A Ceia
__Tá bom, mãe!... Tá!... Ahn!... Ahn!... Sei... Não! Eu vou chegar a tempo, sim!... É claro que chego, mãe!... Uhn!... Olha, o máximo que vai acontecer é eu chegar um pouquinho atrasado, só isso! Mas eu chego!! Ouviu, mãe? A senhora não vai passar o Natal sem o seu filhão, não, tá? Eu também quero estar bem juntinho da senhora e do pai, viu? ... Tá bom!... Entendi... Entendi, sim, mãe!... Tá!... Outro beijo!
* * *
24 de dezembro.
* * *
__Sabe, meu velho, esse nosso filho é meio doido, mesmo! Você não acha?
__Ora, Matilde, a juventude é doida assim mesmo! Você não se lembra do nosso tempo, hein? Você também era bem doidinha!!
__Ah, mas era diferente! A nossa doidice era bem menos doida.
__É só uma prova de amor pra namorada.
__Mas justo hoje, véspera de Natal?
__Mas é por isso mesmo! Quer prova de amor maior que essa? Bem na véspera do Natal, ele sai de madrugada, viaja mais de duzentos quilômetros, passa o dia com a moça, leva um presentinho bem caprichado. Depois, à tardinha, pega a estrada de volta e tem que chegar a tempo de passar a noite de Natal junto com os pais. Que coisa mais romântica! Ahn? Ahn? Não é uma coisa maravilhosa, do outro mundo?
__É, você tem razão. Mas eu tô com medo!!
__Medo do quê?
__Não sei, ué! Eu tô com medo e pronto!... É medo de mãe!
__Ah, já sei! Só porque ele ligou avisando que poderia atrasar um pouco porque o carro deu um probleminha na estrada? Oh, Matilde, ele disse que já está tudo resolvido! Aliás, disse que era uma besteirinha de nada.
__Eu sei, eu sei! É que mãe é boba desse jeito que você tá cansado de saber.
__Não se preocupe, vai correr tudo bem!
__Mas... e se o carro quebrar de novo? E se ficar muito tarde, e ele ficar cansado? Ele acordou de madrugada, lembra?...
__Ah, Matilde, Matilde! O Rafael já é um homem feito! Pare de pensar bobagens. Se tiver mais algum problema, com certeza ele saberá resolver. Além do mais, ele ligará avisando. Agora fique calma, fique.
__Ah, meu velho, mas... Deixa pra lá! Acho que você tem razão. Vou parar de pensar besteiras.
Dona Matilde entretém-se com os afazeres.
Seu Pedro, para distraí-la, uma vez ou outra brinca com ela.
__Sabe, Matilde, você é a velhinha mais linda do mundo!
Ela sorri e, em seguida, alisa o rosto suave e doce do marido.
__Você é que é o velhinho mais charmoso que eu já conheci.
* * *
Na estrada, a chuva.
Um carro desliza veloz na escuridão. Mais parece um ser alado, galopando por uma pradaria de nuvens e água.
Trovões e relâmpagos entrecortam o céu, giram de um lado para o outro, numa dança insólita, apavorante e infinda.
Rafael pisa fundo no acelerador. Está profundamente irritado, pois sabe que, por mais que corra, que acelere e acelere, dificilmente chegará a tempo para a ceia de Natal. E isso nunca tinha acontecido antes. Também, o carro tinha que quebrar justamente hoje? É muito azar!! E sua mãe, que estava preparando tudo e esperando por ele!... Falou o ano inteiro dessa ceia! E planejou, e sonhou, e comprou tanta coisa! Ah!!... Seus irmãos, cunhados, cunhadas, sobrinhos! Só ele iria estragar a festa!... Droga!!
A chuva não para.
Um trovão parece explodir bem ao lado do carro. Ficou tudo claro!
“Que susto!!”
Rafael lembra-se, agora, de que prometera ligar para a namorada à meia-noite em ponto, para dar-lhe um “Feliz Natal!”. Olhou as horas. Onze e cinco! Pelo jeito, mais uma frustração.
Os faróis cortam a noite e a chuva.
A estrada parece interminável.
O pensamento é um emaranhado de rostos, de broncas, de lamentações.
Onze e meia.
Nada de Rafael chegar ou dar notícia. Dona Matilde está impaciente.
Do outro lado, numa cidadezinha interiorana, Juliana aguarda ansiosa pela ligação de Rafael. Olha o relógio a cada minuto.
A estrada.
Rafael sente os olhos pesados... queimando! Esforça-se para mantê-los abertos. Como pesam!! Mas ele tem que chegar! Sua mãe, coitada, seria capaz de morrer de preocupação se ele se atrasasse muito. E Juliana? A doce Juliana!...
Cinco para a meia-noite.
Na casa de Seu Pedro e Dona Matilde, está tudo preparado para a ceia de Natal. Enquanto todos conversam e contam piadas, a pobre mãe, parada em frente à janela, olha a noite e os poucos carros que ainda transitam pelas ruas nuas. Viaja por aquela imensidão de prédios e luzes.
Dá um sorriso amarelo...
Do outro lado, bem longe dali, Juliana, com os olhos brilhando, não sai de perto do telefone.
Os olhos de Rafael parecem perdidos em meio à escuridão. Por um instante teve a impressão de ver, pelo retrovisor interno, dois vultos no banco de trás. A cabeça longe, distante dali, lenta... confusa... divide-se outra vez. A mãe... a ceia de Natal... Juliana... o telefonema...
O ronco do motor acelera seus pensamentos, sua ansiedade. Daqui a pouco estará em casa. Atrasado, mas não importa. Contará alguma coisa para se justificar. Sua mãe, com toda a certeza, o perdoará. Ela sempre perdoou!
À medida que se aproxima da cidade, a chuva vai diminuindo.
“Falta pouco.”
O coração acelera mais que o motor. A ansiedade passou. Uma alegria maior que o mundo espelha-se num sorriso gostoso e verdadeiro no rosto pálido de Rafael.
Avista, finalmente, os primeiros elementos indicadores de urbanismo. Sua viagem interminável está chegando ao fim. Sente-se aliviado.
“Só mais um pouco!”
Carros, casas, postes, pessoas, edifícios passam pelo olhar do jovem filho preocupado com o atraso absurdo. Tinha garantido à mãe que estaria em casa para a ceia, e veja só a hora em que está chegando! Mas a mãe vai compreender.
O elevador para.
Rafael se dirige à porta do apartamento em que mora com os pais. Está muito feliz e apreensivo.
Toca a campainha.
Toca pela segunda vez.
Pela terceira.
Bate à porta.
Ninguém atende!?
Roda o trinco e empurra.
O apartamento está vazio. Não existe mais nada ali.
Vaga de um lado a outro tentando entender o que se passa. O que teria acontecido? Onde estariam todos? Por que o vazio?
Subitamente tem a impressão, uma vez mais, de que dois vultos estão atrás de si. Vira-se bruscamente e... nada! Não há nada nem ninguém.
Anda em círculos, buscando alguma explicação.
Vai até a janela e olha para fora. Não há mais prédios, nem ruas, nem cidade, nem pessoas. Um profundo e incomensurável sentimento de amargura inunda seu olhar, transportando-o à realidade. Fica ali parado, admirando um céu azul imenso, límpido, claro, suave. Não existe mais horizonte, tudo é um vasto universo de nada. As paredes do apartamento vão perdendo sua materialidade e, lentamente, numa metamorfose muito além dos limites da inteligência e compreensibilidade humanas, desaparecem, dando lugar a uma névoa espessa e branca.
Rafael fecha os olhos. Espera que tudo aquilo seja um mau sonho, um pesadelo. Conforta-o a idéia de que, ao reabri-los, enxergará um quarto de hotel de beira de estrada, onde passou a noite, afinal estava muito cansado e, certamente, deve ter parado para dormir. Pensa fazê-lo logo, mas tem medo. Seus olhos estão doendo, queimando outra vez, ardendo. Tem medo de que não seja só um mau sonho, de que não seja uma ilusão, uma fantasia. O que não quer é aceitar a verdade, a dura e concreta verdade. Aquela de que ninguém jamais escapou. Fecha os olhos à vida, que agora o maltrata e fere. Aliás, a vida não o maltrata nem o fere, apenas cumpre sua função, como sempre foi e sempre há de ser.
Rafael, por um instante, imagina-se eternamente daquele jeito, assim não sofrerá. Ou sofrerá mais ainda? Ele fecha os olhos à maior inexorabilidade imanente ao ser humano, buscando um campo de fuga, e ela nem se preocupa. Assim que reabri-los, ela sabe que tudo se resolverá, e a união de ambos será infinita. Fechar os olhos à vida não significa (e nunca significou) solucionar o mal que nos aflige. Só há um caminho a seguir, por mais que não se queira: é aceitar o que a natureza reservou a todo aquele que um dia se atreveu a nascer. Não somos nós que levamos a vida, mesmo que acreditemos nisso; é o contrário. E Rafael está agora, nesse exato momento, em seus braços, agarradinho a ela, embora pense que o fato de não estar enxergando nada o esteja pondo do lado de fora de uma situação interna a si. Não há como se evitar a realidade, sair dela. Não somos nós que a invadimos, e sim o inverso.
Cansado, senta-se sobre um chão que já não há e chora. Lembra-se de seus pais, de Juliana, dos amigos, dos parentes.
Tempos depois, abre os olhos, levanta-se, olha a brancura à sua volta e vai embora, caminhando sobre um mar de nuvens.
Tudo é vida!