O Enterro

A tarde, clara e sombria, traz-me um sentimento que mistura angústia, tristeza e solidão. Algo está errado, diferente, mas não consigo saber o quê. Meus pensamentos reviram-se, vão de um lado a outro, confundem-se, torcem e retorcem...

Conheço bem este cemitério. Já estive aqui outras tantas vezes. Assisti a enterros de parentes e amigos. Acompanhei e confortei a tristeza de tanta gente. Disse palavras tão belas como jamais poderia esperar um dia dizê-las.

A morte é uma coisa muito simples, e muito complicada! Simples para quem parte, mas complicada para quem fica. Difícil lidar com ela. E imaginar que um ínfimo fiozinho é o divisor entre o estar e o não estar vivo. As folhas que caem dessas árvores, por exemplo, um dia foram fortes e viçosas; enfrentaram tempestades e muitos vendavais sem ao menos se abalarem com isso. Hoje, todavia, amareladas, fracas e envelhecidas, desprendem-se dos galhos e da vida à menor brisa que sopre. Assim somos nós. Tudo é assim.

Há algum tempo perambulo sem rumo, lendo os epitáfios e observando as fotografias nas lápides. À medida que avanço, olho para trás e tenho a nítida impressão de que esses olhos sem vida acompanham meu trajeto. É como se estivessem se movendo enquanto caminho. Parece que são essas pessoas que me olham, e não o contrário. Às vezes paro, fixo o olhar em alguma delas e tento imaginar como teria sido sua vida. Se teria sido feliz ou não. Se teria sofrido muito na hora final, no instante derradeiro. Acho que deve ser difícil sentir que é o fim. Sentir que numa fração de segundo tudo estará terminado. Sentir que toda uma história de vida ficará para trás, e que nunca mais haverá a possibilidade de absolutamente nada. É... deve ser horrível. Depois me vem à cabeça suas últimas vontades. Despedir-se de alguém, pedir desculpas, pedir perdão, dar ou receber um abraço, dizer “Eu te amo!”. Mas aquele rosto na lápide nada me diz. Somente observa. Chego a imaginar que ele esteja lendo meus pensamentos. Quem sabe até rindo de mim.

O corpo de alguém está para ser enterrado. Vejo movimento no velório. De quem será?

Caminho a passos lentos, custosos...

Uma tristeza imensa vai penetrando e se espalhando pelo meu corpo. Sinto calafrios, desânimo.

Há muita gente do lado de fora. Mas isso não quer dizer nada! A morte e a desgraça alheia atraem, aguçam a curiosidade, numa espécie de catarse, de alívio por ser o outro quem se encontra naquela situação, e não o Eu. É uma espécie de conquista, de sentir-se vitorioso e superior diante de um igual. Ou mesmo uma fuga da realidade, como se o simples fato de ser a outra pessoa quem esteja, no momento, num grande sofrimento ou num caixão, isentasse-nos de um dia estar em seu lugar, centro da atenção de outros tantos que, por sua vez, estarão com um sentimento de alívio, imaginando que jamais passarão por aquilo, formando, assim, um ciclo infinito. Coisa de gente!

Olho o céu. Como é bonito! Será que vamos para lá quando morremos? Quem será que inventou essa bobagem? Se vamos para o céu após a morte, por que então já não nascemos lá? Seria bem mais simples! Por que viver duas vidas: uma vivo, outra morto? Viver uma vida morto!?

Vejo pessoas conversando, rindo.

Muitas riem um riso de imensa alegria, como se estivessem a quilômetros de distância do lugar e do momento em que na verdade se encontram. Alguém, como de costume, deve estar contando piadas, ou relembrando episódios engraçados e grotescos. Aliás, diga-se de passagem, não há melhor ocasião e lugar para isso que um velório. Principalmente se for de parente.

Num canto, isolado e de cabeça baixa, um senhor alto e forte.

Chega uma velhinha para cumprimentá-lo. Ele ergue a cabeça, estende a mão e agradece. Depois, volta a ficar como antes.

Triste...

Morte... Vida... Morte...

Quem teria morrido?

Vou andando...

O cortejo sai do velório em direção ao local do sepultamento.

Algumas mulheres caminham abraçadas, como que buscando consolo mútuo. Outras pessoas, com o semblante fechado, apenas caminham, nada falam.

Aquele senhor alto e forte é o último a sair.

Vou acompanhando o cortejo a certa distância. Sinto as pernas pesadas, o passo cansado, um desânimo enorme. É como se estivesse num oceano de lama, tentando me locomover.

O local do sepultamento começa a ser circundado. O caixão, ao centro, é a grande estrela da tarde. Todos olham para ele. Tudo é um longo e frio silêncio. Percebo que o momento máximo de tristeza, de desespero e de sofrimento se aproxima. O som de muitas bocas trêmulas e molhadas de lágrimas substitui a serenidade até então reinante. Muitos cobrem o rosto ou o escondem no ombro de um amigo ou parente. Um sentimento de desalento e impotência exala dos semblantes que há pouco sorriam copiosa e descontraidamente.

Nenhuma nuvem no céu.

Passo por entre as pessoas. Não vejo seus rostos. Meu olhar está fixo no caixão.

Um dos coveiros se abaixa e começa a levantar a tampa.

O senhor alto e forte, escondendo o rosto com as mãos, chora convulsivamente. Dois amigos o retiram dali.

Caminho vagarosamente. Um passo... outro passo... outro mais... Parece que estou me movimentando em câmera lenta. Meu corpo está tremendo. Quase já posso ver quem está deitado nesse leito negro, horrendo, macabro!

Muitas pessoas choram e dizem palavras de despedida e de carinho. Carinho talvez nunca demonstrado em vida.

Adeuses!!

Acenos!

Gemidos.

Lágrimas...

Estou muito perto.

O coveiro se afasta.

Só mais um pouco...

Cheguei.

Minha ansiedade vai passando...

Fixo o olhar no corpo, que acaba de ser descoberto.

Uma claridade imensa envolve de brancura a tarde que entristece.

A pessoa que está sendo enterrada... sou eu!

“Dentro da linguagem da natureza, morte significa aniquilação. E que morte é uma coisa séria, já se deixa concluir pelo fato de a vida, como todos sabem, não ser uma brincadeira. Sem dúvida, nada temos de mais digno a receber do que ambas.”

Arthur Schopenhauer

“A morte é a grande correção infligida pelo curso da natureza à vontade de vida e ao egoísmo que é um elemento essencial a ela; pode ser concebida como uma punição para nossa existência.”

Arthur Schopenhauer

Gentil Tadeu Gomes
Enviado por Gentil Tadeu Gomes em 26/04/2011
Código do texto: T2932311
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.