Labirinto

I

Quando Ele entrou no bar, foi logo pedindo uma coxinha fresquinha da semana anterior (mas Ele pensava que era daquela horinha). O balconista, fazendo dez mil outras coisas ao mesmo tempo, sequer olhando o ilustre freguês, colocou o pratinho de plástico surrado sobre o balcão e perguntou “Bebe o quê?”. E Ele respondeu “O refrigerante mais barato. O mais barato, viu?”. E, mesmo assim, o mais barato, para Ele, um desgraçado na vida, um reles trabalhador honesto, ainda era caro.

As paredes da birosca estavam decoradas com pôsteres de cerveja, em que mulheres esculturais exibiam elegantemente o seu ganha-pão. Nada de mais! Afinal de contas, cada um se vira com a inteligência que tem.

-- Tá’qui – falou o balconista, ainda sem olhar para a celebridade – Mais alguma coisa?

-- Não.

-- Se precisar, é só chamar.

Coxinha insossa e passada, regada a refrigerante de terceira. Mostarda com gosto de qualquer coisa, menos de mostarda. Catch-up com gosto de sabão feito em casa. Pimenta ralinha-da-silva, que não arde de jeito nenhum. Esse era seu destino inalterável! Mas não deixava, por isso, de ser um destino. E Ele se orgulhava muito disso. Era pobre, sim, mas honesto! Com certeza iria para o céu, enquanto aquele bando de ricos espalhados pelo mundo iria se ferrar nas profundezas do inferno. Essa ideia o confortava, assim como a tanto outros iguais. Puro ópio. Mas Ele pensava que era verdade. Também pudera, foram sua mãe e seu pai que lhE deram esse tão valioso ensinamento. Como não acreditar?

Enquanto mastigava o primeiro naco, tentava chegar a uma conclusão extremamente complexa. O que era pior: a coxinha, a mostarda, o catch-up ou a pimenta? Mas agora já estavam ali, não dava para desistir. Jogar fora, nem pensar! Haviam custado o olho da cara. Aí lembrou-se de tanta gente que passa fome por esse mundão sem fim. Além do mais, jogar comida fora era pecado mortal!

No balcão do lado oposto, um casal comia da mesma coxinha e usava os mesmos acompanhamentos. Mastigavam com um ar que ficava entre a nobreza e o ridículo. Demonstravam estar apreciando o mui sofisticado manjar. Ele percebia isso porque, frequentemente, ao mastigar o pedaço de coxinha que estava na boca, o casal se entreolhava erguendo a sobrancelha e revirando os olhos, em sinal de aprovação. Deveria estar delicioso mesmo!

Indignado, olhou Ele para sua coxinha mordida. “Será?”

Olhou outra vez para o casal, que conversava e comia, comia e conversava.

Novamente encarou sua iguaria. “Seráá?!?”

Nisso, uma mosca que estava há tempos apenas aguardando uma deixa para se intrometer no assunto, não suportando mais a espera, estofou o peito com toda a força e voou até pousar mansamente bem sobre a parte mordida da coxinha do ilustre freguês pensativo. Caminhou ziguezagueando, um tanto indecisa (talvez pela emoção), sem saber por onde começar. Finalmente parando, esfregou as patinhas, com grande júbilo. Era chegado o tão esperado momento! Seu semblante insetístico era de gozo, de êxtase. A coxinha realmente estava muito boa!

O Ilustre admirou-se ao ver que até aquela asquerosa mosca se deliciava ao experimentar o sabor de seu suculento manjar. Por que, então, Ele não conseguia sentir um gosto gostoso?

Irritado, num gesto heróico e ímpar, digno somente dos privilegiados pela linhagem, pela grandeza genética, pela suprema historicidade de sua casta, não teve dúvidas, meteu a coxinha de um só golpe na boca, com mosca e tudo.

Foi maravilhoso!!

Lambeu os beiços. Tomou um gole, só pra rebater.

“Agora, sim!”

Coitada da mosca! E justo na hora em que ela estava tão alegrinha e cheia de vida!. Por que será que é assim? Provavelmente ela sequer imaginou que toda aquela felicidade representava o prelúdio de sua morte. Com certeza era uma boa mosca-pessoa.

E Ele nem bem acabara de saborear o último pedaço da guloseima, eis que adentra o recinto um mendigo asqueroso, cheirando a coisa podre. Pelo jeitão, com certeza há tempos aquele corpinho disforme não via água e sabão.

O balconista ficou observando, para ver se o verme-humano iria incomodar o freguês; e sua cara não era nada boa. O infeliz do mendigo nem reparou naqueles olhos faiscantes que o tinham em mira.

-- Me dá um trocado aí, em nome de Jesus – os olhos de sofrimento.

-- Vá te catar, coisa rúim!!

-- E o senhor num tem medo de Deus e de Jesus, não, é?!

-- Eu num tenho dinheiro nem pra mim, ô! Cai fora!

O mendigo asqueroso franziu a testa, com ar de choro. E pediu:

-- Então me dá um cigarrinho, em nome de Jesus e de Nossa Senhora! – uma lágrima sentidamente fingida deslizou mansa pelos sulcos do rosto precocemente envelhecido pela vida e pela cachaça.

Aí foi demais! Enfurecido, Ele se levantou, dando um tapa retumbante na mesa.

O balconista correu, armando um murro para socar na cara do desgraçado que estava atrapalhando os negócios. Se o patrão visse uma coisa daquelas acontecendo, era bem capaz de ser demitido.

As outras pessoas que estavam no bar olharam com o espanto indiferente de todo dia. O casal também olhava, é óbvio, mas logicamente sem parar de comer, senão a coxinha esfriava.

Um trovão explodiu da boca d’Ele, alegrando o ambiente:

-- EU NÃO TENHO CIGARRINHO NENHUM PRA TE DAR, PORQUE EU NÃO FUMO!! E SOME LOGO DAQUI, SEU FILHO DA...

-- Moço, se acalme. (Silêncio...) Eu também num fumo! - e saiu gargalhando.

Ele teve ímpetos de esganar o verme-humano. Chegou a levantar-se, mas acabou desistindo, o que provocou grande desapontamento nas pessoas, que estavam certas de que ia ter início um barraco, um fuzuê, quem sabe até uma morte.

O mendigo, alheio a tudo, andou alguns poucos metros e parou diante de uma lixeira. Enfiou a mão e vasculhou o lixo, revolvendo-o várias vezes. Puxou alguma coisa suja e cheirou. Fez uma careta. Ia devolver, mas... cheirou novamente. Meteu a coisa na boca! Depois, virou-se, olhou para as pessoas que estavam no bar, acenou e foi embora.

Encerrado o episódio do mendigo, quando Ele encaminhou-se em direção à rua, foi abordado pelo balconista.

-- Moço, o senhor ainda não pagou a conta, não! – olhos desconfiados e acusadores.

Ele percebeu a intenção do olhar e retribuiu. Seus olhos, então, fuzilaram o balconista, reduzindo-o a um mero e ignóbil balconista de boteco de quinta categoria.

Humilhado e sem saber o que fazer, o balconista foi um instantinho lá dentro e logo voltou. Estava com uma faca na mão. Disfarçou que descascava uma laranja, mas não adiantou, pois Ele percebeu a intimidação.

-- Tá’qui o dinheiro. (Era uma nota de cincão)

O balconista foi lá dentro outra vez e voltou com o troco.

-- Tá’qui o troco – sem olhar os olhos do freguês. Volte sempre.

-- Brigado!

* * *

Pé na estrada outra vez.

Enquanto caminhava, Ele ficou se lembrando do episódio de há pouco. Não estava mais aborrecido, inclusive sentia até admiração pelo mendigo asqueroso. Seu porte de nobreza, sua altivez e elegância. É, um mendigo estiloso! Foi com muita galhardia que enfiara a mão na lixeira imunda e retirara de lá um pedaço de qualquer coisa para comer. E o jeito de cheirar, então! Nunca vira algo tão belo. Aquele olhar e aquele aceno pareceram-lhe coisa de filme, coisa de cinema.

Sentiu algo tocar-lhe levemente no ombro. Virou o rosto e olhou. Era cocô de pombo.

-- Caceeeteee!!!

Instintivamente passou a mão para limpar.

Piorou a coisa!

Sentiu ânsia de vômito.

Voltou correndo para o bar e pediu para ir ao banheiro. O balconista pegou a chave e a entregou ao nauseabundo, avisando que o toilette estava sujo, sem luz e sem água.

-- Tá, tá, tudo bem!!

Ele abriu a porta, deixando a claridade entrar, para fazer um breve reconhecimento do local. Não havia vitrô. Mas havia alguns produtos estocados para o sanduíche dos fregueses. O cheiro exalado do recinto foi medonho. Uma baforada avassaladora! Até as pessoas que lanchavam ao balcão sentiram-se incomodadas. E esse odor inominável e inexprimível acelerou seu metabolismo. Embora sua razão lhe ordenasse que sumisse dali, seu corpo não o deixou recuar, empurrando-o em direção à latrina. Um frio gelado inundou-lhe a testa, enquanto uma ligeira tontura começava a bloquear sua visão. Arregalou os olhos um átimo de segundo para marcar bem onde estavam o vaso e a pia e entrou. Virou-se desesperado e trancou a porta. Parecia que ia pôr as vísceras pela boca. Ajoelhou-se ao pé da latrina e descarregou com vontade tudo o que tinha de podre dentro de si. Foi essa uma grande limpeza interior.

Cansado à exaustão, nem se importou com os respingos nojentos e repugnantes que lhe impregnaram o rosto. Tanto que chegou a lamber alguns que estavam no canto direito da boca. Estava leve; nada mais poderia abalar sua tranquilidade. Uma sensação de paz eterna tomou-lhe por inteiro. Ameaçou sorrir!

Permaneceu ajoelhado sobre o fétido abrigo. Estava leve como nunca estivera antes, mas sentia-se também muito cansado e sonolento. Recostou a cabeça lateralmente à borda do vaso sanitário (que assistia a tudo, deslumbrado), abraçando-o carinhosamente em seguida. A pele de seu arrimo estava lisa e fria. Ali adormeceu. Fundiu-se, enfim, ao ambiente. Escatologicamente.

* * *

Acordou.

Estava absurdamente grogue. Era ele quem girava ou era o mundo? A cabeça era um submarino encalhado na região abissal do esquecimento. Quem era? Que lugar era aquele? Não se lembrava de nada! Teria enchido a cara, por isso a zonzeira? E aquele cheiro maldito, de onde vinha? Tentou erguer-se, mas não conseguiu.

A boca amargava um pouco.

Por que estava tudo escuro?

Sem forças, relaxou.

Ficou olhando para o nada, e isso lhe agradou bastante. É, agradou muito mesmo! Sentiu um vazio enorme que o preencheu por completo. Só então se deu conta de que poderia ser feliz de verdade. Justo ele que sempre dizia que a felicidade era conversa fiada pra enganar os trouxas. E agora ele estava sentindo que ela alojara-se dentro de si. Assim, tão fácil! Era só encher-se de vazio e pronto!

Felicidade!

Deixou o olhar vagar pela escuridão.

Era tudo tão igual!

* * *

Aos poucos o mal-estar e o cansaço foram desaparecendo. E, quanto mais distantes ficavam, tanto mais perto suas lembranças sorriam-lhe. Até que se lembrou, então, de tudo. De tudo-tudinho!

O cheiro nauseante intensificou-se pela sua pele, ossos e vísceras.

Levantou-se.

Olhou em derredor, tentando enxergar a porta. Tateou agachado. Rastejou. Tateou novamente em busca do vaso sanitário ou da pia.

Nem vaso, nem pia!

“Ué?!?”

-- Moço do bar!! – berrou.

-- ...do bar, do bar, do bar, do bar... – o eco!

-- Alguém aí!!!

-- ... aí, aí, aí, aí...

Silêncio!

Silêncio.

Silêncio...

Ficou imóvel sem saber o que fazer ou pensar. Não conseguia entender o que se passava. Se estava no banheiro do bar há pouco, como fora parar ali? Aliás, onde era ali? Que lugar era aquele?

Nova rajada de silêncio.

Ouviu algo esquisito. O coração disparou. O corpo tremia em frenesi. Forçou a vista, tentando ver o que seria.

O som se repetiu, dessa vez mais forte.

De onde estava vindo aquele som?

Som de quê?

Outra vez!

Ele já estava entrando em pânico quando percebeu, enfim, de onde vinha o som esquisito. Vinha de sua respiração.

Sorriu feito criança.

Nunca tinha ouvido sua própria respiração. Coisa ridícula! Como pode alguém nunca ter ouvido sua própria respiração?

Esse fato insólito deu-lhe ânimo, pondo-o de pé.

* * *

Depois de titubear um pouco, criou coragem e empurrou sofridamente o pé direito para a frente. Bem devagar. Inclinando-se. Tateando o ar. Em seguida, arrastou o esquerdo, que parecia pesar toneladas. Empurrou outra vez o direito. Arrastou o esquerdo. E mais outra, e mais outra, e mais outras tantas vezes. Até que sentiu-se seguro e começou a andar. Mas... para onde? Andava, andava, andava, e nada de encontrar qualquer coisa: um móvel, uma parede, uma porta, um poço, um abismo!!

Vagou um tempo aleatoriamente, na esperança de ter melhor sorte.

Enfim, trombou contra uma parede. Alisou-a em busca de uma porta. Foi andando lateralmente, ora para a direita, ora para a esquerda.

Onde estaria a maldita porta?

O medo voltou!

Pôs-se novamente a empurrar o pé direito e a arrastar o esquerdo.

Num momento de lucidez (ou de sua total falta), decidiu caminhar somente para um lado, e escolheu o direito.

Foi andando lentamente, passo após passo. Eram passos medidos, calculados, trêmulos e frios. A parede era interminável, mas ele não desistia.

Outra parede! Mas agora não havia como optar entre direita e esquerda, pois só havia uma direção a seguir. E Ele seguiu! E seguiu! Seguiu.

Outra parede! A direção a seguir havia mudado. Iria dessa vez para o lado oposto.

“Quem sabe...”

Onde estaria?

Onde estaria Deus? Com certeza passando férias em algum lugar do Paraíso, rodeado por uma porção de anjas bem bonitas e sensuais colocando uvas e morangos em sua boca santa!

Fim da parede!!

Sentiu um frio na barriga. Seria o fim da parede ou o seu?

Caminhou três ou quatro passos à frente e encontrou novo paredão. Uma vez mais poderia escolher entre caminhar à direita ou à esquerda.

“Esquerda!”

Sempre tateando, Ele continuou sua epopeia.

Ficou andando assim durante horas e horas, sem nada encontrar. Sempre chegava a uma nova parede que levava a outra parede, num círculo sem fim.

Exausto, sentou-se. Melhor: deixou-se cair.

Refletiu sobre o que vivenciava e chegou à conclusão de que estava preso em um labirinto.

Seu arfar inundou os ouvidos de irritação. E era uma irritação insossa, sem graça e sem cor de absolutamente nada!

Enfiou as mãos nos bolsos da calça e encontrou algum dinheiro. Umas cinco ou seis notas de papel e umas quatro moedinhas de baixo valor. Esse dinheiro pesava muito ali. Provavelmente era ele quem o estava atrapalhando, tornando-o lerdo. Tinha de se livrar dele.

“Dinheiro, aqui, pra quê?”

Entretanto, quando ia arremessar tudo fora, ponderou: “As notas, não!”, e guardou-as para uma possível necessidade futura. Depois, sem fazer grande esforço, jogou umas poucas moedas. Mas não houve barulho. Elas não caíram! Ou caíam e caíam perenemente?

Intrigado e assustado, começou a inclinar o corpo bem devagar, deixando a mão esquerda deslizar mansamente sobre o chão. Não colocou o peso do corpo sobre a mão que tateava o solo, mal roçando a frieza do piso.

Deitou-se.

Centímetro a centímetro, foi se arrastando até encontrar a explicação para a ausência de barulho de moedas batendo contra o chão. Com o coração a mil por hora, alcançou o buraco ou vão em que elas haviam caído. Não dava para saber exatamente o que era. Recostou-se à parede e esticou-se o máximo que pôde; não encontrou chão à frente. Arrastou-se lentamente, tateando a borda do abismo, até chegar à parede do lado oposto. Isso significava que simplesmente não havia como prosseguir por ali. Teria obrigatoriamente que retornar e buscar outra saída.

E pensar que Ele poderia ter caído nesse abismo, em vez das moedas.

Fora salvo por elas, aquelas moedas sem nenhum valor.

Engraçado!

* * *

Enquanto caminhava, lembrou-se da família.

Só agora lembrava-se de que tinha uma família! Também pudera: como pensar em família numa situação daquelas? Era só o que faltava! Absolveu-se da culpa.

Antes de sair de casa, a esposa tinha pedido a Ele que não se esquecesse de comprar molho de tomate. Com certeza, ela o deveria estar xingando até a quinta geração.

E, por falar nisso, há quanto tempo estaria ali? Perdera por completo a noção do tempo. Já havia dormido e acordado duas vezes. Ou seriam três?

“Droga!!”

Teve ímpetos de virar-se e correr em direção ao abismo, à certeza da morte. Se teria de morrer de fome e de sede naquele labirinto, para que esperar? Para que agonizar? Melhor ter uma morte mais digna. O peito parecia a ponto de explodir; doía muito. Sentiu suar frio. A boca não parava de tremer. Estava decidido: sua hora chegara! Que se danasse a família, que se danasse o mundo! Cerrou os punhos e os olhos. Mas eis que teve a impressão de ouvir a voz da filha chamando por seu nome: “Pai!” . Talvez fosse mesmo, mas não iria desistir de jogar-se no abismo.

A respiração começou a faltar. O corpo estava muito mais pesado.

Iniciou sua mórbida caminhada final. A agonia latejava em seus olhos invisíveis.

Se Deus existia de fato, por que não vinha em seu socorro? Por que o estava deixando morrer daquele jeito? Aliás, por que o deixara chegar até aquele ponto, já que era tão poderoso? Estaria, por acaso, distraído, deleitando-se com as anjas, mesmo? E ainda tem gente que acredita!!

“Deus criou o homem ou foi o contrário?”

O corpo subitamente ficou rijo. Os dedos, inutilmente, tentavam penetrar na parede. Estava com um dos pés na beirada do precipício infinito. Bastaria largar o corpo, deixar-se cair para o lado e pronto, tudo terminado. Sentiu a boca amargar. Novamente ouviu a voz da filha dizendo alguma coisa, mas era incompreensível. Cerrou os olhos com toda a força que pôde. O coração estava a mil. “Não esqueça de trazer molho de tomate!”. A Morte apenas observava, pois não era de seu feitio interferir nos desígnios da Natureza. Afinal, ela, a Morte, era tão-somente mais um de seus filhos, devendo-lhe, pois, obediência e respeito. Limitou-se, então, a abrir um tênue sorriso de quem tem a eternidade para esperar. Para quê pressa? Tratava-se apenas da rotina, nada de especial!

Ele ficou ali parado durante horas, até cair prostrado no chão. Não teve coragem de atirar-se. Afastou-se. E chorou um choro interminável e seco. Não derramou uma única lágrima. O mundo girou, girou, girou...

* * *

Caminhava feito louco. Nem parecia lembrar-se do abismo que havia encontrado anos atrás. Em verdade, era como se tal episódio nunca houvesse existido. E Ele estava decidido a não parar mais até que encontrasse a maldita saída daquele inferno de lugar.

Direita.

Em frente.

Esquerda.

Em frente.

Esquerda ou direita?

Esquerda novamente.

Em frente.

Esquerda ou direita:

Direita!

Em frente.

Direita, esquerda ou em frente?!?

Direita!!

Anda... anda... anda...

Esquerda.

Em frente...

A voz da filha, como sempre incompreensível, dizia-lhe algo. Mas o quê?

Como estaria ela? Já deveria estar uma mocinha, ou uma mulher, ou uma senhora, ou uma velhinha, ou mesmo já ter até morrido de velhice. O tempo passa para todos, indistintamente. É!

“Será que alguém ainda se lembra de mim?”

Sentou-se.

Desde que entrara naquele labirinto, nunca mais vira absolutamente nada. Estava cego de si mesmo. Só a lembrança da filha o acompanhava em sua dura jornada. Mesmo assim, somente sua voz lhe vinha aos ouvidos. Ou seria à mente? Sabia que existia um outro mundo, de onde viera. Sabia que nesse outro mundo havia pessoas, muitas pessoas; só não conseguia lembrar o que era ser uma pessoa.

Teria se transformado em um pensamento apenas?

Estaria morto, vagando pelo purgatório ou pelo inferno?

Mas com a vida que levava, morrer talvez tivesse mais sentido, mais razão. Seus caminhos eram sempre iguais: o próximo ponto de chegada era também, inexoravelmente, o próximo ponto de partida, num círculo perene.

“Será que alguém está sentindo a minha falta?”

Sua esposa, na certa! Mas não porque o amasse; é que ela precisava do molho de tomate para preparar o almoço. E ele nem levou! Coitadinha...

Se ninguém mais sentia sua falta; se ninguém mais se lembrava dele, então morrer estava certo. E assim pensando, entendeu que essa era uma coisa boa que a vida reserva aos homens. “Já pensou se sofrêssemos eternamente pela morte de um ente querido? Isso, sim, seria ruim!”. Essa é nossa condição no mundo, imanente à existência do ser. Depois da dor intensa, sobram apenas as lembranças boas, alegres, e o choro esvai-se no passado.

Um zumbido!!

Olhou para o inefável mundo interior, vasculhando a escuridão eterna. De onde teria vindo aquele zuuuummmm? Prendeu a respiração para não atrapalhar sua empreitada. Arregalou bem fundo os olhos e aguçou a audição.

“Zuuuummmm...”

Onde?!?

Para onde virasse, tinha a nítida impressão de que o som vinha sempre do lado oposto.

Ficou girando, girando.

Cansou-se.

Parou!

“Zuuuummmm...”

* * *

E ele continuou andando em seu labirinto, na esperança sem fim de que encontraria a saída, que não existia. Não existia, mas ele pensava que existia. Se não pensava, então iludia a si mesmo. Talvez fosse apenas um jeito de ser feliz. Tanta gente faz isso! E ali onde estava, naquela escuridão absoluta, acompanhado por um zumbido que retinia mas não tinia,vagando indefinida e infinitamente , a esperança e a ilusão representavam o elixir da vida e da felicidade.

Aos poucos deixou de se lembrar de sua outra vida. E nunca mais ouviu a voz da filha, nem tampouco se preocupou com o molho de tomate para a esposa. Também se esqueceu de sua própria imagem. Depois deixou de sentir seu corpo no espaço.

O que sobrou?

O Labirinto.

E o tempo, por onde andaria?

Também deixara de existir.

Gentil Tadeu Gomes
Enviado por Gentil Tadeu Gomes em 26/04/2011
Código do texto: T2932303
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