo com a florzinha minúscula, porém exausta deixou-a do lado de fora e foi descansar a frustração.
Enquanto isso um tal de Wallace beija-flor tão desorientado sobrevoava ás margens do córrego procurando flor de novembro que deixara apenas a terra revolvida ao ser arrancada por Georgina Curiosa. Aquela manhã fora um retrato de profundo esplendor ás margens de um córrego repleto de variadas flores que assanhavam-se para aquele beija-flor impregnando de perfumes diferenciados um certo vilarejo que ia nascendo com cheiro de poesia pois, vida de beija-flor é um mistério que ninguém consegue desvendar...Porque apesar de viver beijando rosas, um dia consegue se apaixonar por alguma delas e, então despreza as demais.
E Wallace beija-flor, já tão exausto de percorrer o vilarejo a procura de alguém que julgava ser seu grande amor, pousando aqui e acolá, resolveu descansar um pouco embaixo do beiral de um telhado que abrigava um casulo de aspecto velho e abandonado onde Georgina Curiosa dormia, talvez impregnada pelo perfume de flor de novembro que, apesar de tão desfalecida ainda exalava vida.
E então a vida se fez tão majestosa em torno daquele pequeno casulo onde dormia Georgina, pois com o peito estufado de virilidade, Wallace ficou a cortejar flor de novembro durante alguns minutos naquela manhã e, enfeitiçado pela essência da flor, pegou-a no bico, colocou-a sobre o peito, abraçou-a com as duas asas e voou com elas fechadas mundo afora; aliás, quem nunca observou um beija-flor não vai me compreender, pois, eles são enigmáticos e guardam segredos, e quando estão rasgando o espaço com as asas fechadas, escondem alguma coisa consigo, e o que Wallace escondia era uma flor roubada e prematura, com quem pretendia copular... Mas Georgina curiosa acordou sobressaltada, não viu flor de novembro, chorou copiosamente e, resolveu procurá-la.
Assim são outras pobres mulheres que passam as vidas mergulhadas em cruel agonia, a procurar seus rebentos que um dia lhe foram tirados de forma tão impiedosa; expondo cartazes pela cidade, com os corações cheios de esperanças vãs.
Borboleta triste, nostálgica, vazia...Que um dia beijou flor de novembro como formal compromisso e a adotou sem imaginar que certas flores não têm dono, só servem mesmo para enfeitar e embriagar de perfume à vida da gente.
E Wallace beija-flor que encontrara flor de novembro tão abandonada sobre um casulo parece que, de tão enamorado tomou o veneno dos sonhos, transformou flor de novembro em mulher, tornou-se ingênuo, deu-lhe um nome devasso, vestiu-lhe a caráter, levou-a para um canto qualquer, despiu-a excitado, colocou-a sobre a cama e, depois entrou no banheiro, olhou o espelho e, tão vaidoso lavou o rosto reluzente do azul da barba e, voltou seminu... Cheiro de seiva fresca no corpo, pronto a copular. Estremeceu...
Visível deslumbramento, cheio de glamour e lágrimas-desenho de uma flor vermelha, ainda com tinta fresca sobre o lençol branco. “Sangue” com aroma de perfume; Beija–flor desconsertado a sobrevoar o quarto vazio sobre sombras; enquanto por aí afora uma borboleta qualquer chora a ausência de uma flor...
Afinal a quem pertencem as rosas?As borboletas ou aos beija-flores?E de quem são as crianças?Daqueles que as abandonam, dos pais que adotam ou dos submundos que as auto-flagelam?
Isso me pergunto até hoje, desde que me contaram a triste história de Aninha,abandonada pela mãe,adotada pela madrinha,seqüestrada, estuprada e morta aos treze anos de idade, por Wallace; o belo rapaz de classe média que defendeu-se perante o tribunal dizendo ter sido o seu ato, “um lindo gesto de amor!"
Tony Caroll.
Do livro "Ternura,Coração e Fotografias."