Mirinha

Começo

Nasce Mirinha.

Espertinha como ninguém! Um encanto de menina!

Dona Iolanda, com a filha nos braços, amamentando-a, deixa o pensamento viajar ao passado, à sua infância. O olhar parado, perdido num fragmento da vida, tão longe, tão longe. Tantas e tantas lembranças passam, repassam, tornam a passar feito uma chuva de cometas mórbidos e desvairados. Como uma aranha tecendo sua teia, ela, pacientemente, enlaça e desenlaça os pensamentos, liga aqui e ali, lá e acolá. Trama o desenho de dias e mais dias, anos e mais anos de sua história de vida. Subitamente um elo se desprende e se perde da teia. “Onde estará?” Busca na memória da memória, e não encontra nada.

__ Iolanda, a menina já parou de mamar!

__ Ahn?!... Ah, é mesmo.

* * *

Tempo...

* * *

Três anos se passam.

__ Vocês mimam demais essa menina! Ela vai acabar dando em coisa que não presta!

__ Veja lá como fala da minha netinha, Iolanda!

__ Ah, é?! Não se esqueça que a sua netinha é minha filha!!

__ Eu nunca me esqueço disso! Você é que se esquece! Vive brigando e batendo na menina, à toa!

__ À toa uma ova!! Não é o senhor que fica aguentando essa menina tagarelando o tempo todo! Sem contar a bagunça que ela vive aprontando. Mexe e remexe; revira tudo que encontra pela frente!

__ Mas criança é assim mesmo, Iolanda. Lembra-se de quando você era menina? Era a mesma coisa!

__ E o senhor lembra o que o senhor fazia? Gritava comigo, me espancava. Era a mesma coisa!

__ Iolanda, você é terrível! Aliás, sempre foi. Não se compare a esse anjinho de gente! Você sempre teve um gênio muito difícil. Além disso, era briguenta e desbocada. A Mirinha não tem nada a ver com você. E eu não te espancava, não! Isso é...

__ Ah, chega, cheeegaaa!!! Vai dormir um pouco, vai, pai!

__ Você está me tocando da sua casa, Iolanda?!

__ Claro que não! Só estou preocupada com a sua saúde. O senhor deve estar muito cansado.

__ Sua debochada!

Dona Iolanda dá as costas ao pai e sai.

Seu Ernesto, olhando a netinha, que acaba de chegar trazendo um brinquedinho novo para mostrar-lhe, engole as palavras, a raiva e a tristeza.

__ Olha, Vô Nonhô! É a minha boneca.

__ É, Mirinha? E quem deu essa bonequinha pra Mirinha, hein?

__ Meu pai. Meu pai deu a boneca.

__ Nossa! Ela é muito bonita! Não é, Mirinha?

__ É. O Vovô gosta?

__ Gosto! É muito bonitinha.

Mirinha sorri. Em seguida, abraça a boneca e cantarola uma cantiguinha de ninar.

Dona Iolanda chega, trazendo uma vassoura e uns panos nas mãos.

__ Ué, pai, ainda não foi tirar uma soneca, não?

Seu Ernesto nada responde.

Mirinha para de cantar. Com carinha de choro, olha para a mãe.

__ Pare com isso, Iolanda! Olha só como a menina ficou!!

__ O senhor vai ver como ela vai ficar é se ela não sair daqui agora.

Mirinha aperta sua bonequinha contra o peito e balbucia qualquer coisa.

__ Vai já pro seu quarto, menina! Vai, Mirinha! Xô!!

Mirinha desaparece dali.

__ Ah, pai, se o senhor está sem sono, sabe o que o senhor faz? Vai jogar um dominozinho, um baralhinho, lá no boteco perto da sua casa, tá? Que eu preciso trabalhar, viu? É... quando as pessoas estão da minha idade, elas trabalham, trabalham, trabalham!

__ Que absurdo, Iolanda! Não sei que mal eu fiz a Deus para nascer com o destino de ser seu pai!

__ Vai ver que o senhor tem muito pecado nas costas! – e ri.

__ E deve ser muito mesmo. Só isso explica você ser minha filha!

__ Lá-ri-ri-ri-riii... Lá-lá-lá-lá...

__ Eu vou embora, mesmo! E só volto aqui por causa da minha netinha! Ela não tem culpa de ter você como mãe! Deus me perdoe!...

__ Lá-ri-lá-rá... Vai logo, velho caduco! Lá-rá-li-ri...

* * *

À tardinha, Seu Antônio, chegando do trabalho, percebe que o sogro não está, como de costume, brincando com Mirinha. Estranha sua ausência pois, desde que a menina nascera, Vô Nhonhô só saía de lá depois que ela adormecesse.

No quarto da filha, encontra Dona Iolanda passando um belo sermão em Mirinha. Esta, sem entender direito o que está acontecendo, de cabecinha baixa e toda agarradinha à boneca, apenas soluça. Afinal, se não era para brincar, por que então ganhava aquele montão de brinquedos? Quer jogar tudo fora, mas tem medo da mãe. Só que, lá no fundinho de sua imaginaçãozinha de criança ferida, ela está jogando, sim!!

__ Iolanda, você ficou louca?

__ Louca o quê?! Você é que é louco e mal-educado! Nem boa-tarde me deu e já vem me enchendo a cabeça! Por que você não ficou fazendo hora-extra, hein?

__ Pare com isso, ou eu...

__ Ou eu o quê? Ou eu o quê?? Vai, fala logo! Você não é homem, não?

Seu Antônio tenta acalmar-se. Mirinha está com uma carinha que não dá nem para explicar. Os olhinhos arregalados denunciam o pavor. Em sua inocência, percebe que as coisas não estão bem.

Dona Iolanda retira-se. Mas antes...

__ Eu vivo falando que vocês estragam essa menina!

Seu Antônio ajoelha-se e abraça a filha.

__ Oi, Mirinha, tudo bem? – beija-lhe no rosto.

__ Oi, pai! Olha, é a minha boneca!

__ Ah, como ela é bonitinha! Que bonequinha linda, filha! Quem deu essa boneca pra Mirinha?

__ Meu... meu pai deu essa boneca pra Mirinha.

__ E quem é o seu pai?

Mirinha aponta para Seu Antônio.

__ O Vô Nhonhô gosta da minha boneca.

__ Ah, o Vô Nhonhô esteve aqui hoje?

__ É. O Vô Nhonhô gosta da minha boneca – Mirinha sorri para o pai.

__ E ele brincou com a Mirinha?

__ Brincou... Pai... O Vô Nhonhô gosta da minha boneca! – novo sorriso.

__ E a mamãe e o vovô brigaram, né?

__ Né. Pai... o Vô Nhonhô gosta...

__ Ah, já sei, já sei: O Vô Nhonhô gosta da boneca da Mirinha!

__ Como você sabe, pai?

* * *

Na cama, depois de muito discutir com a esposa a respeito da filha, Seu Antônio aproveita o momento para falar também do sogro, Seu Ernesto ( O Vô Nhonhô).

__ Olha, Iolanda, eu te proíbo de brigar com seu pai! Coitadinho dele! É tão bonzinho! Adora nossa filha. Não larga dela desde que ela veio ao mundo. E, acima de tudo isso, ele é o seu pai!

__ Tá vendo o que você disse? Ele é o meu pai, não o seu pai!! E, se ele é o meu pai e não o seu pai, eu trato ele como bem entender, e você não tem nada com o peixe! Por que você não vai mandar rezar umas missinhas pro seu pai? Ele bem que deve estar precisando, mesmo!

__ Você não muda nunca! É a mesma coisa de sempre! Pois quero ver você destratar o Vô Nhonhô na minha frente!

Dona Iolanda nada responde. Vira-se de lado e emudece.

Seu Antônio, furioso, adormece imaginando-se longe dali. Longe da esposa. Longe do mundo!

* * *

Manhã do dia seguinte...

Em sua caminha, Mirinha sonha que está brincando de Roda. “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...” Formando a roda, ela, seu pai, Vô Nhonhô e sua bonequinha, que é quem mais canta e quem está mais alegre. “Ciranda, cirandinha...” Mas eis que surge, rangendo os dentes, os olhos vermelhos e brilhantes, Dona Iolanda. De vassoura na mão, vem varrendo tudo. E varre a brincadeira! Todos são atirados pelos ares a vassouradas. A terrível varredora gargalha feito uma bruxa louca. Em seguida, uma ventania cheia de um fogo esquisito carrega a perversa Iolanda-Varredora, que some, aos berros, no meio de um redemoinho faiscante. Ela vai sumindo pra longe, pra longe... pra longe... Aos poucos, a roda é formada novamente. “Ciranda, cirandinha, vamos todos...”

__ Acooordaaa, menina preguiçooosaaa!!! Sai logo daqui, que eu preciso varrer esse quarto imundo! Vai brincar lá fora, vai! Já varri a casa toda, e você aí, só no bem-bom! Levanta, anda!!.

Meio

Mirinha está com cinco anos e um pouquinho.

Tristinha, assiste à infelicidade dos pais, que pouco se falam, pouco ficam juntos. Seu Antônio chega tarde da noite quase todos os dias. Dona Iolanda , que já era resmungona, está cada vez mais insuportável. Só sabe falar aos berros.

Vô Nhonhô, para aliviar o sofrimento da neta, vai todos os dias visitá-la. Brincam, passeiam, tomam sorvete juntos. O avô conta-lhe historinhas engraçadas – Mirinha ri muito e muito! À noitinha, quando um friozinho cortante já bate nas costas da gente, o vovô vai embora sem se despedir de Dona Iolanda.

* * *

Um dia, a grande surpresa!

Vô Nhonhô chega trazendo algo escondido.

__ Miriinha, o vovô trouxe uma coisa pra vocêê!...

__ Uma coisa pra mim, vovô? Pra mim?

__ É... feche os olhinhos.

__ Fechei!

Vô Nhonhô, com as duas mãos, segura o presentinho bem diante do rosto da netinha.

__ Já pode abrir os olhos!

A menina, assim que vê o que o vovô lhe trouxe, não contém sua alegria e dá um grito.

__ Um cachorrinho, vovô!!

__ Ele é seu novo amiguinho!

A menina agarra o au-auzinho. Balança-o como se fosse um bebê de colinho. Esfrega seu nariz no focinho úmido do pobre coitado, que só olha assustado e não diz nada.

__ Como é que ele chama?

__ Ele não tem nome, ainda. Eu quero que a Mirinha coloque um!

Mirinha abraça e beija o novo amiguinho. Olha bem para ele.

__ Já sei, vovô, já sei!... Minhoca!!

__ Oh, Minhoca?!... É... Ah... Mas que nome mais bonitinho, Mirinha! O vovô adorou!

__ Eu também!

__ O vovô vai te ensinar a cuidar direitinho dele, tá?

__ Tá!

Vô Nhonhô explica como Mirinha deve preparar a comidinha do au-auzinho. Depois arranjam uma caixa de sapatos para ser sua casinha e, dentro dela, põem uns paninhos velhos que não servem pra mais nada; eles serão seu colchãozinho. Tudo feito e acabado, colocam-na no meio da sala.

Mirinha sai um pouquinho e deixa o vovô cuidando do Minhoca. Ao retornar, encontra-os encerrando um diálogo. Acha muito engraçado ver o avô conversando com um cachorrinho.

Minhoca é muito pequenino. Tem o olharzinho triste-triste, perdido em algum lugar distante de onde quer que esteja. Distraído, nem liga para as brincadeiras da menina. Mirinha fala com ele, mas ele fica olhando pra outro lugar; parece até que nem está dando a mínima pra ela. Às vezes tomba a cabecinha pra direita, depois pra esquerda. Boceja preguiçosamente. Fecha os olhinhos e dorme. Dorme... Mirinha continua falando com ele. Minhoca abre um olhinho... abre o outro. Mas logo desvia o olharzinho canino pra algum lugar fora dali. Para onde estará olhando? O que estará olhando? Seu focinho úmido brilha na íris negra da menina.

__ Vô Nhonhô, acho que o Minhoca não gosta de mim.

O velhinho sorri da preocupação da neta.

__ Mas por quê, Mirinha?

__ Eu fico falando com ele, e ele nem fala comigo. Nem fala... Ele nem olha pra mim!! Só quer saber de dormir!

__ É porque ele é muito novinho, Mirinha. Ele ainda é um bebê. Você também dormia muito quando era um bebê.

__ É, Vô Nhonhô? É verdade? – mais alegre.

__ É, sim. Todo bebê dorme bastante.

__ Mas ele gosta de mim, Vovô? – olhinhos baixos.

__ Claro que gosta, Mirinha!

__ Como que o senhor sabe?

__ Foi ele mesmo quem me contou.

__ Quando, Vovô, quando?

__ Agora há pouco, enquanto você tinha ido ao banheiro. Nós falamos muito sobre a Mirinha, viu! Ele gosta muito-muito-muito de você!

A menina abre um sorriso do tamanho do mundo e abraça o amiguinho dorminhoco, que é acordado de um cochilinho tão gostoso.

__ Ah, Minhoca, seu bobo! Eu gosto de você, também! Não precisa ficar tristinho, não, tá? Eu sei que você é um bebê!

O au-auzinho, distraído como sempre, observa alguma coisa perdida no ar. Pisca... e pisca... Ai, que soninho!

__ Vô Nhonho, eu vou mostrar o Minhoca pra mamãe!

__ Vamos lá, Mirinha! O vovô vai com você.

__ Oba!!

Na lavanderia, que fica no fundo do quintal, está Dona Iolanda.

__ O quêêêê?!?!??? Cachorro aqui em casa? Nunca!! Podem sumir com essa praga daqui!!

__ Mas, Iolanda...

__ Não tem “mas”, nem meio “mas”! Cachorro, aqui, não! Podem levar esse pulguento embora daqui!

__ Olhe o que você está fazendo com a sua filha! Toda criança gosta de ter um animalzinho de estimação!

__ Ah, é-é? Então o senhor vem aqui todos os dias pra limpar a sujeira dele, tá bom? É... aí é que eu quero ver!!

Mirinha, com o pulguentinho no colo, tenta convencer a furiosa mãe a aceitar que ele fique.

__ Mãe, deixa eu ficar com o Minhoca!

__ O quê? Deixa eu ficar com quem? Como é o nome dessa coisa?

__ Minhoca, mãe! A senhora gostou?

__ Agora é que ele não fica mesmo! Eu detesto minhoca!... Onde é que já se viu, botar o nome no cachorro de Minhoca? Cê tá louca, menina?

__ Ah, mãe, mas o Vô Nhonhô gostou...

__ Seu avô gosta de qualquer coisa! Agora, tirem esse cachorro daqui!!

Minhoca, com a cabecinha repousada no ombro de sua dona, olha para a direita... para a esquerda... distrai-se com um mosquitinho que passa por ali. Fica olhando, olhando... Pensa em latir, mas logo desiste. Está meio cansado. Baixa os olhinhos... pestaneja bem devagar... devagar... Silêncio!... Dormiu.

Mirinha vai para o quarto com o amiguinho, a pedido de Vô Nhonhô. Este, assim que a neta fecha a porta, implora à filha que deixe o cachorrinho ficar. Promete limpar suas sujeirinhas. Faz a filha se lembrar dos cachorros que possuiu na infância e das brincadeiras que fazia com eles. De uma vez em que um deles mordeu o filho da vizinha – menino chato e briguento! Dona Iolanda sorri...

__ Minha filha... – o vovô se emociona.

Enquanto isso Mirinha está dando uma bronquinha daquelas no Minhoca. Por que ele não presta atenção quando ela fala? Se ele não gosta dela, então que fale logo, né! Ficar, assim, olhando-olhando pra outro lado quando alguém fala com você é muito feio, viu?!

__ Vô Nhonhô disse que você gosta de mim. Mas você nem liga quando eu falo com você. Seu bobo! Olha pra mim, Minhoca!!... Eu não quero ficar sem você, viu?

__ Mirinha! – dona Iolanda, após abrir a porta do quarto da filha.

__ Oi, mamãe – abaixa a cabeça e choraminga.

__ O pulguento aí pode ficar.

A menina abraça o cachorro, e beija seu focinho, e pula, e grita, e chora de alegria!!

O avô, vendo o desfecho feliz da história, sem que a netinha perceba, tenta agradecer Dona Iolanda, que vira o rosto e vai embora antes que ele termine o agradecimento.

* * *

Durante algum tempo Minhoca é o rei da casa!

Mas... aos poucos, Dona Iolanda volta a implicar com o animalzinho. Seu Antônio, cada vez mais desgostoso com a esposa, continua chegando tarde quase todos os dias. Quando chega cedo, vai para o quarto da filha e fica por lá até que ela e seu amiguinho adormeçam. Nesses momentos, Minhoca é um rei para duas pessoas.

Mirinha, em suas oraçõezinhas, pede ao Papai-do-céu que não deixe sua mãe brigar mais com o Minhoca. “Nem que deixe ela mandar ele embora, viu, Papai-do-céu? Nunca!!”

A menina passa longas e longas horas conversando com o au-auzinho. E ele meio assim, esquisitinho, distraído como sempre – nem dá muita atenção pra ela. Olha pra direita... pra esquerda... repousa a cabecinha no chão, entre as patinhas. Dorme. Acorda. Morde o tapete... E Mirinha falando-falando.

__ Minhoca, olha pra mim, olha!

A menina sacode o pulguentinho carinhosamente. Ele não gosta desse jeitinho de sua dona. Pensa em latir uma porção de coisinhas desaforentas pra ela. É! Latir tudo que ele acha sobre esse negócio de ficar falando-falando historinhas sem parar. Está furioso! Vai começar a esbravejar, mas... passam dois mosquitinhos namorando. Minhoca, no mesmo instante, esquece a raiva e sua dona. Põe atenção naquele casalzinho alado... Lá se vão eles pela abertura da janela. Minhoca fica tristinho. Queria dar uma abocanhadinha neles.

__ Vem cá, Minhoca, no meu colinho, vem! – e abraça o cãozinho ternamente.

Ai, que gostoso! Colinho quentinho! Minhoca está feliz. Nem parece aquele menino bravinho de agora há pouco.

__ Sabe, Minhoca, o vovô contou que uma vez, muito, muito tempo atrás...

Abre o olho direito. Fecha. Abre o esquerdo. Fecha.

Cochila...

Acorda!

Boceja...

__ ... então, quando a princesa encontrou seu sapatinho... Minhoca!! Eu tô falando com você! Acorda!!

Ai, que sonhinho! Se não fosse isso, ele daria uma mordidinha bem na mãozinha dela.

* * *

Os dias caminham lentos... um a um...

Vô Nhonhô, uma vez ou outra, leva alguma coisinha para o Minhoca brincar. Mas ele nem liga. Vive cansadinho e distraído – como sempre! Fixa o olhar paradinho num canto da casa. Parece até que está vendo alguma coisa que ninguém mais pode ver. O velhinho começa a achar aquilo estranho, mas não fala nada para a netinha.

Dona Iolanda, cada vez mais preocupada com o destino de seu casamento, para de implicar um pouco com o pulguentinho.

Mirinha aprende novas histórias com o avô, para depois contá-las ao amigo. Contudo, fica aborrecida.

__ Sabe, Vovô, acho que não sei contar historinhas direito.

Vô Nhonhô sorri.

__ Por que, Mirinha?

__ Ah, Vovô, eu fico falando e falando, e o Minhoca nem olha pra mim.

__ Não, Mirinha! Você conta historinhas muito bem! Melhor do que eu, sabe?

Mirinha faz cara de desconfiada.

__ Sabe o que é? É que cachorro é assim mesmo. Eles fingem que não ouvem, mas no fundo-no fundo eles estão ouvindo, sim. E estão adorando!

__ Mas o Minhoca dorme!

E agora, Vô Nhonhô?

__ Bem... é que... ah... Lembrei! Uma vez eu vi na televisão que é assim que os cachorros gostam de ouvir historinhas. É isso, sim! É o jeitinho deles prestarem atenção.

__ É?!...

__ É!... Mas, Mirinha... o que é que é isso, minha netinha? Por que você tá chorando?

__ É... é que eu vivo brigando com o Minhoca pra ele prestar atenção, e o senhor disse que ele já presta... Coitadinho!

Mirinha segura o cãozinho no colo.

__ Minhoca! Minhoca! Acorda!! Desculpa, viu? Eu nunca mais vou brigar com você, tá?

Minhoca está sendo abraçado de costas. Ele olha para o vovô. O que está acontecendo? Sua barriguinha está doendo-doendo! Sua dona é muito carinhosa!! O pobre animalzinho está quase sem respiração. Seu focinho úmido busca mais ar. Os olhinhos ficam piscando-piscando devagarinho...

__ Mirinha, cuidado! O Minhoca tá muito apertadinho no seu abraço. Acho que ele já te desculpou – e sorri para a netinha.

Mirinha coloca o amigo na caixinha de sapatos (sua casinha!). Ele, encolhidinho de frio, apenas com um olhinho aberto, observa avô e neta que se afastam. Sente vontade de latir e pedir que lhe cubram do frio, mas logo desiste de seu intento. Muda de posição. Boceja um pouquinho. Treme. Rosna bem fraquinho com um mosquito que pousou em sua orelha. Está sem forças para espantá-lo dali. De olhos fechadinhos, adormece pensando em abocanhar mosquitinhos. Queria pegar uns dois ou três de vez!

* * *

Mas eis que chega um dia em que, assim como surgiu, tão de repente, Minhoca parte, deixando saudosa e triste sua pobre dona e amiga.

O dia amanhece como outro qualquer – nada de novo. Mirinha levanta-se alegrinha; pretende contar uma historinha recém-aprendida ao amigo. Caminha até sua casinha. Encontra-o imóvel... e frio! Está esticadinho, com os olhinhos meio abertos. Parece até que está acordadinho! Mas não está... A menina quer entender que é apenas uma brincadeira do au-auzinho. Acaricia sua cabecinha. Faz cosquinha. Briga com ele!! E nada... Pede que pare com aquilo. Ela gosta muito dele; será que ele não entende?

__ Minhoca, se você não falar comigo, eu não brinco mais com você, nem conto mais historinhas pra você!!...

Dona Iolanda chega e encontra a filha ajoelhada ao lado da casinha do cachorrinho. Chama Mirinha para tomar café. A menina responde que depois tomará. O Minhoca está doente, precisa de ajuda.

__ Mas que ajuda que o quê! Vem tomar café logo, que eu tenho um monte de coisas pra fazer! Largue esse cachorro pulguento aí, que ele se vira sozinho!

__ Não, mãe, ele tá doente, sim! Vem ver!!

__ Que ver o quê! Eu não vou ver nada, não! E se você demorar muito não tem café! Azar o seu!

__ Eu vou ligar pro Vô Nhonhô!

__ Isso, liga mesmo! O chato do seu avô entende muito dessas coisas. Ele é médico de cachorro, agora! Até parece! Valha-me, Deus!! E vê se não demora nesse telefone, que a conta tá vindo muito cara!

Vô Nhonhô chega o mais rápido que pode. Agacha-se e fica cabisbaixo. Não diz uma única palavra. Mirinha entende o significado dessa muda comunicação do avô.

Na cozinha, Dona Iolanda cantarola uma música antiga-antiga. Ela fala de um grande amor que se foi pra nunca mais voltar.

Minhoca também se foi. Pra nunca mais voltar.

* * *

Lá bem no fundão da rua, Vô Nhonhô e Mirinha fazem o veloriozinho do Minhoca. Sua casinha é, agora, o seu caixãozinho – o seu velho-novo e derradeiro lar. Do portão de casa, Dona Iolanda observa os dois, ajoelhados, ao lado do corpinho do pequenino cão.

__ Velório de cachorro... Onde é que já se viu?! Ainda bem que essa praga morreu, isso sim!

Mirinha está inconformada; não aceita a morte do companheiro.

Quando o caixãozinho desce à sepultura, a menina ainda olha uma última vez o antigo amiguinho distraído. Vô Nhonhô coloca a tampinha, lacrando para sempre aquela imagenzinha canina de olhinhos entreabertos e vidrados. Em seguida, começa a derrubar terra sobre a urninha fúnebre, até que tudo esteja acabado. Ajeita algumas flores sobre aquela campinha humilde, acende uma vela e novamente reza com a netinha, que agora chora incessantemente.

__ Sabe, Mirinha, a vida é assim mesmo. Num dia a gente sorri, no outro a gente chora. Depois sorri de novo, chora de novo, sorri de novo... É assim mesmo.

Mirinha fixa o olhar no avô. Enxuga os olhos com as costas das mãos.

__ Mas o Minhoca não podia morrer!

__ Eu sei que você não queria isso. E eu também não queria. Você sabe como o vovô gostava dele. Mirinha, deixa eu te explicar uma coisa, tá?

__ Tá...

__ Olha, Mirinha, tudo que nasce, um dia tem que morrer. Quer dizer, todo mundo morre. Os bichinhos morrem, as plantinhas morrem, as pessoas morrem. Tudo morre.

__ O quê? Até o senhor e eu? E o papai e a mamãe?

__ É, Mirinha, um dia vai chegar a nossa vez de partir.

__ Mas eu não quero que ninguém morra, vovô!

__ É que o Papai-do-céu chama a gente pra ficar lá com ele.

__ Ele chama? Pra quê?

__ Chama, sim. É que... bem... ele quer ficar bem pertinho da gente!

__ Então por que ele não vem pra cá?

__É que... É assim, Mirinha, nós é que vamos ficar pertinho dele.

__Mas eu não quero ficar pertinho dele, não! Ele é muito ruim!

__ Minha netinha, não diga isso do Papai-do-céu!

__ Ele levou o Minhoca!!

Mirinha volta a chorar. Vô Nhonhô a reconforta com um terno abraço.

Lentamente retornam para casa.

Seu Antônio, quando chega, tenta consolar a filha; promete que lhe dará um outro cachorrinho de presente. É que ele não entende que outro cachorrinho não adianta; Mirinha quer o Minhoca! Só o Minhoca!! Ela não quer outro! Nunca-mais-pra-sempre!!

Antes de dormir, Mirinha fica relembrando o amiguinho distraído e triste. E novamente se arrepende das vezes em que brigou com ele, porque ele não prestava atenção quando ela falava. Chora. Pede desculpas. Parece até que ele ainda está ali ao lado dela. Mirinha brigava, mas gostava dele; não era por mal. Minhoca aparece ao pé da cama, o olharzinho parado, triste-triste – mais do que das outras vezes. A menina brinca com ele, e ele nem liga de novo.

“Minhoca!”... E nada! Ele tomba a cabecinha pra direita... pra esquerda... fecha os olhinhos muito devagarinho e dorme. Aí, vem um homem grandão, bem velho e barbudão, e carrega o Minhoca pro outro mundo. “É o Papai-do-céu!”

Fim

Tempos depois...

Vô Nhonhô, sentindo que a neta já está mais alegrinha, decide fazer uma nova surpresa. Aparece com outro cachorrinho! E ele tem o cuidado de procurar um que se pareça com o Minhoca. Boa ou má idéia, o fato é que a menina fica bastante feliz. Vai logo agarrando o bichinho, conversando com ele, beijando-o! Parece até um reencontro! O au-auzinho é como se fosse um velho conhecido da menina. Ele guincha, retorce-se todo no colinho da nova amiga, rosna, late, dá até umas mordidinhas nas mãozinhas de Mirinha. Ela briga com ele e sacode-o de um lado a outro.

__ Mirinha, cuidado! Assim você machuca o cachorrinho!

A menina xinga o pobrezinho de bobo e depois coloca-o deitado em seus braços.

Mais calmo, o animalzinho ergue a cabeça como se estivesse a farejar algo. Mirinha gosta desse jeitinho esperto.

__ Vovô!!

__ Oi, Mirinha!

__ Ela já tem nome?

__ Ainda não.

Mirinha cola seu rostinho ao do pulguentinho recém-chegado.

__ Sabe, então, como ele vai se chamar?

__ Ahn!...

__ Palito!!

__ É?!... É!... Que nome mais bonito!

__ O senhor gostou, vovô?

__ Adorei, Mirinha! Você tem muito bom gosto para escolher nome de cachorro!

* * *

Pelas costas da filha, Dona Iolanda faz de tudo para se livrar de Palito, mas Seu Antônio não permite. Não se pode tirar um animalzinho assim da menina! Agora, que ela está tão contentinha, ninguém vai atrapalhar!

Muito diferente de Minhoca, Palito é alegre e brincalhão. Não para um minuto quieto. Corre de um lado pro outro, late e rosna o tempo todo. A menina vive levando mordidinhas do novo amigo. Só na hora de dormir ele sossega... um pouco.

Um dia, enquanto brinca com a netinha e o cãozinho, Vô Nhonhô sente umas pontadas mais fortes do que de costume. Põe a mão sobre o peito, dá um gemido profundo e cai. Mirinha sai desesperada à procura da mãe.

__ Que que é isso, menina? Tá ficando louca?

__ O vovô, mamãe! – chorando, gaguejando, quase não pode falar.

__ Que tem o seu avô? Fala logo, menina do inferno!!

__ O vovô caiu e morreu!

__O quêêêê?!!...

Ao ver o pai caído, Dona Iolanda enlouquece, fica sem saber o que fazer. Corre à casa da vizinha e pede ajuda. Outras pessoas também vêm para socorrer Vô Nhonhô, que respira fracamente. Mirinha, agarrada ao amiguinho Palito, chora e reza bem baixinho.

Algum tempo depois, chega uma ambulância toda branca-e-branca e leva o Vovô para o hospital. Dona Iolanda é a acompanhante. Mirinha fica com Dona Mercedes (a vizinha que primeiro socorreu Vô Nhonhô) até a chegada de Seu Antônio, já a caminho de casa.

Mais tarde Dona Iolanda liga avisando que o caso é um pouco grave. O vovô ficará internado, aguardando uma resposta positiva de seu já cansadinho organismo. Ele precisará ser forte (mais uma vez) e reagir. E o prazo é um tanto curto. Se ele não melhorar logo, as coisas ficarão difíceis. Ele está na UTI. Dona Iolanda pede que Seu Antônio vá buscá-la. No dia seguinte, após o almoço, os médicos acreditam que já terão condições de dar alguma informação mais precisa. E ela ficar no hospital não vai adiantar nada. É melhor voltar para casa e descansar. Nada resta a fazer, senão esperar. Esperar...

Nessa noite Mirinha pede ao Papai-do-céu que não deixe Vô Nhonhô morrer, porque ela gosta muito dele. E o Palito também gosta! “O vovô é muito bonzinho, Papai-do-céu! Se o Senhor não levar ele pra morar aí juntinho do Senhor, eu prometo que vou ajudar a mamãe, sem reclamar... E que... E... que... Eu prometo... Eu... prome...”

Psiu!!

* * *

O céu está cheio de estrelas. Por uma longa-longa estrada caminham Mirinha, Vô Nhonhô e Palito. Há muitas flores espalhadas pelo chão. Mas são flores negras! Negras como a noite... Avô e neta vão de mãos dadas. Palito salta e brinca alegre. O Vovô olha para o céu; Mirinha, para as flores. A menina quer apanhar uma, mas o velhinho não deixa. Pede à neta que olhe para o céu, para as estrelas, e não para aquelas flores negras e feias caídas no chão. Mas ela não quer, prefere olhar para as flores. O que é que tem? Palito, saltando ao redor de sua dona, late advertindo que aquilo não é coisa para ela. Mas Mirinha não entende. Nesse momento, eis que surge um velho amiguinho – Minhoca! Só que ele está tristinho, como sempre. Não quer falar. Não quer brincar. Fica só olhando-olhando para algum lugarzinho desconhecido, procurando ninguém sabe o quê. Tomba a cabeça para um lado... para o outro. A menina quer brincar com ele, conversar, mas Vô Nhonhô não deixa. Explica a ela que Minhoca agora é uma estrelinha lá do altão do céu. E, por isso, não pode ficar brincando com gente aqui da Terra. Palito implica com o Minhoca, que nem liga pra nada de nada. Vô Nhonhô avisa que é hora de continuar a viagem, mas Mirinha está muito cansada e quer deitar-se um pouco ao lado do antigo amiguinho. Minhoca, entendendo o desejo da menina, vai buscar uma coisa logo ali para lhe dar de presente. O avô pede à netinha que não se deite. Ainda não! Ela é só uma criancinha, é muito cedo para descansar! É preciso continuar! Falta muito!... De volta, Minhoca traz uma flor negra para Mirinha, depois deita-se a seu lado. A menina segura a flor com uma das mãos, com a outra acaricia o au-auzinho-estrela. Palito e Vovô desistem! Não dá mais para esperar por Mirinha, têm de partir, a estrada é longa, muito longa... Pela última vez, Vovô ainda tenta convencer a neta a retomar o caminho, a seguir com eles. Ela diz que até quer ir, só que está ficando com muito soninho. Se o Vovô e o Palito esperarem um pouco, só mais um pouquinho, assim que ela acordar, ela vai. Vô Nhonhô pede que ela não durma. Não durma!! Ainda não é hora de dormir!

“Mas é só um pouquinho, Vovô!”

Palito tenta arrastar Mirinha pelo vestido. Minhoca, deitadinho, apenas observa um ponto qualquer perdido no espaço. A menina ri do amiguinho Palito, tentando puxá-la. Vô Nhonhô despede-se de Mirinha e pede que ela nunca se esqueça dele. Ela nada responde, já está quase dormindo. Minhoca abre um olhinho... abre o outro... e boceja. Pouco a pouco Vô Nhonhô e Palito vão sumindo-sumindo na estrada escura... A neta e o au-auzinho-estrela estão cada vez mais distantes, distantes... O velhinho para um momento e olha para trás... Nada!! Somente um resto de estrada vazia. No céu, duas estrelinhas, lado a lado, parecem brincar de pisca-pisca.

* * *

No dia seguinte, Mirinha conta o sonho à mãe. Dona Iolanda diz que tudo aquilo é frescura de quem não tem o que fazer. É tudo bobageira de criança! Ela também já tinha sonhado muita coisa besta; e até depois de grande!

A menina entristece, volta para o quarto e fica se lembrando do sonho. Quer rever cada momento, e não consegue. Quer estar ao lado do Minhoca!... Mas a imagem do avô doente não lhe sai da cabeça.

“Ele vai morrer... Ele me deixou, no sonho... Vô Nhonhô, não vai embora, não!”

* * *

Três dias depois, o Vovô tem alta e volta para casa. Vai morar por uns tempos com Mirinha e Palito, até que sua saúde esteja restabelecida. Dona Iolanda e Seu Antônio preferiram assim, muito embora Vô Nhonhô resistisse um pouco.

__ Vô Nhonhô...

__ Fala, Mirinha, o vovô tá ouvindo.

__ Sabe, Vô Nhonhô, eu sonhei com você.

__ Ah, é? O vovô também sonhou com a Mirinha.

__ É mesmo?! Conta, vovô, conta!!

__ Eu conto, sim. Mas conte o seu primeiro.

__ Ah!... o meu é chato e bobo!

A netinha senta-se ao lado do avô, que está deitadinho.

__ Mas fala, assim mesmo, fala. Eu adoro ouvir sonhos.

__ Eu nem lembro direito. Só sei que tava o Vovô, eu, o Palito e o Minhoca.

__ O Minhoca? Nossa, que bom! E o que aconteceu?

__ Ah, eu não lembro. No fim, o Vovô me deixa sozinha, dormindo, e vai andando até sumir no escurão. Então eu pensei que o senhor ia morrer e me deixar, também. Mas a mamãe falou que isso é coisa de quem não tem o que fazer, que é coisa de criança.

Vô Nhonhô beija Mirinha.

__ E é coisa de criança, sim, Mirinha. O vovô não tá aqui agora, juntinho de você? Tá vendo só? O vovô não foi embora, não! Eu tô é bem vivinho!!

__ É! E eu nunca vou deixar o senhor ir embora, viu?!

Abraços... carícias...

__ Vô, agora conta o seu sonho, conta!

__ Tá bom! Eu sonhei que a Mirinha já era uma moça, muito bonita e inteligente! E que dançava, dançava na sua festa de quinze anos. E sabe com quem a Mirinha dançava?

__ Ah, Vovô, mas eu não sei dançar, não!

__ A Mirinha dançava com um lindo príncipe encantado.

Mirinha sorri.

__ Depois o príncipe encantado pediu a mão da Mirinha em casamento. Casaram-se e foram felizes para sempre!

__ Nossa, vovô, parece com as historinhas que o senhor me conta!

__ É, Mirinha, mas o vovô sonhou bem desse jeito.

__ Eu vou contar pra mamãe.

E sai correndo casa afora.

__ Mããããeeee!!!!!

Como sempre, a rabujice de Dona Iolanda predomina. Ela não quer saber de besteira de sonho nenhum que o Vovô teve! Diz que Mirinha está ficando caduca igual a ele. Depois pede à menina que suma dali, que ela tem muito o que fazer.

A pobre criança, quase estoicamente, se afasta. Passa de cabecinha baixa pelo Vovô, que tem certeza do que aconteceu. Senta-se em sua cadeirinha e ali fica, tristinha de tudo.

O velhinho pensa em ir falar à filha, mas desiste; sabe que qualquer esforço será inútil. Pede, então, à netinha, que fique sentadinha na cama, a seu lado. Sabe que Mirinha precisa de uma palavrinha de Avô.

Os dois ficam um tempão abraçadinhos e conversando.

Tudo está bem agora.

Palito pula pra lá e pra cá. Morde aqui e morde ali. Rodopia feito um pião!

A tristeza passou.

Tudo passa!

Nada fica.

* * *

Tempos depois...

* * *

__ Papai! Papaaaii!! Vê se leva essa menina pra passear um pouco, vai, por favor!!

Sábado à tarde.

Dona Iolanda está terminando de arranjar as coisas para a festa de aniversário de Mirinha. É sua festinha de seis anos!

Seu Antônio foi ao supermercado buscar o que está faltando.

Vô Nhonhô descansa no quarto, quando é chamado pela filha.

Dona Iolanda quer que Seu Ernesto leve Mirinha para dar umas voltinhas, até que ela termine de ajeitar tudo. É que a menina não pára de brincar de um lado pro outro com o Palito, zanzando a toda hora pela cozinha, fazendo barulho e bagunça, e isso a está irritando.

__ Ah, e vê se leva esse vira-latas de uma figa, também!

Vô Nhonhô tem receio de sair para longe. Sente-se ainda um pouco fraco. Não está totalmente recuperado.

__ É que eu ainda não estou muito bem, para ficar andando muito. Acho melhor não abusar.

__ Que abusar que-o-quê! Não vai abusar nadica de nada, não! Só vai até ali um pouquinho e volta. É só a conta de eu terminar de preparar umas coisinhas aqui.

Mirinha, nesse momento, brinca com seu au-auzinho querido, corre de um lado pro outro com Palito, no fundo do quintal.

__ Mas, então, eu só vou até a pracinha e volto.

__ Tá bom demais!! Aí o senhor fica lá sentadinho, descansando, espera mais ou menos uma hora, uma hora e meia, e pode voltar, tá?

__ Tá. Eu vou chamar a Mirinha.

__ Não esquece de levar o desgraçado do cachorro! Quem sabe ele não some por aí – e gargalha.

__ Deixe de falar besteira, Iolanda!

__ Besteira que o quê? Tomara é que ele morra no caminho!!

__ Você não tem jeito, mesmo!

__ Mirinha! Miriiinha!! Vem, que o seu avô tá te chamando pra passear um pouco! Ah, e é pra levar o Pirulito, também!

Mirinha, esbaforida:

__ Não é Pirulito, mamãe! É Palito!

* * *

No passeio...

__ Sabe, Vovô, eu acho que o Palito tá com medo de alguma coisa.

__ É que ele não está acostumado a andar na rua.

__ Eu vou apertar ele no meu colinho.

__ Mas não aperta muito, pra ele não ficar sem ar.

__ Tá.

O Sol já mostra ares de cansaço. Obliquamente, vai se despedindo.

Atravessam a rua com cuidado. Bem devagarinho.

Chegam à pracinha. Sentam-se.

__ Mirinha, nós não vamos demorar muito, porque eu não quero chegar à noitinha em casa. A festa começa às oito, e nós temos que nos arrumar ainda.

__ Tá.

Mirinha vê que Palito está muito agitado. Tenta que tenta sair de seu colinho.

__ Vovô, que que tá acontecendo?

__ O Palito quer brincar com um coleguinha novo.

Ali perto, um vira-latinhas bem simpático fareja os arredores. Palito sente-se tremendamente humilhado. Quer descer e tirar satisfações com o invasor. Debate-se no colo de sua dona; luta para sair dali. Não vê a hora de mostrar àquele forasteiro quem é que manda naquela pracinha.

Mirinha vai colocando Palito no chão. Ele, de tão nervosinho, acaba mordendo a mãozinha da menina.

__ Ai, Vovô!!

Vô Nhonhô sorri e faz carinho na mão da netinha.

Palito parte pra cima do inimigo, que foge sem pestanejar.

Pronto! Sua honra está restabelecida. De focinho em pé, trotando orgulhoso e faceiro, volta aos braços de sua preciosa donzela. Mirinha o ergue do chão como se fosse um troféu. Vitória! E, para desfecho do episódio, Palito, apoteoticamente, dá duas lambidelas na boca da menina.

O tempo corre, passa ligeiro.

O trânsito começa a aumentar!

O dia está terminando...

__ Mirinha, vamos voltar pra casa por um caminho diferente?

__ Vamos, Vovô!! O Palito também quer!

Lentamente retornam...

Quando estavam a meio trajeto, Vô Nhonhô pede à netinha que caminhe mais devagar, pois ele está com muito calor. Mirinha atende ao pedido. Mesmo assim, logo em seguida, o vovô para e coloca a mão no peito. Pede para Mirinha esperar um pouco, que ele está muito cansado, mas já vai melhorar. Só que não melhora. Encosta-se ao muro e deixa-se cair lentamente. Respira com dificuldade. Faz caretas. Mirinha chama pelo avô. Ele não pode morrer! “Não pode!!”Vô Nhonhô tenta falar alguma coisa. Não consegue.

Enquanto isso, Palito vê, do outro lado da rua, seu rival farejando pra lá e pra cá. Pensa expulsá-lo novamente. Tenta fugir outra vez do colinho de sua dona e protegida.

As pessoas passam, olham, fazem comentários à meia boca e vão embora. Algumas chegam a rir e a debochar, dizendo que aquele que ali está é um velho bêbado. Mirinha começa a chorar. Quer ir chamar a mãe, mas não tem coragem de deixar o Vovô sozinho ali, caído, sem ninguém fazer nada por ele, sem ninguém ajudar. “Por que não ajudam?” Os carros passam. Olham. Riem. Mas não param. Nenhum carro para para ajudar um pobre e desamparado velhinho estirado no chão.

__ Vô Nhonhô... não morre, Vovô!...

__ Não, Mirinha... o vovô não vai morrer... – aperta os olhinhos de dor. Esfrega a mão contra o peito indefeso.

* * *

Em casa, Dona Iolanda estranha a demora de Mirinha e de Vô Nhonhô. Seu Antônio quer ir procura-los, mas a esposa não deixa. É bobagem! Devem estar andando atrás daquele cachorro infeliz. Vai ver que ele escapou e sumiu por aí. “Tomara, Deus!”

__ Ou quem sabe ele foi atropelado e morreu de vez! – um angelical sorriso inundou de alegria o semblante da doce mãe.

__ Iolanda!! Até no dia do aniversário da Mirinha você é capaz de falar uma besteira dessas?

__ Sou capaz, sim! E daí?

__ E daí que se esse cachorro morre justo hoje... Sei lá!... Como fica a Mirinha?

__ Ah, para de me encher! Eu é que não vou estragar minha noite por causa daquele vira-latas pulguento e horroroso!

__Sua noite?!

Seu Antônio decide ir atrás da filha, do sogro e do pulguentinho horroroso – os três mosqueteiros.

Da porta da sala, Dona Iolanda vê o marido afastar-se.

“Eu vou é tomar banho, que daqui a pouco essa casa vai é estar cheia de gente louquinha pra encher a pança! Tomara que esses desgraçados, pelo menos, tragam presentes, pra compensar o prejuízo e a trabalheira!”

* * *

Já Seu Antônio, por ter saído apressado, esqueceu-se de perguntar onde tinham ido os três mosqueteiros. Acaba se encaminhando, então, em sentido oposto ao que deveria ir.

Pelo caminho vai perguntando às pessoas se viram uma menina, um velhinho e um cachorrinho passando por qualquer lugar.

__Não.

Desembestado, tropicando em seu próprio vulto, fica mais angustiado a cada passo.

__Mirinha! Mirinhaaaaa!!

O povo olha aquele homem sem nome e sem fama chamando “Mirinha” e pensa um montão de bobagens. E ele nem percebe que é percebido, que é notado, que é motivo de piadas. Ainda bem! Assim, pelo menos, não tem que enxergar e ouvir a ignorância e o egoísmo brotando de olhos e bocas asquerosas e torpes, tão comuns a nós todos. Assim, pelo menos, não precisa encarar de frente a verdadeira face do ser humano.

Mas, também, o que se esperar do ser humano? Solidariedade, compaixão, carinho, ternura? Que ele seja humano? Não!! Isso tudo é muito bonito na televisão! Lá todo mundo é santo! Todo cristão, quando vai dar uma entrevista, falando de qualquer coisa que seja, sempre é bonzinho, honesto e justo. Oh! santa boca imunda e nojenta que, à claridade dos holofotes e das câmeras, diante de microfones conectados à hipocrisia, desfia bondade e altruísmo. Nossa, como as pessoas são boas na TV! É o próprio céu na Terra. Aliás, o certo seria vivermos dentro dela, para gozarmos de tantas maravilhas que não encontramos aqui do lado de fora.

A verdade de fato, a verdade sem máscara, a verdadeira e única verdade está na rua-nua, sem mais nada e longe do falso-glamour transmitido em cadeia global. A rua-nua é a mãe da verdade! O resto é merchandising.

__Vô Nhonhôôô!!

O pobre coitado do pai está procurando a esmo.

Começa a ficar nervoso!

A noite dá os primeiros sinais de sua chegada.

Pergunta a um, a outro, mas ninguém viu um velhinho com uma menininha e um cachorrinho andando por aí.

Olha o relógio.

Onde estarão?

* * *

__ Vô Nhonhô, fala comigo! Não morre, não, Vovô!

Palito está agitado, quer escorraçar aquele cachorrinho intrometido que está bisbilhotando do outro lado da rua. Será que ele não aprende?

__ Para, Palito! O Vovô tá doente.

Vô Nhonhô sente uma dorzinha bem mais forte que as anteriores. Geme e aperta a mão contra o peito.

__ Vovô!!

Palito se aproveita do momento de distração de sua dona e rompe em direção à calçada oposta.

__ Palito, volta aqui!!

O velhinho arregala os olhos. Mirinha corre atrás do au-auzinho pulguentinho e horroroso.

__ Palito! Paliiitooo!!

Vô Nhonhô desespera-se para falar, gritar, berrar... mas não consegue.

Palito alcança o outro lado da rua.

Mirinha, num ímpeto infantil, corre atrás do amiguinho.

__ Palito, vem aq...

* * *

A noite chega e escurece o mundo.

No céu negro, uma estrela brilha triste e solitária. Ele não pode acreditar no que está vendo. “Não pode ser verdade!” Seu olhar senil e cansado perde-se num imenso, amargo e doloroso vazio.

Mais estrelinhas começam a piscar dentro do oceano da noite escura. Parece até que estão brincando lá no altão do céu.

Aquela sensação ruim está passando. Vô Nhonhô já respira melhor. As dores estão desaparecendo, enfim.

Com muito esforço, senta-se, escorado ao muro.

As pessoas e os carros passam, olham e vão embora. Por que não param para ajudar? O trânsito vai ficando cada vez mais confuso.

Buzina, buzina, buziiiinaaaaa!!!!

“A polícia tem que tirar esse cadáver logo da rua! Tá atrapalhando todo mundo, pô!”

A pouca distância dali, Seu Antônio continua procurando os três mosqueteiros. Já-já ele vai descobrir tudo.

Palito e o outro au-auzinho vasculham umas latas de lixo nos arredores. Depois, descem a rua conversando descontraidamente, até o finzão... lá embaaaixo!

* * *

Os convidados, comendo e bebendo muito, conversam às tantas. Sequer notam que a festa está sem o seu motivo, sem a sua razão de ser. Mas, também, pra quê? Que diferença isso faz?

“Ah, esses desgraçados me pagam! Aposto que o nojento daquele cachorro sumiu mesmo, e tá todo mundo atrás dele! Ai, que vergonha! E a culpa de tudo é dessa menina besta, enrabichada nesse vira-latas! Mas deixa comigo! Deixa!... Hoje, não, que é a festinha dela, mas amanhã ela me paga!... Ela vai levar a maior surra do mundo! Menina infeliz!!”

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Anjinho

Não chorem! Que não morreu!

Era um anjinho do céu

Que um outro anjinho chamou!

Era uma luz peregrina,

Era uma estrela divina

Que ao firmamento voou!

(...)

(Álvares de Azevedo)

Gentil Tadeu Gomes
Enviado por Gentil Tadeu Gomes em 27/04/2011
Código do texto: T2933654
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