Fabinho

__ Manda buuscaaa!!

Mas Fabinho não queria laçar. Ele só queria ver sua pipa deslizando no céu: pra lá... pra cá... pra lá... pra cá...

__ Vai, seu medroso! Não é homem, não?!?

O menino encrenqueiro, lá do outro lado da vila (lá do morrão), de cima de sua laje, não parava de berrar.

Fabinho, já cansado de ouvir desaforos, começou a enrolar a linha para trazer sua pipa a terra.

__ Iiihhhh... Mariquinhas desgraçado, vem laçar, vem!!... Vai, seu bunda-mole!!

“Ai, que saco! A gente não pode nem soltar a pipa da gente em paz, que já vem um bocó encher a paciência!!” – pensou, irritado.

E Fabinho, finalmente, acabou de trazer sua amiga para bem juntinho de si. Se bem que seu desejo fosse continuar ali, sentadinho, encostado à parede recém-levantada de seu futuro quarto, segurando firme a linha de sua pipa, sentindo sua força, seu peso. Virando o pássaro de seda de um lado a outro, bem devagar, bem de mansinho. Mas o moleque do outro lado torrou tanto a paciência que nem deu mais vontade de continuar.

O sol estava queimando a cabeça da gente e os telhados das casas também. De vez em quando parecia até que tudo estava girando.

__ Fabinho, entra pra dentro, menino!! Já-já o almoço tá pronto!... Você já fez a lição da escola?... Quando seu pai chegar, eu conto pra ele que você só quer ficar brincando!

É hoje!!

Por que gente grande enche o saco da gente? Olha a lição da escola! Vem comer, menino! Faz isso, faz aquilo, vem cá, vai lá...

Fabinho desceu e entrou. Foi para a sala, que era seu quarto no momento. Fechou a porta que dava para a cozinha. Em seguida, colocou um cobertor dependurado na parede, em frente ao vitrô, a fim de fazê-lo de cortina. Ligou a TV. Deitado em sua cama, que também era sofá quando havia visitas, olhava para o nada, que doidamente rodopiava pelo quarto improvisado e abafado.

O caderno, aberto e com o lápis caído sobre suas folhas, olhava para seu dono.

Lá fora, o moleque encrenqueiro acabava de perder sua pipa. Sua linha fora cortada pelo cerol de um menino mais chato do que ele ainda. Agora, perdida a pipa, ficava xingando, esbravejando e fazendo ameaças de todo o tipo. O menino-vencedor só dava risada e fazia sinal com a mão, para que o valentão o fosse enfrentar. Coisa de criança!

* * *

Sem saber exatamente por que, Fabinho sentiu um friozinho percorrer-lhe o corpo.

O caderno, agora fechado e estirado no chão, continuava olhando para seu dono.

__Fabinho, vem comer! O almoço já tá pronto, moleque!

O dia estava muito quente!

“É melhor apagar a luz. Assim a gente vê melhor.”

Fabinho arregalou fundo os olhos no breu. Estava muito gostoso olhar o escuro. Dava para ver tudo-tudo-tudinho. As pipas deslizando pra lá e pra cá! O ceuzão azul sobre o mundo inteiro!... “O mundo tem fim?...” O sol ardendo na cara da gente! O vento soprando forte e pesando na linha, empurrando a pipa lá pra bem lonjão daqui... Lá, bem no altão mesmo! Tão alto e tão longe que quase nem dava pra ver nada-de-nada da pipa; só um pontinho preto mexendo devagarinho no azulzão cortado de nuvens brancas e cinzas.

“Ai, que vontade de ficar no lugar daquela pipa!! Deve ser bonito olhar lá de cima. Como deve ser, hein?! Deve ser legal demais!! Será que dá pra ver tudo direitinho?” Fabinho queria ver sua mãe e sua casa lá bem do altão. Ele queria ser uma pipa pra fazer isso.

Lá da cozinha a mãe de Fabinho chamava pelo filho. O almoço já estava esfriando, e ele nada de comer! Ah, mas quando o pai chegasse... quando o pai chegasse...

O escuro havia absorvido os pensamentos, a audição, o tato e tudo o mais do menino. Só cabia imaginar-se no céu, deslizando pra lá e pra cá, feito uma pipa bem colorida, bem bonita. O vento cortando o espaço... E o sol, agora debruçado no horizonte-sem-fim, incansavelmente esparzindo seus feixes luminosos e alaranjados, calidamente lassos.

Fabinho fechou um pouco os olhos. Queria sentir o gosto da escuridão. Achou que era doce, e não quis mais abri-los.

Estava tão bom!

Mas eis que ouviu, de repente, inesperadamente, os berros do menino encrenqueiro. “Manda buuscaaa!!!” Foi então que abriu os olhos e deu de cara com aquele chato. Mas ele estava soltando pipa e olhando pra cima. Como estava escuro, Fabinho não via o menino... mas via! Ou melhor, sentia o ver... O menino empinava a pipa, colocando uma das mãos acima dos olhos para proteger-se de um sol que não mais havia. “Vai, medrooosoo!!”

__Fabiinhooo! O almoço já esfriou!

Um choro de bebê...

O sol, lá fora, já não mais ardia por sobre os telhados e as cabeças das pessoas, que caminhavam para todos os lados, num frenesi incolor, insípido, insano.

O ocaso mandava seus derradeiros brilhos para esse mundo, terna e mansamente, como a mãe que acaricia os cabelos do filho na hora de dormir, acalentando-o.

O bebê estava deitado ao lado de Fabinho. Era um menino. Agitava os bracinhos sem parar, tentando ganhar a atenção de si mesmo.

É!! O bebê era o próprio Fabinho!

__Manda buuscaaa!!...

* * *

O menino chato desapareceu. Mas sua voz não; ficou ali no quarto enchendo a paciência. E agora misturava-se ao choro incessante de Fabinho-bebê. Por que essas coisas acontecem com a gente? Aquele escuro estava tão gostoso, e tinha que aparecer dois intrusos só pra estragar? E o pior é que um deles era o próprio Eu de Fabinho.

Uma estrela brilhou no quarto, e a voz sumiu.

Será que o menino chato foi embora?

Lá fora, bem lá no altão do céu, a lua começou a surgir. Era lua-nova.

A escuridão no quarto era tão imensa que Fabinho podia ver tudo, até mesmo o que já não era. Depois, lentamente, começou a ver também o que ainda não era. Foi então que ele viu o futuro. Era bonito como um arrebol, todo dourado e reluzente! Seu hálito era doce e fresco, como um carinho de mãe. Suave como um afago nos cabelos...

Mãe!

“Mãe!”

__Mãe!

* * *

Dona Vanda abriu a porta do quarto. A luz estava acesa. Na cama, com uma das pernas caídas para o chão, Fabinho dormia eternamente. Sobre o peito, um porta-retratos com a foto de Fabinho aos dois meses de vida. Ao lado da estante, no chão, a última pipa jazia plácida e altiva sob a lata de linha. A televisão estava ligada, sintonizada em um programa de esportes. O caderno, muito triste e desconsolado, tentou dizer alguma coisa, mas a voz não saía.

A mãe ficou ali parada, olhando o corpo do filho... olhando... olhando...

__Fabinho...

Mas ele não respondia.

__Fabinho!...

Será que é verdade?

Ela queria andar, mas não conseguia. Parecia que não mandava mais em si mesma.

“Será que é um sonho?”

Um dia Fabinho sonhou que era um vaga-lume, e que ficava voando e piscando, voando e piscando, bem no meio da noite do mundo. E tudo era só escuridão. Se não fosse ele com sua luzinha, com seu brilho intermitente, o sol nunca mais acertaria o caminho do dia. É, sim! Porque o sol andava perdido por aí. Por aí, no sonho de Fabinho. Depois disso, nunca mais ele sonhou. Quer dizer, sonhar-sonhar, de estar dormindo e vendo um filme, não sonhou não. Mas sonhou de outro jeito – acordado! Ele adorava sonhar acordado. Tanto, que pensou que estivesse sonhando de novo, quando entrou no quarto pela última vez.

A mãe admirava o filho. “Como é bonito o meu Fabinho! Ele já está um mocinho!”

Engraçado, há tempos que ele estava um mocinho, e ela ainda não tinha reparado nisso.

Dona Vanda não se cansava de olhar.

__Parece até que ele tá dormindo...

Gentil Tadeu Gomes
Enviado por Gentil Tadeu Gomes em 25/04/2011
Reeditado em 25/04/2011
Código do texto: T2930211
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