Do Outro Lado da Janela
Em uma colina distante, escura em noite nua, onde a luz da lua perdia o brilho, onde havia uma mansão imensa, semelhantes a antigos castelos medievais, morava um garoto e seu avô. O garoto, curioso e silencioso em seus 13 anos, louco para surpresas no tédio de seu comodismo. O avô, um velho sábio, porém muito rabugento, cujo vivia dos livros e da herança da família, estava criando seu neto longe da civilização, na esperança de não o deixar tornar-se alienado, como muitos daqueles jovens que ele observava ao passar pelos grandes centros. Para isso, havia que praticamente seqüestrado o garoto, sem o consentimento dos pais, que por um estranho motivo deixaram este ser levado. Isso deixou o garoto intrigado e chateado, achando por um lado que esta seria a confirmação de insanidade que ele achava sobre seus pais e por outro lado achando que estes queriam umas férias do fedelho intrometido.
A mansão era realmente colossal, algo que merecia um título de castelo, porém não era. Tinha adornos antigos, tais como armaduras, importantes obras, estantes, um grande relógio, tapetes, livros, tapeçarias, tudo que uma casa da antiga nobreza devia ter. O garoto, em seu tempo passageiro, vivia a vagar pela casa, observando cada detalhe, descobrindo cada dia um novo pedaço daquele fantástico mundo. Sua única restrição era o quarto de seu avô, que por sinal lhe despertava imensa curiosidade.
Quando estava em suas aulas particulares, com importantes professores do país, o garoto notava que seu avô dirigia-se ao próprio quarto e por lá ficava horas, até aparecer somente perto da hora do jantar, encomendado do mais fino restaurante da Cidade Grande. Nos raros momentos como este, em que o avô e o garoto tinham um momento a sós junto, o velho parecia estar sempre de mal-humor, entediado, talvez pelo mesmo motivo do garoto. Logo quando o garoto se mudou, ele tentava algumas vezes persuadir seu avô a uma conversa, porém este sempre respondia rabugento, em tom de assunto encerrado ou proibido para o momento. Conforme o tempo passou, o garoto apenas dirigia-se ao seu avô para lhe pedir o sal ou algo que não conseguisse alcançar na grande mesa de jantar. O garoto às vezes captava alguns sorrisos mortos no rosto do velho, como se ele estivesse lembrando de algo que o alegrava no passado e que agora não existia mais.
O que ele achava mais estranho é o fato da casa não ter empregados que moravam por lá. Geralmente, casas como estas, grandes e com certa tradição e conservadorismo, mantém empregados residindo nela. Contudo, esta não. A comida vinha de fora, os pratos eram lavados pelo próprio avô, um serviço terceirizado era contratado para limpar a casa duas vezes por semana e a compra de produtos já era pré-determinada e chegava toda semana em um caminhão. Ninguém, exceto o velho e o garoto, morava naquela imensa casa.
Certa vez, em um dos jantares tétricos, o garoto deixou cair acidentalmente seu prato no chão. Um silêncio predominou a cena, e por certos segundos o velho olhou rabugento para o garoto, fazendo seus olhos penetrarem na superfície daquele jovem mirrado, estranhamente assustado com as possíveis conseqüências daquele acidente. Houve varias vezes em que derrubara algo na casa, porém destas nenhuma foi assistida pelo velho carrancudo. Mas para surpresa do garoto, ele começou a escancarar-se em uma risada, um pouco pervertida e de total escárnio, com a boca lotada de comida, cuspindo esta pelo chão, apontando o enrugado dedo para o garoto.
O pobre menino ficou sem reação, mas sentiu um assomo de raiva. Pela primeira vez desde quando se mudou para a casa, ele sentiu uma emoção forte, um sentimento que alterou aquela rotina pacata e sem metamorfoses. A Raiva tomou-lhe instintivamente, estava farto daquele velho metido a grão-fino sabichão que não lhe dava nem uma vez se quer um sorriso ou um abraço, ou qualquer porcaria de manifestação afetiva.
O menino levantou, ainda ao som da gargalhada do velho, e seguiu até a lareira, onde havia uma espada antiga, porém muito bem afiada, posta sobre um pedestal. Sem pensar em qualquer conseqüência, empunhou a espada e decepou em um único golpe a cabeça do velho, fazendo o sangue jorrar por toda a redondeza e a cabeça rolar graciosamente pelo tapete. A risada cessou instantaneamente, e uma onda de pânico tomou conta do garoto. Que diabos tinha feito? Porque tinha feito isso? Agora estava realmente encrencado...O que faria agora? Esconderia o corpo e a cabeça do velho em um dos muitos cômodos daquela maldita casa? Ele correu até a janela que ficava no fundo da sala de jantar e observou Lá Fora, para ver se não havia alguém que pudesse ter testemunhado o seu bárbaro crime. Quando se virou novamente para a cena, deu um sonoro grito de espanto.
A cabeça decepada do velho estava rindo, em alto e bom som, olhando para o garoto com olhos escancarados e felicitados. O menino disparou até a porta, não olhando para trás em momento algum, cortejado pelo som daquela terrível gargalhada. Saiu movido pelo terror e pela escuridão da casa. Trombava em diversos vultos de adornos, que se espatifavam no chão, fazendo assustadoramente o volume da risada do velho aumentar. O garoto se viu perdido no saguão principal, onde a luz da lua bruxuleava no tapete do chão, fazendo formar terríveis figuras. Em disparada pela escada, o garoto chegou até o segundo patamar e correu até o final do corredor, entrando em uma porta fria e negra que estava entreaberta, fechando-a brutamente e fazendo o som das risadas ficarem distante e quase mudo.
Foi então que ele chegou no misterioso quarto do velho:com a meia luz,ele enxergou um aposento suntuoso, de médio porte, com móveis antigos e luxuosos, tudo muito belo. Mas o que mais chamava a atenção era uma janela, uma grande janela que estava na parede, que parecia ser mais um aquário do que uma janela, pelo fato de não ter fundo para fora da mansão, e sim para uma escuridão ríspida e pavorosa, algo que o garoto não conseguia enxergar onde era o fim. Ao fundo, o som dos gritos havia cessado e o silêncio só era enganado pelo urro dos ventos pela casa. O menino aproximou-se daquela estranha janela, esquecendo do que se passava em volta, esquecendo de tudo, só dando importância à ela.
Lentamente, ele foi aproximando sua mão do vitral que formava aquele portal e, sem mais, atravessou-o, como se aquilo não existisse, ignorando qualquer lei da natureza que tenha aprendido nos livros ou de própria experiência. Aos poucos, atravessou-a por completo, subindo na pedra fria que constituía a parede e seguindo rumo à escuridão. Por um momento, o ar parecia ter abandonado os redores do garoto e por alguns instantes, a morte cobriu-lhe e fez o andar, sem pausas nem escrúpulos. Até que ele finalmente chegou do outro lado.
Era o mesmíssimo aposento, tirando o fato de que estava tudo claro e que a maioria dos objetos originais estavam quebrados, havia muitas penas e alguns patos espalhados pelo chão. Novos objetos se encontravam lá, tais como chapeis engraçados, fantasias diversas e outras esquisitices. A porta de entrada estava escancarada, ao contrario do que geralmente estaria do Outro Lado. O garoto seguiu em diante, e no corredor encontrou mais objetos estranhos e alguns dos antiquados totalmente quebrados. Pássaros cantavam nos jardins do exterior da casa, algo realmente raro no Outro Lado.Uma brisa, leve e confortável, varria a casa como um todo, integrando serenidade e luz.Apesar da desordem material encostada em todos os cantos, o clima apaziguava.Andando pelo corredor e chegando as escadas, o garoto percebeu uma canção, talvez um pouco desafinada, porém alegre, vinda do saguão principal.Quando desceu as escadas, deparou-se com uma cena a qual ele já mais imaginaria que visualizaria no mais insano vislumbre.
O velho, de ceroula e botinas, com um chapéu roxo escalafobético, jogando pratos por todo o seu raio, agarrando um manequim pela mão e dançando com ele, debilmente.Percebendo a presença do garoto,ele alargou um sorriso e se aproximou dele, mostrando o salão.
- Veja, garoto: o melhor desta casa!
Ele deslizou rápido para um canto e apanhou a mesinha que repousava ali solitária.Com uma força bruta, ele a arremessou no centro do saguão, fazendo-a despedaçar-se, produzindo um certo estrondo.
-Porque o senhor está quebrando tudo desta casa? – arriscou o garoto
-Oras, esta casa foi feita para isso! Você nunca teve vontade de extravagar um pouco?
-Bem...
-Ah!Como não!Você acabou de matar meu Outro Lado!E que espetacular morte, hein?
-Seu Outro Lado?
-Sim, garoto!Você não tem Outro Lado, não é mesmo?
-Como assim?
-Você pensa que somos somente aquilo que se enxerga?Você acha que sou somente aquele velho rabugento que tem que fazer seu papel rígido perante ao jovem aprendiz!Você é um só mesmo, garoto?
-...
O garoto pensou, pela primeira vez até então, quem ele é realmente.Será que ele é somente aquele garoto, que vive enfurnado em um velho lugar, pensando em como seria aquele mundo lá fora? Será que, no fundo de sua mente, milhões de garotos esperariam a melhor oportunidade para assumir a ponta do raciocínio? Será que, naquela noite em que se passou, um Outro Lado não veio à tona? Alguém que estava lá, na hora certa? Ou seria errada?
-Veja, veja como somos nós. Debaixo daquele corpo velho e carrancudo, existe um velho que quer destruir seu mundo construído e imposto pelo tempo.Tem um velho que quer ser jovem, que quer cometer loucuras que só um jovem pode, que só um demente cometeria.Você acha que gosto de ser daquele jeito?Você acha que todos gostam de ser o que são?Você gosta de você, garoto?
Houve uma pausa.O menino olhava de um lado para o outro, observando a cena. Chapeis com penas de pavão esvoaçando, diversos entulhos virgens, os quadros de antigas cenas rasgados e empilhados.Aquilo parecia não ser normal, não ser saudável, aos olhos de um garoto.Mas do Outro, parecia ser assustador, e do Outro ainda, confortante.Ele sentiu uma tontura, afogado em mil pensamentos, os olhos balançaram um pouco.
-Você acredita em você? Acho que tem vezes que nos deparamos em frente ao espelho e, por alguns instantes, imaginamos outras possibilidades, imaginamos como será amanhã, ou imaginamos alguém, é realmente difícil dizer.Você já mentiu para você?Eu já menti muitas vezes,sabe.Às vezes, minto que estou feliz, somente para se gabar de mais um momento, ou para permanecer na linha.Mas, na verdade, há dias que queremos realmente explodir, não é?
Uma sensação acometeu o menino. Tudo misturou-se subitamente: vontade de viver com vontade de morrer, vontade de dormir com vontade de ouvir. Vultos tomavam seus olhos, dançando inconsequentemente em sua visão. Eu sei que você está vendo isso, é só uma questão de tempo...
“Uma dica: nunca vire a mesma esquina três vezes no dia.Vocês sabem que muita coisa que é dividida por três resulta em uma dízima.Periódica, mas é dízima. Você está rindo? Que equivalência,não? É só prestar a atenção: o seu mundo e seu dia e sua rotina é feito de sistemas, pequenos sistemas que o faz quem você é. Com o tempo, esses sistemas se acumulam, formando a dita cuja neurose.Um ser neurótico é um ser que pertence exclusivamente ao sistema, o próprio sistema ou até mesmo, e muito cuidado nesta hora às suas interpretações, ao Sistema.”
Em um colapso, o garoto se dividiu em centenas de garotos, que como trouxas atiradas ao cesto foram se espalhando por toda a extensão do saguão.Aos poucos, eles levantaram e foram caminhando entre cada um, encarando-se, assustando-se, estudando delicadamente. O velho observava a cena, curioso. De repente, um dos garotos começou a chorar e, mais sem aviso ainda, um deles meteu um soco no que estava mais próximo. Estava instalada a Desordem.
Uma grande bulha começou. Garotos se socavam, alguns corriam, outros choravam, outros riam. Uns três garotos agarravam o velho, tentando o machucar a qualquer custo. Alguns corriam pela casa, destruindo tudo. Outros corriam para apanhar objetos e preserva-los, alguns furtavam apenas. Em curto prazo, alguns já haviam alcançado o jardim principal e se cansavam nas gramas, cada qual com sua atividade.E o primeiro garoto observava tudo aquilo com grande esmero.Pela primeira vez também, em toda aquela vida pacata e estranha, ele estava fazendo tudo o que queria ao mesmo tempo sem ter vontade de se estourar pois, ora essa, ele já havia estourado! Assim então nunca mais atravessou a janela, percebendo que o verdadeiro Lado era este, que o Outro Lado deveria ser aquele: rígido, correto e confortável, porém escuro, abandonado e ,
principalmente, Sistemático.