CÂNTICOS DA NOITE ESCURA - PARTE II

A mosquinha voltou no dia seguinte...
Não pudera esquecer aquele canto lúgubre, pungente, solitário e rouco.
O sapo sabia que ela, como todas as outras moscas, retornaria.
Moscas abundavam por ali, naquele charco onde sapos passavam a vida a deglutir insetos atraídos pelo reflexo do luar na superfície podre e estagnada onde todos se sentiam em paz.
Ela voltou, e ele esperava ansioso que ela o visse, antes do golpe final, único, gosmento e definitivo da sua língua retrátil, que vibraria no ar e a capturaria sem que ela tivesse chances de se arrepender.
O sapo queria ser visto, queria sentir o prazer embriagador do medo dela, de quando ela sentisse que chegada era a hora da morte, do esquecimento, do vazio final.
O que o sapo não sabia era que ela já o vira, e só não se aproximara mais por enlevo, capricho e orgulho:
Sentia-se viva ao ser olhada por ele, com seus grandes olhos, quase invisíveis sobre a água negra, seguindo-a expectante, em silêncio, perscrutando seus volteios e o leve rufar de suas asinhas translúcidas no ar infecto da noite.
A mosca voava em círculos concêntricos, cada vez mais numa espiral descendente, que a aproximava do único mal irremediável, seu fim almejado e o único possível, desde que apaixonara-se, tola, por ele, seu algoz, seu inimigo natural, seu predador inevitável na cadeia alimentar.
Poderia ter se dado a uma aranha bela e enorme que tecia ali por perto, esperançosamente, mas não. Era ao sapo que queria se ofertar, a ele se fundiria e através dele seria transformada no que sempre fora:
Dejeto. Refugo. Restos. Sobras.
Mas nutriria o seu amor e esta era sua sina escolhida.
Entregou-se num último voo, perto demais do alcance da língua úmida, que se lançou sobre ela, aprisionando-a com um apetite voraz de luxúria que durou o tempo de um rebrilhar de luar nas suas asas.
O sapo ainda sentiu umas cosquinhas na garganta, e a mosca mergulhou na escuridão, talvez feliz, talvez triste, talvez já morta.
O que ocorreu à mosca da garganta para baixo não fez diferença alguma para o sapo.
Era sua natureza e dela não se envergonhava nem por mosca alguma jamais se lamentou.
E continuou no seu laguinho fétido, já esperando pela próxima vítima.

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Jacqueline K
Enviado por Jacqueline K em 06/06/2011
Reeditado em 07/06/2011
Código do texto: T3018456
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