A TRAVESSIA
“Cordeiro de Deus, que livrai os pecados do mundo, tende piedade de nós.
Cordeiro de Deus, que livrais os pecados do mundo, tende piedade de nós.
Cordeiro de Deus, que livrai os pecados do mundo, tende piedade de nós”
Essas palavras repetiam-se em minha cabeça feito um mantra maldito. O suor escorria em minhas faces e por mais que minha crença não fosse além das minhas lembranças de infância, naquele momento, de joelhos (com os olhos cobertos por uma tira de pano cheirando a sangue) era tudo que eu conseguia pronunciar.
Atrás de mim aquele marginal rindo e batendo com a revolver em minha cabeça provocava repulsa e medo
Eu sabia que minha hora havia chegado e não conseguia deixar de pensar que por mais que eu também fosse filho de Deus, eu deveria ser bastardo!
Porque esse filho de uma puta não terminava logo o serviço?
O cheiro de sangue agora tomava conta ao meu redor e sentia o gosto amargo que dominava minha boca, confesso que a face de morte se mostrou, e um silencio irrompeu o ambiente.
Parei de ser massacrado por coronhadas e não ouvia mais os ganidos dos bandidos. Minha mão estava solta e por um momento acreditei que minhas pobres preces haviam sido atendidas. Arranquei aquela venda e pus-me a correr desesperado, sem olhar pra trás. Um sentimento de vingança tomava conta de mim, eu sabia quem eram eles e a mando do quem tentavam me matar. Só não sabia por que não o fizeram.
Depois de correr muito avistei uma choupana.
Um homem de aparência gélida me atendeu, mas não me deixou entrar.
Pedi água e socorro e ele apenas apontou pra um enorme portão a uns 100 m de distancia e fechou a porta na minha cara. Indignado, porém cansado de problemas segui na direção indicada.
Nunca havia visto portão semelhante em toda minha vida, era enorme, seguramente mais de 15 metros de altura e o mais estranho, não havia muros nem alambrados. Apenas um portão, um imenso portão.
Poderia simplesmente contorná-lo e nada mudaria meu trajeto, mas sem explicação resolvi atravessa-lo. Assim que transpus aquele monstro de ferro uma nevoa súbita tomou conta do lugar e meio sem saber pra onde ir apenas caminhei.
Um frio congelante invadiu meu corpo, sentia-me nos pólos, pra onde eu olhasse apenas árvores mal cuidadas e espinhosas me cercavam, percebia que vultos escondiam-se entre elas e comecei a gritar por socorro.
Gritava e andava
Gritava e andava...
Então uma voz, quase um sussurro respondeu:
- não grite! Eles estão por aí
Tentei vislumbrar na escuridão quem havia falado comigo, mas não conseguia porque meus olhos não se acostumavam àquela penumbra.
Pedi ajuda e a voz disse:
- devia pedir ajuda antes de entrar, não falou com o guardião?
Dessa vez mais vozes acercaram-se de mim e discutindo entre si começaram a sussurrar novamente como se suplicassem... Vozes de pavor e dor.
Senti minha pele arrepiar e um medo tomou conta do meu corpo.
Gritei pra que parassem de falar em minha volta, mas isso só fez com que mais e mais vozes me envolvessem. Podia sentir meu rosto desfigurado de pavor, tentei correr, mas meu corpo não obedecia.
Foi quando uma mão puxou-me para baixo e tapando minha boca indicou uma trilha logo à frente. Quando meus olhos enfim enxergaram o que a escuridão escondia entrei em desespero, mas o ser que me segurava, firme em suas palavras ordenou:
-cale-se e não se mexa, eles estão chegando.
Eram seres cadavéricos e mal-cheirosos, caminhavam feito matilha de lobos gritando e xingando. Com eles, jaulas de madeira lotadas de homens e mulheres que desesperados imploravam ajuda.
Assim que passaram, centenas de pessoas saíram detrás das arvores e me rodearam.
Uns perguntavam de onde eu vinha, outros como cheguei naquele lugar.
Eu não sabia o que responder por que nem sabia onde estava.
A maioria daqueles seres com desdém balançava a cabeça e diziam:
- mais um cego, mais um cego.
Observei o ser que me agarrara a pouco e percebi que não passava de um adolescente, tentei me aproximar, mas ele desandou a falar:
- não perca tempo nesse lugar maldito cara, aqui todos são culpados, apenas os que buscam a redenção com o guardião é que não precisam entrar. Uma vez aqui dentro torça pra sua hora de perdão não levar uma eternidade.
Esconda-se das criaturas sempre e tente encontrar os anjos.
Estarrecido e confuso quis saber onde estava.
- o que acha que aconteceu com você? O jovem me perguntou
Respondi que tentaram me matar, mas que eu conseguira escapar.
E então o rapaz me olhou e descansando as mãos em meus ombros disse-me:
- você não escapou amigo. Você está morto!
Sorri assustado e perguntei se aquilo era algum tipo de brincadeira, mas ele não riu. E nem ninguém a minha volta.
O rapaz mandou-me fechar os olhos. Obedeci.
Então uma dor lancinante tomou conta de minha nuca e pude sentir a bala queimando meus tecidos e estraçalhando os ossos de minha cabeça, enquanto essa dor me envolvia ele ia me dizendo que eu não havia fugido, era apenas minha alma desprendendo-se do corpo.
Abri meus olhos e disse:
Estou no inferno?
Outro homem se aproximou dessa vez mais velho, dizendo que não estávamos no inferno... Ainda.
- chamam umbral onde estamos e nossa única forma de evitar o inferno é fugindo das criaturas. Procure seu anjo, e tente sair daqui.
Ainda atordoado com tantas informações pedi orientação de como encontrar as pessoas que poderiam me salvar e disse-lhes que não ficaria mais que uma noite naquele lugar.
O jovem e o ancião olharam-se entre si e disseram:
- Você amigo, já está aqui há 50 anos!
Caí ao chão em prantos e lamentações enquanto o pelotão de desesperados como eu seguia pela escuridão.
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