O Novo Emprego

Dona Elvira maquiava-se diante do espelho, olhos cintilando de felicidade. Porém, ao mesmo tempo, estava muito nervosa; seria seu primeiro dia no novo emprego. Não era lá grande coisa, é verdade, mas pelo menos ganharia um dinheiro para ir levando a vida. Apertado-apertado, mas era melhor do que nada.

Ficou por longo tempo segurando o batom parado sobre o lábio superior, pressionando-o de leve. Parecia sonhar. Observava fixamente seus olhos a olhá-la de dentro do espelho. Era engraçado isso! Nunca tinha reparado como seus olhos eram doces e quentes. Será que alguém mais os via assim?

Na verdade ela não via seus olhos, e sim um mero reflexo, uma imagem. Não, seus olhos não podiam ser tão bonitos quanto os enxergava naquele instante, diante de um espelho embaçado de banheiro. “O vapor do chuveiro!” É! Só podia ser o vapor do chuveiro interferindo na verdade das coisas. Um simples, ridículo e tênue vapor! O que via não era a realidade, era só uma cópia melhorada. Não se lembrava de alguém, em algum dia de sua vida, tê-la elogiado por causa dos olhos.

Entristeceu.

“Será que a gente existe mesmo, ou isso é só uma invenção?”

A mão continuava pressionando levemente o batom sobre o lábio superior.

Tentava não piscar. Não queria perder um só instante daquele espetáculo de beleza, mentira e solidão. Que olhos lindos, meu Deus! De quem seriam? Seus? Por que então o marido jamais lhe fizera qualquer elogio a respeito? E os tantos namorados que tivera, será que nunca perceberam? Nem mesmo sua falecida mãe alguma vez tocara no assunto. Também, ficar falando de um par de olhos sem graça nenhuma! Mas é que estavam tão bonitos ali naquele vidro criador de ilusões!!

A pobre senhora ficou de tal forma hipnotizada que não sabia mais se estava do lado de dentro ou do lado de fora do espelho. Se estivesse do lado de dentro, como faria para ir trabalhar? Como? E era seu primeiro dia, não podia se atrasar de jeito nenhum!

Imediatamente, sem mover um milímetro a cabeça, olhou seu entorno. Ou melhor, seu entorno real e seu entorno virtual. Aliás, de que lado estava a vida de verdade? Ela era a imagem ou o ser?

Piscou.

O batom lhe caiu da mão.

Irritou-se consigo mesma. Com esse seu jeito bobo de ser. Ou de querer ser.

Ser...

O vidro frio e insensível embaçou-se de tanto esperar pelo batom.

Quem teria tido a idéia de inventar essa coisa mentirosa? Esse fingido, esse falsificador que estava bem à sua frente! Como podia refletir imagens? Ou refletia realidades? Se fossem realidades, por que então todo mundo chamava de imagens? Só se tudo são apenas imagens!?

Lentamente passou a mão sobre o espelho úmido, limpando-o. Sua imagem foi, pouco a pouco, ganhando forma, contornos, vida, em meio a um emaranhado de rabiscos de gotículas quentes. Vida? Pode uma imagem ganhar vida?

Olhou-se novamente, com profundidade. Mas a imagem ainda não era clara; estava turva, distorcida. Seu reflexo denunciava pouco ou quase nada do real.

O real... O que é o real?

Tentou ver os olhos bem lá dentro, e não pôde. O vapor! Pequenas listas, vincos disformes impediam que a realidade fosse simulada diante de si. Ela queria que a imagem representasse o ser. Ora, isso não é possível, mesmo diante do melhor e mais perfeito dos espelhos! Nossos olhos e nossa mente não atingem jamais a totalidade das coisas: o ser pleno, visto e entendido de todas as formas possíveis e imagináveis, em seus mínimos detalhes. Tampouco alcançamos sua essência. Aliás, existe a essência, o ser? Afinal, nunca somos, sempre estamos! Se ao menos pudéssemos parar o tempo! Quem sabe...

O tempo é um ser ou uma ilusão?

* * *

Aquela cerração interminavelmente interminável voltou. O espelho quase não era mais visto. Tudo era neblina. A água do chuveiro caía outra vez no boxe.

“Quem será que está tomando banho agora?”

Era ela.

“O horário!!!”

Meus Deus, estava atrasada!

Era ainda noite, madrugada. A lua teimava em ficar no céu.

Mas como fora arranjar um emprego tão longe de casa? Se ao menos o marido estivesse trabalhando, ela poderia procurar um outro emprego, com mais calma. Quem sabe até arrumasse alguma coisa boa. Só que, como a situação estava, não havia solução. E também, com o marido que tinha, não dava para esperar grande coisa. Um alcoólatra e jogador de boteco, esse era seu grandioso marido-carma! Carma, sim!! A mãe cansou de lhe pedir que desistisse daquele homem, que ele não era boa coisa. “Não, mãe!! Coitado! Ele é tão carinhoso e bom!” Bom?! Bastou se casar. Que Lixo!!!

Retocou uma última vez o batom, desligou a luz do banheiro e saiu. Mas, distraidamente, do lado de dentro do boxe, continuava tomando seu último banho.

Assim que entrou no corredor, teve a impressão de estar esquecendo algo.

Voltou ao banheiro, acendeu a luz. Olhou o chão, a pia, o armário, o boxe. Achou-se, por fim, terminando o banho. Secou-se outra vez. Maquiou-se outra vez. A neblina ainda não se dissipara plenamente. Ficou irritada. “Acho que é a ansiedade.” Sentiu desejo de limpar o espelho e olhar-se novamente. Queria certificar-se de que seus olhos eram realmente lindos. Mas deixou pra lá!

Eis que, por um instante, teve a nítida sensação de que já vivera aquele momento. Coisa engraçada!

Desligou a luz e saiu.

Um friozinho de doer cortava o ar. A madrugada parecia balbuciar de tão cansada que estava da rotina de ir e vir todos os dias.

Dona Elvira não ouvia seus próprios passos.

Estaria levitando?

Que bobagem!

Assim que deu as primeiras pisadas no corredor, parou assustada.

“Uéé!?!”

De novo a impressão de estar esquecendo algo.

__ Mas não pode ser...

E uma vez mais retornou ao banheiro. Acendeu a luz. Olhou em todos os lugares possíveis. Apagou a luz. Saiu.

“Deve ser a idade... a ansiedade...”

Foi até o quarto colocar a roupa e perfumar-se.

Ao entrar, olhou o marido roncando e sentiu nojo. Como alguém como ela podia se sujeitar a viver com um lixo de homem daquele?! Um bolo de vômito disparou do fundo de seu estômago e jorrou freneticamente na maciez esgarçada da velha toalha de banho. O gosto era amargo, do arrependimento apodrecido pelos anos!

Argh!

O horário!!

Vestiu-se rapidamente. Penteou-se como pôde e jogou perfume atrás das orelhas, um pouco em volta do pescoço, no colo.

Enfim estava pronta!

Foi até a cozinha e escreveu em português rascante um bilhete de recomendações ao marido. Pedia-lhe que não se esquecesse de dar comida às crianças nem de levá-las à escola. Pedia ainda que não saísse para longe, pois os filhos poderiam, devido a qualquer imprevisto, precisar dele. Ah! E que não se esquecesse também de andar com o celular ligado; caso contrário, como alguém da escola iria lhe dar algum recado de urgência? Por último, como observação, avisou que provavelmente chegaria a tempo de pegar as crianças na saída das aulas; mas nem por isso era para ele se distanciar muito.

Quando passava pela sala para pegar suas coisas e ir embora, notou que a luz do banheiro estava acesa. Mas como, se há pouco a tinha apagado? Ou será que estava ficando louca, mesmo?

Furiosa, caminhou a passos duros e pesados. Passos descompassados, lentos, cansados, trôpegos. Parecia estar andando no vácuo, na falta de gravidade. Sentia correr e sentia flutuar suavemente pelo tapete do corredor. Esticou os braços para a frente, quem sabe não acelerasse sua viagem até o banheiro. Mas não; continuou com a sensação de velocidade e lentidão ao mesmo tempo. Uma velocidade inconsistente e tênue, quase morta. Já a lentidão era alegre e viva.

Chegou.

Ao olhar de relance para o espelho, não pôde acreditar no que viu. Vagarosamente aproximou o rosto. Não!! Não era possível! Como?!? Havia ficado longos minutos se maquiando, acertando os últimos detalhes, retirando os excessos, retocando os pontos em que havia falhas. Pusera sua melhor roupa!

Como se estivesse em transe, hipnotizada, aproximou-se mais e mais do espelho. Chegou mesmo a tocar o nariz naquele inóspito e desconhecido algoz de vidro. Naquele mundo real-irreal. Não dava para acreditar. Estaria definitivamente enlouquecendo?! Passou a mão pelo rosto, pelos cabelos, pelo corpo. Estava descabelada, cara amassada e de pijama!! Era como se tivesse acordado naquele exato momento! Um arrepio cruzou, fulminante, seu peito desnorteado.

Apagou a luz e correu para o quarto.

Ao passar pela sala, olhou o relógio de parede: 3h32min!

Parou!!

Permaneceu ali durante longo tempo, observando o tique-taque, para assegurar-se de que o relógio estava funcionando.

“Três e trinta e dois...”

Chegando ao quarto, acendeu a luz. O marido virou-se na cama e resmungou por causa da claridade. Ela abriu o guarda-roupa e viu, pasma, que tudo estava intacto.

“Devo ter sonhado!!”

Prostou-se na cama.

A luz se apagou.

Com os olhos arregalados na busca de enxergar alguma coisa, perguntou a si mesma, bem baixinho:

--Será que foi no bairro inteiro?

* * *

Trrriiiiiiimmmmmm...

* * *

Rapidamente Dona Elvira levantou-se e travou o maldito despertador.

Três e meia da manhã: hora de levantar!

Olhou o marido, que maviosamente roncava uma bizarra sinfonia lúgubre e indigesta.

Estava atordoada. Sentou-se na cama para pôr a cabeça em ordem. Era a segunda vez que se levantava ou era a primeira?

Foi para o banheiro. Olhou-se ao espelho e, estranhamente sentiu-se mais jovem. Não sabia por que, mas sentiu-se.

Sorriu!

Ficou a admirar-se algum tempo, deixando os pensamentos negativos esquecidos em algum outro lugar. Viajava incólume, a um só tempo flutuando sem rumo e parada na grandiosidade de seus sonhos mais íntimos e inconfessáveis. Sonhos da adolescência perdida, talvez? Da infância? Da mulher?

Lá fora, o barulho da vida, da agitação, fez com que ela retornasse à impiedosa e insensível realidade.

Tomou banho e enxugou-se apressadamente. Lembrou-se de que aquele seria seu primeiro dia de trabalho no novo emprego; não podia chegar atrasada. As coisas não estavam bem em casa; faltava dinheiro, faltava alegria, o marido era um traste de gente! Não entendia como suportava viver com aquele resto de gente a seu lado.

Saindo do banheiro, assim que entrou no corredor, notou que o marido e as crianças estavam na sala, assistindo televisão.

Caminhou vagarosamente até eles.

Parou atônita diante dos telespectadores.

--Que banho mais demorado, hein?! Pensei que você não fosse sair mais, dona Elvirinha! – espetou o marido.

Os filhos, olhos pregados na tela, hipnotizados pela máquina de luz e sonhos, estavam alheios a tudo. Habitavam o mundo virtual da programação-de-todo-dia.

--Que horas são? – ela perguntou.

--A mesma de ontem – respondeu o marido, deitado no sofá e rindo pela piada arcaica que acabara de dizer.

O brilho da lua clareava levemente o pequeno cômodo em que a família se encontrava naquele instante. Era um brilho tênue e amargo. Doído!

Dona Elvira, transtornada, foi para o quarto. Imediatamente fixou o olhar no despertador.

Oito e meia da noite!!

“Não é possível!!!”

Retornando à sala, perguntou ao marido:

-- Que dia é hoje??

--Treze! E acho melhor você dormir logo, queridinha, que amanhã você tem que levantar cedo . Amanhã é dia de branco pra você, hein! – e riu, debochadamente.

Estaria enlouquecendo?

* * *

De volta ao quarto, deixou-se cair sobre a cama e arregalou os olhos em direção ao teto. As idéias iam e vinham sem parar, insanamente. Nada era razoável; nada explicava os fatos. Depois, exausta, já quase adormecida, tentou, com mais tranquilidade, buscar em algum lugar, de alguma maneira, de algum jeito, uma explicação para o que estava acontecendo. Foi então que, num lampejo, lembrou-se de que a cena há pouco vivida, após sua saída do banho, era uma repetição exata do que se passara na noite anterior. Era isso mesmo! Tudo se repetira!

Será que nunca mais iria amanhecer?

Subitamente reparou que a cama estava quentinha, como se ela já estivesse deitada ali há algum tempo. Será que estava? Será que não tinha nem saído, e tudo aquilo era só um sonho, mesmo? Sentiu uma ligeira tontura, a vista ardendo. Em seguida, teve a sensação de estar vomitando. Mas era um vômito diferente. Vomitou seus recalques, suas mágoas, suas dores. Depois, o silêncio.

“Eles devem ter desligado a televisão.”

Adormeceu, finalmente.

* * *

Madrugada.

Levantou-se num átimo e em desespero. Não podia decepcionar o novo chefe. Já pensou que chato, um atraso logo no primeiro dia?

Embora continuasse friamente deitada, saiu apressada para o trabalho. E tamanha foi sua pressa que não se deu conta de ter continuado na cama ao lado do marido. Também não reparou que já estava vestida, penteada e maquiada.

Ao passar pela sala sentiu algo desagradável. Era um cheiro estranho que invadia a casa. De onde viria? Devia ser resto de comida daqueles três. Quando estão em frente à televisão não enxergam mais nada! Ah, mas não dava pra pensar nisso agora. Eles que se virassem pra limpar depois que acordassem.

Rua.

A vida caminhava para todas as direções e sentidos, sem sentido.

As pessoas iam de um lado a outro, todas elas apressadas, nem sequer se cumprimentavam, se olhavam ou se percebiam. Os ônibus e lotações paravam e saíam dos pontos, numa dança tresloucada. Mesmo àquela hora da madrugada, as filas serpenteavam nas calçadas. Ali não estavam pessoas. Era o gado aguardando a comida ser posta no cocho.

Dona Elvira caminhava nervosa, rangendo os dentes, olhos arregalados contra o vento frio. Uma pequena gota de lágrima tentava incessantemente atirar-se rosto afora, mas era aplacada pelo insensível desejo de chegar a tempo no novo emprego. Não dava para ficar chorando.

Seu chefe parecia uma pessoa muito boa.

“Tomara que seja, mesmo!”

Virou à direita. Era uma viela tenebrosa; quase ninguém passava ali. Nem mesmo na claridade do dia. Mas ela precisava cortar caminho! Tinha medo, é lógico, mas estava atrasada. Fazer o quê?

Ouviu um barulho.

Apertou o passo!

O coração veio à boca e voltou. O corpo tremia mais que qualquer outra coisa. Pensou em voltar, mas já estava quase chegando ao fim da viela.

“Calma, calma. Não foi nada, não foi nada!”

Parou.

Virou-se lentamente e olhou ao redor.

Estava só.

“Que bobagem! É coisa da minha cabeça.”

Passado o medo, sentiu-se feliz. Agora, com o novo emprego, poderia dar uma vida melhor a seus filhos e a si mesma. Queria tanto que eles estudassem na faculdade! Já pensou? Um filho médico e o outro advogado: que chique! Todo mundo ia ficar morrendo de inveja dela. Sim, dela: a mãe dos dois doutores!! E isso serviria para pagar a língua de muito parente. Falaram tanto quando ela teve os filhos. “Ai, com um pai desses, esses meninos não vão dar em nada! Coitadinha de você, Elvirinha!” Hum!! parente... Gente do diabo! Principalmente do lado do traste do marido. Por isso ele era aquilo. Ah, ele que se danasse pra lá! Nunca serviu pra nada, aquele lixo de gente! Era só as coisas melhorarem que ela iria sumir com os filhos.

Em seu delírio, viu-se promovida, o salário aumentando sem parar, recebendo prêmios e mais prêmios por bom desempenho profissional. Ah! Era bem mais do que merecia! Nem precisava tanto assim!

O sonho é tudo, e é nada. Mas ela ainda não sabia disso.

Dobrou à esquerda, no final da viela.

Ao longe, avistou o ponto de ônibus. As pessoas faziam filas enormes até ele chegar, mas depois... só por Deus!

Faltava pouco. Logo, logo estaria outra vez trabalhando!

Engraçado, aquela fila fez com que ela se lembrasse de procissão. “Ah, já sei!” Foi então que ela associou as coisas. Ela fizera uma promessa a Santo Expedito, para ele arranjar um empreguinho, qualquer que fosse, para ela. E não foi que o danado do santo resolveu seu problema?! E tem gente que não acredita em santo, em milagre! Ela, não! Ela acreditava, e muito mesmo! Agora era devota de Santo Expedito. É... mas agora também teria de pagar a promessa. Será que Santo Expedito poderia esperar pelo menos uns três meses, até as coisas se ajeitarem um pouco? Ah, mas ela tinha prometido cumprir a promessa assim que recebesse o primeiro salário, e não o terceiro ou o quarto ou o quinto! Ela estava com tanta conta atrasada! Ah, ele esperava, sim! Ele era santo ou não era?

Avistou o ônibus chegando ao ponto. Mas ela ainda estava longe, não ia dar tempo de embarcar.

“É meu primeiro dia!”

Correu.

Esticou o braço direito, avisando que queria embarcar. Tinha de tomar esse ônibus!

O motorista também estava apressado, não quis saber dos problemas alheios. Fechou a porta e arrancou. Ela ainda tentou uma última vez sinalizar. Gritou. Implorou.

O ônibus passou por ela, deixando um rastro de tristeza e desamparo.

No rosto do motorista, nenhuma expressão. Era um boneco de cera sentado ao volante. Ele apenas fez um sinal com a mão, indicando que vinha outro carro logo atrás, e que ela esperasse por ele.

Dona Elvira parou e observou o ônibus indo embora. Com ele foi-se também sua sorte. Jamais chegaria a tempo. Só se fosse de táxi.

“De táxi. Essa é boa!”

Ela, de táxi. Mal tinha dinheiro para pagar a passagem de ônibus.

Lentamente caminhou até o ponto. E esperou.

O ponto estava vazio. Sentiu um pouco de medo.

O tempo passou...

Nada de ônibus.

Nada de gente.

Durante infinitas horas ela ficou ali parada, olhando para um ponto qualquer na escuridão sem fim que se instalara. Era de algum lugar desse breu que sairia o ônibus salvador que iria levá-la a seu destino.

Lembrou de um dia ter ouvido: “Nós fazemos nosso destino.”

Sorriu um doce-amargo sorriso de criança órfã.

A noite era cada vez mais noite, impossibilitando a chegada do dia seguinte.

E ela ficou ali parada, esperando pelo irrealizável.

Por que estava sozinha?

A escuridão não queria mais ir embora, deixá-la em paz. Ela tinha que começar no novo emprego. Se o dia não chegasse, como iria fazer? Seu chefe, com certeza, se houvesse futuro, a estaria aguardando. Ela nunca tinha cometido uma falha dessas. E se ela fosse assaltada? Não temia por dinheiro, pois não o tinha; mas temia por si. E se os bandidos fizessem alguma coisa ruim com ela? E se eles a matassem? Ficar assim sozinha não era bom!

E seu novo emprego?

* * *

Um meigo e gélido nevoeiro cobriu-lhe os pés.

Ela xingou Santo Expedito, aquele tratante! Ele havia feito isso de propósito, só porque ela não podia pagar a promessa no primeiro ordenado. Santo interesseiro!! Também, como ela pôde acreditar em santo, em milagre? Isso não existia! Isso era tudo invencionice do povo. Era só pra enganar a gente! Era só pra tirar o pouco que a gente tinha!

Esfregava as mãos incessantemente e mordia os lábios.

Quis ir embora, mas não existia mais ruas. Só existia a noite. Uma noite profunda. Uma noite que tinha tomado conta de tudo.

Pensou nos filhos e no traste do marido. Como iria vê-los outra vez, se não havia mais caminhos? Ela ficaria presa ali na escuridão pelo resto de seus dias, sem ter ao menos um lugar aonde ir? Será?

Sentiu uma grande saudade machucando bem lá dentro do coração. Era como se estivesse ali havia séculos. Como estaria seu rosto? Envelhecido? E seus lindos olhos, como estariam? Sentiu, então, saudade de si mesma. Queria ver-se, olhar-se ao maldito espelho mentiroso e falsificador de realidades. Um ilusionista, isso sim!

Quis chorar, e não quis. Era a primeira vez que sentia isso.

Coitado do seu chefe, deveria estar desesperado à sua espera. Com certeza o dia seguinte já havia nascido por lá. Se ela tivesse ao menos como avisar que nunca mais chegaria!

A escuridão definitiva abraçou Dona Elvira. Tudo era só noite. Agora não podia mais ver sequer a mão à frente do rosto.

Será que ainda tinha rosto?

Quem sabe num amanhã, quando o sol despontar no horizonte, ela possa recomeçar de onde parou. Em outro lugar...

Gentil Tadeu Gomes
Enviado por Gentil Tadeu Gomes em 27/04/2011
Código do texto: T2933663
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