A PROSTITUTA ENIGMÁTICA

A PROSTITUTA ENIGMÁTICA

Todos as tardes, ao final de mais um dia de trabalho, Julião iniciava a longa caminhada do Castelo até a Praça Tiradentes, onde encarava a tremenda fila do 355 – Tiradentes-Madureira. Pra variar, nunca havia ônibus no ponto. Resignado, ele entrava como sempre na “fila do sentado”, não só porque poderia aguardar o próximo carro, evitando viajar no último banco, mas também por não ter pressa para chegar em Vicente de Carvalho, onde morava. Na velha Praça Tiradentes, grupos de pessoas conversavam animadamente, ao mesmo tempo em que devoravam pipocas numa velocidade espantosa. A cada dois vagarosos passos, os sacos eram esvaziados, amassados e atirados ao chão, formando sobre o mosaico de pedras portuguesas e até cada terminal, um ziguezaguear de passarelas avermelhadas. Uns, mais concentrados, liam jornal ou faziam palavras cruzadas; outros, mais estressados, gritavam e discutiam no celular como se fossem os únicos na fila. Julião a tudo olhava indiferente e contemplativo, pois já vira aquele filme um caminhão de vezes.

Os ônibus chegavam a intervalos de vinte minutos e, em segundos, com as portas ainda parcialmente abertas, aspiravam o primeiro lote de passageiros que completaria sua lotação. Não raro, levavam uma meia dúzia em pé, afinal alguém poderia saltar na Central para pegar o trem. Os idosos e as grávidas ficavam sempre para o próximo carro, pois sabiam que já não podiam contar com a gentileza de ninguém para deixá-los sentar e ter que viajar horas pendurado numa argola e ensanduichado pelo não-mais-acabar de passageiros que embarcavam ao longo da Av. Brasil.

Quando Julião já estava sob o túnel metálico que demarca o terminal, com cerca de dez ou doze passageiros à sua frente, ele percebeu a olhá-lo uma linda e estonteante morena, que ao vê-lo paralisado, sorriu-lhe timidamente, deixando à amostra uma fileira de dentes alvos e alinhados, emoldurados por um par de lábios carnudos e atrevidos. Julião, visivelmente hipnotizado, enfiou no bolso da calça o que ainda restava do amendoim que comprara minutos antes e, bastante excitado, saiu disfarçadamente da fila a tempo de ver a fogosa mulher levantar-se, ajeitar a apertada calça jeans, descer até a calçada e olhá-lo mais uma vez, só que agora praticamente obrigando-o a segui-la. Sem pestanejar, completamente desnorteado, Julião atravessou imprudentemente a movimentada rua lateral, a tempo de ver a bela desconhecida parar na porta de um velho sobrado. Apressou-se o mais que podia e ao chegar em frente ao tradicional pardieiro, pode alcançá-la ainda nos primeiros degraus da imensa escadaria.

Subiram rapidamente e, sem papo, chegaram ofegantes à recepção, quando Julião surpreendeu-se ao ver a mulher debruçar-se no balcão, pegar a chave no quadro pendurado na parede e colocar embaixo do braço um rolo de papel higiênico. Foi aí que a ficha caiu. Era uma mulher da vida, uma piranha, que o atraíra para aquele pardieiro disfarçado de motel. Mas já era tarde e ele não podia perder outra viagem, pois já perdera uma quando saiu da fila do ônibus prestes a embarcar. Ela rapidamente abriu a porta do quarto e foi direto ao banheiro para preparar-se. Julião sentou-se à beira da cama, procurando refletir sobre o risco iminente de pegar uma gonorréia naquele matadouro. Levantou-se de repente e foi até um armário sem porta à procura de uma camisinha esquecida, mas só achou uma latinha de pomada japonesa, três grampos, dois cotonetes e um frasco de éter pela metade. Voltou a sentar-se e deu uma olhada para o lençol branco encardido, todo marcado de pontas de cigarro e pintas de sangue. Tirou o tênis, as meias e colocou-os no tapete junto à cama, o que liberou um forte odor que tornou insuportável a respiração naquele cubículo.

Após dez minutos de suspense, a mulher abre a porta do banheiro e com uma toalha toda esfarrapada em volta da cintura, liga o som no maior volume e começa a pular e a grunhir desesperadamente, numa dança frenética diante do velho e embaçado espelho. Julião, que já afrouxara o cinto e se preparava para ficar de cueca, levanta-se segurando a calça e, sem que ela perceba, puxa a tomada da parede e volta num salto para a cama. Estarrecido e momentaneamente apoplético, ele então observa que a mulher continua grunhir e a se requebrar mesmo com o som desligado, não deixando dúvidas de que era uma deficiente auditiva e, consequentemente, muda, não obstante fosse linda e sensual. Evidentemente que ela sabia que ao ligar o som, qualquer que fosse a estação sintonizada, a música se faria ouvir, menos para ela. A cena surreal deixou Julião constrangido e obviamente desmotivado para qualquer aventura sexual. Até quando aquela criatura iria conseguir camuflar a sua mazela, sem sequer imaginar que o seu tumular silêncio talvez tornasse a relação muito mais interessante?

Ao ver Julião recompo-se e tentar calçar o tênis, a pobre mulher, inconformada com a iminente perda do freguês, começou a gesticular desordenadamente, agarrando-se a sua calça e puxando-a para baixo com uma força descomunal, quase derrubando-o. Foi com imenso sacrifício que ele conseguiu segurá-la com um braço e, com o outro livre, retirou do bolso uma nota de cinquenta toda amassada e atirou-a na cama. Em segundos ela pegou o dinheiro, enfiou no sutiã preto e correu para abrir a porta. Julião saiu logo atrás, desceu a carcomida e barulhenta escada e, pulando os degraus de quatro em quatro, ganhou a rua e a liberdade. Envergonhado e ofegante, respirou fundo, passou as mãos no cabelo, consultou o relógio, olhou comprido para o fim da fila que serpenteava a praça, passou pela frente do ônibus e, cabisbaixo, entrou na fila do “em pé”.

Murillo da Villa
Enviado por Murillo da Villa em 07/04/2011
Reeditado em 15/04/2011
Código do texto: T2895130