Riacho das moedas

Fugindo da batalha violenta que assolava a região, sem que soubesse ao certo quem guerreava e as razões de tamanha insanidade, Ele esgueirava-se pelos caminhos e veredas, as balas zunindo por cima da cabeça... De tempos em tempos, um estrondo maior lhe estremecia todo o corpo: eram as bombas lançadas pelos navios, ancorados ao largo. O clarão dos disparos dos canhões cortava o céu e guiava sua corrida desesperada no rumo oposto. Foi essa corrida angustiante que o levou àquele riacho. Correndo como estava, nem sequer percebera a mudança do terreno, a pequena depressão que levava ao esguio leito d’água. Quando deu por si, já adentrara na água límpida e refrescante do riacho. Para sua surpresa, já não ouvia mais o barulho dos tiros dos canhões e das rajadas de metralhadoras anti-aéreas. Achando estranho aquele súbito silêncio, parou por instantes: tudo estava silente, só a água deslizando sobre uma camada de pedras pequenas, num movimento suave e pacificador. E não entendia porque não ouvia mais o barulho da guerra, pois o clarão das balas e morteiros continuava a cortar o céu... Não importava, naquele riacho ele estava protegido daqueles horrores... a água rasa e fresca lhe acalmava. E assim, imbuído daquela súbita e inesperada bonança, seguiu o curso das águas, na direção da nascente. Pouco depois teve a atenção desperta pelo brilho de uma moeda dourada, jazida entre as pedras, a dois passos de si. Foi até ela, dez centavos. Juntou-a. Depois viu mais uma, agora prateada, de cinco, depois outra – de um real. Logo concluiu que o leito do riacho estava coberto delas e saiu juntando-as, andando com a água abaixo dos joelhos. Entretanto, depois de percorrer certa distância, notou que as moedas não aumentavam em sua mão – por mais que as recolhesse, nunca ficava com mais de cinco ou seis. Olhando para trás, percebeu que elas continuavam lá no fundo, brilhando, como que sorrindo entre as pedras.Um saco seria bom – pensou, mas não o tinha. Começou a colocá-las nos bolsos, mas estavam furados. Mesmo assim continuou recolhendo-as, enchendo as mãos... e elas teimosamente voltando ao riacho. Apesar disso, subiu e desceu o riacho, recolhendo moedas e uma ou outra nota de baixo valor. Quando finalmente percebeu que havia algo errado com as moedas, concluiu que não eram muitas, mas só algumas - que sumiam de suas mãos e voltavam ao riacho... Decidiu deixar o riacho e seguir para a terra firme, embrenhar-se novamente na mata e sair da região conflituosa. Ao tentar deixar o leito do riacho, porém, foi surpreendido por uma repentina correnteza que o jogou de volta e o obrigou a agarrar-se nos galhos, para não ser arrastado pela água. Logo a corrente ficou mais forte e mesmo sendo raso, o riacho ficou tão revolto que não pôde mais segurar-se. Começava uma luta hercúlea contra as águas. Quando já estava quase desfalecendo, eis que surgiu uma corda boiando na água. Agarrou-se a ela. Depois de um embate colossal, subiu para a margem. Ofegante e exausto, contemplou o pequeno riacho – que já não estava mais revolto, mas continuava sereno e calmo. Confuso, refletia sobre tão inexplicável e repentina mudança, mas logo foi tirado das suas elucubrações pela voz de uma criança atrás de si. Virou-se: um menino de cerca de três anos ordenava que saísse, que deixasse o local.Não podia acreditar no que via: o menino era branco, tinha cabelos lisos e loiros, mas apesar do semblante angélico, acenava efusivamente, demonstrando hostilidade e, mais que isso, autoridade.Atônito, percebeu que o garoto não tinha dedos, mas só o equivalente a uma das três falanges, ligadas por uma membrana – o que dava um aspecto de nadadeira à mão.Sem que conseguisse argumentar, foi enxotado pelo menino, tendo que voltar ao riacho, já que era impossível caminhar pela mata cerrada nas margens.Andando pela água rasa, avistou novamente as moedas, mas não parou pra juntá-las. Apesar de não ter entendido uma sequer das palavras do garoto, intuíra que ele reprovava sua presença e desautorizava a posse daquele estranho tesouro... Apesar disso, as moedas pareciam agora mais tentadoras, em maior quantidade e mais brilhantes.Seguiu depressa, quase correndo, agora descendo o riacho. O clarão ficava mais intenso de vez em quando, mas ele não parava.Aos poucos o riacho ficava mais fundo, e a caminhada mais difícil... Logo chegou à cintura, obrigando-o a seguir mais devagar, precisou nadar. O riacho agora era um rio caudaloso; a água ficara escura, avermelhada.A tentativa de manter-se próximo da margem logo se mostrou inviável, pois a corrente o levava sempre mais para o centro do rio. A respiração se tornou difícil, ofegante. As forças se exaurindo, a apreensão se transformando em medo e este em pânico...Água, braços, pernas, respiração, pânico... Um turbilhão de sensações, desejos, medos e imagens lhe preencheram a mente....Três dias depois, ao levar o gado a beber, um peão encontrou um corpo putrefato encalhado num córrego da fazenda. Suas roupas eram trapos, mas o vaqueiro, com algum esforço pôde ler: Clínica “Reabilitando a Mente”.