A morte de Irmã Ana ...

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_ Irmã, irmã, traga-me a bacia, por caridade, vou vomitar!

Balbuciava a freira de seus quarenta anos, muito doente e prostrada em seu leito de dores, no pavilhão mal iluminado do convento, a guisa de enfermaria. Trajando apenas um camisolão cinza e um pequeno véu à cabeça, ela via que era chegado o momento de sua morte. Ouviu o sino tocar e acercar-se de sua cama as outras freiras da comunidade.

A uma ordem da madre as irmãs foram acendendo suas velas e começaram as preces, tendo a maioria delas se ajoelhado. Rezavam baixo, e a enferma não distinguia muita coisa do que era balbuciado, estava zonza, como se fosse perder de vez os sentidos, e pedia a Deus que terminasse logo sua agonia, pois em sua mente passavam, como em um filme, flashes de sua vida. Revia o dia de sua tomada de hábito, quando se fizera noviça, assim como partes de sua infância, quando alegremente brincava no balanço da goiabeira no sítio de seus pais, sentindo o vento soprando em seus cabelos e observando a mãe amamentando a irmã mais nova. Quanta confusão mental, em lampejos muito nítidos relembrava as noites em que se sentira sozinha em sua cela claustral, se perguntando se fizera mesmo a escolha certa. Reviu cenas de humilhações e decepções que sofrera dentro do convento e que muito a decepcionaram.

Veio mais um acesso furioso de falta de ar, seria o último? Sufocava e sentia o suor gélido orvalhar-lhe a face e ensopar-lhe as vestes. Preparava-se para perder os sentidos de vez, mas novamente ouvia as preces de suas irmãs de hábito e percebia que algumas a olhavam com extrema piedade, como que a compadecer-se dos terríveis estertores que de seu peito emanavam. O filme de sua vida tornava-se mais denso e ao mesmo tempo mais confuso: Sentia uma saudade imensa quando por sua mente tornava a percorrer os cômodos do lar em que tivera a ventura de viver na infância e vislumbrava cada detalhe dos móveis, mormente a máquina de costura de sua mãe e a cadeira de balançar de seu pai. Sentia o cheiro do açude invadindo a sala do casarão e podia até mesmo ouvir a sinfonia de pássaros cantando a alvorada festiva de cada manhã. Sentou-se à mesa e tomou um gole do saboroso, forte e delicioso café que apenas sua mãe sabia coar, e fitou as brasas do fogão a crepitarem, encimadas pelas panelas de barro que já se punham em andamento para o almoço da numerosa família e dos muitos trabalhadores.

Mas a tosse não a deixava em paz e entre um acesso e outro ficava cada vez mais sem ar, até que a madre trouxe a bacia para junto de si, e reclinou-lhe a cabeça a fim de que vomitasse. Ela sempre tivera horror ao ato de vomitar, pois que lhe dava ainda mais falta de ar e debateu-se, pondo-se mesmo a estrebuchar, na certeza de que tudo acabara. Sua mente, fertilíssima, mandava-lhe mensagens de indagações profunda e irrepreensivelmente difíceis e angustiosas:

_ Irei para o céu? Acho que não, pois me lembro de que uma vez perdi a paciência com uma irmã velhinha que agonizava, na verdade desejei que ela morresse logo, não por querer ver findar o sofrimento da coitada, mas por estar enfadada de ficar postada ao seu leito, ouvindo-lhe os gemidos e os lamentos. Meu Deus, agora sei o quanto fui cruel.

Uma irmã trouxe-lhe o crucifixo a fim de que o beijasse, mas ela sentiu novo e ainda mais desesperador ataque de falta de ar e não teve força para fazer o piedoso ato e seus olhos cerraram, muito a contragosto seu. Sentiu uma mão pousando-lhe sobre a fronte e a voz de uma irmã dizer baixinho:

_ Deve ter entrado na agonia final, está a arder em febre e revira os olhos, não tardará em expirar, corram a chamar o padre antes que seja tarde, pois que já se aproxima o desfecho de tão angustioso calvário. Vai Irmã Venera, correi à casa paroquial e trazei o padre, anda!

Não havia dúvidas de que iria morrer, mas sua mente não lhe dava sossego e a transportava à casa paterna à época de sua mocidade. Sentia uma enorme tristeza por

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ver o lar vazio com a falta da mãe, viu-se de luto a choramingar pelos cantos da parede e o pai a balançar-se melancolicamente em sua cadeira, baforando um charuto como se o mesmo fosse o consolo de uma viuvez nefasta e inesperada. Para ela nada mais tinha brilho naquela casa, a saudade da mãe lhe dilacerava o coração, quando, de súbito, surge a figura de Nana, a negra velha que lhe servira de babá, assim como a todos os seus irmãos. Sentiu o abraço daquela figura tão cara para si e o cheiro de sabão que emanava de sua roupa simples, dada aos afazeres domésticos. Nana era um conforto naquele momento, alisava-lhe os cabelos e dizia:

_ Não chore não fia, sua mãe foi pra junto de Nosso Sinhô, você tem um moço tão bom, que lhe ama, reaja, em pouco tempo você vai ter sua casa, seu marido, seus fí e conseguirá tocar a vida.

Nana era uma consolação e àquela época foi a maior riqueza que encontrou, pois o pobre pai não podia externar nem os próprios sentimentos, uma vez que homem não chorava. Viu a irmã mais nova, que já estava uma mocinha e tentava agradar o pai, levando-lhe uma xícara de café. Sentiu falta do irmão mais velho, que já tinha se casado e morava na cidade. Como podia ser ele tão indiferente a tanta dor, uma vez que sua mãe o amava desmedidamente?

Não parava de ouvir os cochichos das irmãs, uma vez que as preces haviam cessado. Pensou até que tivesse morrido, mas ouviu quando irmã Serafina disse à madre:

_ Como sofre a pobre irmã Maria Ana, já está inconsciente, veja madre, ela não responde aos nossos estímulos.

_ Vamos rezar por ela, irmã Serafina, e pedir a Nosso Senhor que o padre Mauro chegue a tempo de dar-lhe, pelo menos, uma bênção.

Notou então que não tinha morrido, pelejou para abrir os olhos, mas não conseguia e a quentura da febre agora lhe fazia tilintar de frio, conseguiu a muito esforço pronunciar a palavra “lençol” e a irmã Serafina foi correndo e trouxe-lhe outro cobertor a fim de lhe amenizar o sofrimento causado pelo frio proveniente da febre.

O turbilhão de perguntas e questionamentos não a deixava em paz e por mais que rogasse a Deus que lhe permitisse morrer sossegada, chegavam-lhe novas indagações:

_ Será que pequei em ter permanecido no convento, mesmo não concordando com algumas coisas?

E vieram-lha à mente, como labaredas de perturbação, as ocasiões nas quais foi indolente com a oração pessoal, ou fria com a recitação do ofício divino. Chegou mesmo a estremecer por lembrar que muitas vezes passou-lhe pela mente que Jesus não estaria presente na Hóstia consagrada. Não foram poucas às vezes em que achou desnecessário ter que ajoelhar-se aos pés de um padre e confessar-se: Não seria Nosso Senhor Jesus Cristo o Eterno Sacerdote? Por que ela teria que se submeter a atos com os quais não concordava? Se bem que nunca dissera tais disparates a ninguém, e aos olhos das outras religiosas ela era apenas um pouco mal humorada, porém muito piedosa. Na verdade, irmã Ana era afeita á poesias, e mesmo em suas elucubrações mentais, no leito de morte, pareceu-lhe que, no seu caso, a palavra piedosa rimaria melhor com mentirosa.

Irmã Ana não concordava com as bajulações que se faziam aos altos representantes da hierarquia clerical, chegando mesmo a ter aversão por tanta pompa usada nas ocasiões em que o Bispo visitava-lhes o convento: A começar pelos trajes, ela censurava internamente o imenso anel de ouro que o mesmo ostentava, assim como a cruz peitoral cravejada de diamantes e a luxuosa batina preta com frisos e faixa encarnada na cintura, de onde desciam franjas muito alinhadas. E a capa? De um cetim muito belo e vermelho, que esvoaçava ao vento, quando cavalgava pela cidade. Mas ela nunca foi

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atrevida nem tão pouco tratou mal algum representante de Nosso Senhor, oferecia estes pensamentos pela purificação das almas do purgatório e assim ia vivendo.

Sentiu que lhe retiravam o anel do dedo e isso a perturbou sobremaneira, pois aquele anel lhe tinha sido feito com o ouro da aliança de casamento de sua mãe, e ela o recebera no dia de seus votos. Não iriam nem esperar que morresse e já a estavam tirando o único “bem” ao qual era tão apegada? O ouro pouco importava para Irmã Ana, o valor era puramente sentimental, foi quando tal pensamento lhe invadiu o ser que, ouviu uma voz celestial a dizer-lhe:

_ Quando ao mundo chegaste nada trazias, ao partir dele só levarás contigo o que tiveres feito de bom, Ana!

Mas era demais, tirarem-lhe seu querido anel, símbolo de sua doação, da pobreza que abraçara, da castidade que tomara como companheira. Passou então a pensar com o que já poderiam ter feito dos outros poucos objetos de uso pessoal que possuía, mas os hábitos negros que guardava em seu pequeno armário eram agora alvo de suas preocupações. Irmã Ana adorava seus hábitos, sentia-se linda com eles, na verdade a simplicidade dos mesmos era para ela um ponto de vaidade e orgulho velados. Quem sabe até um pouco de soberba os envolveria? Soberba? Sim, pois que ela se achava superior aos vaidosos, uma vez que não precisava se preocupar com a vaidade e, de quebra, sabia no íntimo de seu ser que o hábito inspirava respeito ás pessoas para consigo mesma. Quantas vezes alguém lhe cedeu o lugar no trem, quantas crianças não lhe tomavam a bênção, mesmo sem nunca tê-la visto, quantas jovens ao vê-la passar na rua julgaram-na uma santa, por ser tão jovial e andar tão calmamente com aquele belo hábito negro...

Agora outra voz a inquiria, desta vez em tom ameaçador :

_ Quem é você Ana? Ainda tem coragem de pensar mal do anel, da cruz e da roupa do bispo?

Ela ficara envergonhada, agora que se via sentada às margens de um grande penhasco, sobre as pedras da praia, ouvindo o barulho do vento e sentindo a brisa mansa do mar a esvoaçar seu véu. Como lhe eram agradáveis á alma o cheiro do mar e a brisa fria que soprava da praia. Oh, não, não pode ser, ela se dera conta de que seu suor estava gélido, como poderia ser aquilo? Por certo estava mesmo para morrer e toda esta agonia iria ser debelada de uma vez por todas. Sentia o peso dos cobertores sobre seu corpo e tentou, em vão, abrir os olhos. Contudo, ouvia novamente o burburinho de vozes, eram as freiras a entrarem e saírem da enfermaria. Havia muita agitação e ela orou a Deus para que pudesse uma vez derradeira, abrir os olhos e contemplar o que se passava em sua volta. Com muito esforço e como por milagre conseguiu levantar suas pesadas pálpebras, quanta força estava despendendo para um ato que, antes, considerava simples e sem importância. Ela vislumbrou a figura de um padre, paramentado de sobrepeliz branca e estola roxa, segurando um livro de orações, mas não conseguiu discernir seus traços fisionômicos, a vista estava embaçada e talvez jamais voltasse a ver como antes. Louvou a Deus pelas vezes que conseguiu enxergar e pediu perdão por pouco ter agradecido tão grande dádiva, quis falar, mas a voz não saía, e tornou a agradecer a Deus por ter podido falar pela vida toda. Enfim, agora que se via privada de quase tudo, agradecia a Deus por lhe ter concedido tantas dádivas maravilhosas, ás quais ela nunca dera tanta importância quanto agora, que já não falava, não andava, não se mexia e pouquíssimo conseguia ver.

O padre começara as preces dos agonizantes, ela sabia de cor estas orações e começou a acompanhá-las mentalmente, dando-se conta de que a agonizante era ela própria, o que lhe deu certo pavor, pois incontáveis vezes rezou estas mesmas orações,

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mas pelos outros que agonizavam, só agora sabia o que era estar à beira da morte. Esforçava-se para ver o rosto do padre, mas o quarto estava meio escuro, entretanto as irmãs começaram a acender as suas velas e o ambiente ficou mais claro. Irmã Ana fez um novo esforço e vislumbrou nitidamente a face do sacerdote: Era Padre Antonio! Sim, como poderia a vida pregar-lhe tamanha peça? Por que não trouxeram o Padre Mauro, seu confessor e orientador espiritual? Padre Antonio? Não, só pode ser castigo... Pensava irmã Ana, debatendo-se em sua agonia. As freiras notaram que ela se perturbava e a Madre se viu em vexação por não saber o que fazer. Sim, Irmã Ana queria falar, certamente bradar que fossem buscar o padre Mauro para prestar-lhe os últimos auspícios da religião. Irmã Madalena, mais íntima da enferma, ainda intuiu algo e cochichou aos ouvidos da superiora:

_ Reverenda madre Maria Trindade, ouvi-me, por quem sois, a irmã Ana está insatisfeita, pois que gostaria de estar sendo atendida pelo Padre Mauro, seu confessor e orientador particular!

_Que dizeis irmã Madalena? Ela mal pode falar!

_ Mas eu sei que é isto reverenda madre, a irmã Ana é muito afeiçoada ao venerando sacerdote, ela sempre me confidenciava isso, além do mais, desculpe-me revelá-lo agora, mas ela nunca se sentiu à vontade com sacerdotes jovens.

_ Mas a irmã Serafina disse-me que Padre Mauro também está de cama, ardendo em febre, de sorte que só o padre Antonio pode vir. Não nos resta nada a fazer, melhor que ela morrer sem os auspícios dos sacramentos da Santa igreja. Calemo-nos, irmã Madalena, e continuemos a rezar!

Por alguma força sobrenatural, irmã Ana conseguiu ouvir todo o cochicho de sua grande amiga irmã Madalena com a Madre Trindade, mas a sua grande aversão não era aos padres jovens, e sim ao Padre Antonio, em especial. Por que tanta relutância em aceitar os sacramentos das mãos daquele jovem religioso, mormente na hora da própria morte? Havia apenas dois anos que padre Antonio se ordenara e fora transferido para a paróquia próxima ao convento, mas desde a primeira vez em que o viu irmã Ana não sentiu-se bem. Houve uma ocasião na qual fora obrigada a confessar-se com ele, pois era quinta-feira santa e não havia outro padre disponível. Por obediência, ela foi ao confessionário, mas passou mal no meio da confissão e precisou ser socorrida às pressas pelas outras freiras. Fora levada à enfermaria, sua pressão havia baixado muito, e ela estava quase desmaiada, melhorou depois e alegou ter sentido vertigem por causa do calor da capela, de modo que a ninguém deixou suspeita alguma dos verdadeiros motivos de seu mal estar.

Ocorre que Padre Antonio era uma espécie de sósia de Joaquim, o rapaz que tivera sido seu noivo havia mais de vinte anos. Sim, irmã Ana fora noiva e vivera um grande amor, um sentimento puro e forte, algo divino, casto e arrebatador ao mesmo tempo. Joaquim tornara-se objeto de todas as suas afeições, sobretudo após a morte de sua mãe, quando anelava casar-se e constituir sua própria família. Ela não podia esperar nem querer mais de um noivo do que podia encontrar na pessoa de Joaquim: Rapaz temente a Deus, de boa família, trabalhador, sem vícios, bom filho, bom irmão, bom amigo, querido por todos. Apesar de jovem já tinha sua pequena fazenda com plantações, cabeças de gado e peões que lhe ajudavam na lida. A casinha já estava construída, era branquinha, telhas novas, ficava em um alto, ladeada por dois floridos pés de ipê amarelo, que enchiam os olhos de Ana de encantamento.

Tudo corria como mandam as convenções e Ana manteve-se no seu propósito de casar-se pura, honrando a virgindade que prometera à Virgem Maria. Nada havia que contrariasse os seus belos planos de amor, pois se Deus havia levado sua mãe querida,

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depois lhe presenteara com um noivo maravilhoso e que iria dar-lhe uma família feliz e boas condições de vida, tanto materiais quanto emocionais.

Irmã Ana desfaleceu de vez, deu um grande ronco, mexeu-se com rapidez e inclinou a cabeça para o lado esquerdo. O padre passou a aspergi-la e toda a comunidade intensificou as orações da ladainha dos agonizantes, pois parecia ter chegado o fim de seu calvário. Agora Ana estava mergulhada em uma realidade tão palpável e nítida que nunca se julgara tão viva antes. Viu-se sentada em frente à casa que seria sua, quando casasse, sua imagem se refletia nas límpidas águas do riacho que corria naquela bela e encantadora propriedade. Ela se inclinou um pouco para ver-se no espelho natural da água corrente, mas espantou-se, pois o que estava refletido não era seu rosto de jovem, mas a face enrugada e emagrecida da freira que arquejava na enfermaria do claustro. Ficou espantada, fazia tempo que não se olhava no espelho, pois os mesmos eram proibidos nos conventos, a fim de não despertarem a vaidade. Como estava velha, apesar de ter pouco mais de quarenta anos, sua pele era opaca, seu rosto carregado de rugas que se desenhavam em sulcos muito profundos davam-lhe uma fealdade que não julgava ser capaz de possuir um dia. Mas onde ela estaria? O que estava ocorrendo? Se a tinham levado à fazenda da época de seu noivado, porque então ela não aparecia jovem e bela como o fora nesta época?

Na verdade aquela dimensão era diferente e Ana estava ali apenas como mera expectadora de um passado que ela mesma construiu. Viu Joaquim chegar esbaforido em seu cavalo e descer depressa do mesmo indo para a casa aos brados:

_ Ana, Ana, não faça isso Ana, acredite em mim, aquela mulher é leviana, ela só quer destruir nossa felicidade, pelo amor de Deus, o que você está fazendo?

Agora ela se via jovem, mas cheia de mágoas e iras, a arrebatar alguns pertences da casa e levá-los para uma carroça puxada por cavalos, surda aos apelos de Joaquim, que ia e vinha atrás de si tentando fazer-se ouvir. Mas nada a demovia de seu intento, continuava a retirar algumas roupas, peças de louça e uma cortina de renda branca, que sua própria mãe fizera para enfeitar sua casa, no dia em que fosse desposada por Joaquim.

O desespero de Joaquim a fazia chorar agora, mas não a comoveu em nada naquela época, selando um destino infeliz para ambos, por falta de humildade, pelo orgulho ferido que não a permitiu parar para ouvi-lo. Tudo teria sido tão diferente, mas não havia mais nada a ser feito, ela mesma se via voltar-se para Joaquim, com o dedo em riste a vociferar:

_ Você se envolveu com sua própria prima, justamente com ela que se dizia nossa amiga. Agora ela diz estar grávida de você, o escândalo já está feito, todo mundo sabe, seu tio já jurou matá-lo, e tudo isto a dois dias do nosso casamento. Não Joaquim, comigo é que você não haverá de casar-se, vá atrás de sua prima Marta e case-se com ela.

_Ana, por Deus, me ouça...

_ Ouvir o que? Respeite-me, acaso quer me contar detalhes da falta de vergonha de vocês?

O rosto de Joaquim apareceu como que em uma tela gigante, e a velha e sofrida Ana pode vislumbrar-lhe a angústia, as lágrimas a cair-lhe em profusão e até os pensamentos dele estavam amplificados, como que em alto-falantes a berrar:

_ Ana, é você que eu amo, porque está fazendo isso e indo embora pra sempre de minha vida? É tudo mentira da Marta, e eu tenho como lhe provar. E agora meu Deus? O que será da minha vida sem a mulher que amo e tendo que me casar com outra, a quem desprezo?

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Pesadas lágrimas rolaram, também, do envelhecido rosto de irmã Ana, que via a carroça que a conduzia quando jovem sumindo por entre nuvens de poeira no cenário melancólico do entardecer sertanejo. Quanta tristeza, mas o tempo havia passado e aquela cena, á época, lhe tinha se configurado com outros matizes: Raiva, orgulho ferido, ilusão diante de mentiras. Sentada no mesmo local viu a vida de Joaquim ir se acabando aos poucos. Casou-se com a maléfica prima, mas desventurou-se em uma relação infeliz e hostil, pois a mesma não estava grávida de verdade, tanto que só engravidou após casar-se e quando contava com sete meses, tomou ervas maléficas e provocou um aborto, a fim de sustentar a mentira maldita que acabara com a felicidade de Joaquim, Ana e com a sua própria, pois o marido não se convenceu do embuste e teve ânsias de esganá-la viva, pois além de tudo a pobre criança falecera com o criminoso ato e os poucos recursos da medicina da época. No sinistro cinema, irmã Ana via Joaquim tornar-se alcoólatra paulatinamente e desdizer a própria vida, não ligando mais para a lida da fazenda e desprezando a própria esposa, em cujo corpo jamais voltou a tocar. Em poucos anos a fazenda estava reduzida a um cenário de horror e os pais de Joaquim intervieram, sobretudo sua pobre mãe que se desvelava em cuidados mil á cabeceira de sua cama, pois que jazia doente.

Marta não agüentou a rejeição do marido e pôs-se a traí-lo com um dos peões da fazenda, sendo descoberta pelo sogro, que era ao mesmo tempo seu tio. No ato de flagrante, o velho puxou-lhe pelos cabelos, amarrou-a em cima de um cavalo, montou outro e foi puxando-a até a fazenda do irmão, acompanhado de duas testemunhas. Chegando ao destino, entregou-a ao pai, narrando-lhe o acontecido, o velho ficou morto de vergonha e deu-lhe uma surra tremenda, entre impropérios indecorosos, chamando-a, sobretudo de quenga, com o forte sotaque sertanejo.

Era muito angustiante para Ana assistir a tudo isto e não poder interagir nem ter a capacidade de voltar no tempo e mudar sua atitude. Viu em seguida Joaquim reduzido a um monte de ossos, sem conseguir libertar-se do vício da bebida. As imagens mudaram e ela se via jovem, recebendo o véu de noviça da ordem em que conseguira ser aceita como postulante pouco tempo antes, não sem receio da madre superiora, que ao saber de sua história ponderou muito em aceitá-la, mas acabou aquiescendo, sob as fortes intercessões do pároco da cidade em que Ana vivia.

Ana chorava ante estas visões, pois descobriu que várias cartas lhe foram remetidas contando toda a desventura de Joaquim, ele mesmo havia lhe escrito, assim como diversos parentes e amigos, pedindo-lhe que retornasse e perdoasse seu ex-noivo que havia sido vítima de uma ardilosa armação. Mas a madre Superiora dispunha de liberdade para ler todas as correspondências que chegavam para as irmãs, era este o costume em voga à época, de forma que Ana vislumbrava a Madre lendo e queimando uma por uma, todas as missivas que chegavam ao convento, endereçadas para si e com algum conteúdo relativo a Joaquim. Ana não podia nem ao menos queixar-se da madre, pois ela mesma um dia lhe pedira:

_ Reverenda madre, agradeço-lhe a confiança em mim depositada para aqui viver e tornar-me religiosa, mas peço-vos que, se algum dia chegar qualquer carta tratando de algum assunto referente a Joaquim, que a senhora as queime e nunca me revele o conteúdo das mesmas.

Como lhe era custoso ver que tudo poderia ter sido diferente, sentia-se egoísta e digna das piores penas eternas, pois enquanto se refugiava em uma vida absorta pelo conforto espiritual, o homem a quem nunca deixou de amar se acabava sem a chance de ao menos ser ouvido e escutar um simples perdão da boca daquela que tanto amava.

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Os pavores de Ana eram imensuráveis, se ela já tivesse morrido seria então seu inferno pessoal que a submergia inexoravelmente. Como espectadora de todo este drama, ainda viu em cenas chocantes e tenebrosas, Marta prostituindo-se nos mais depravados e miseráveis cabarés que existiam pelos sertões, apanhando de homens desconhecidos e, por fim, ateando fogo ao próprio corpo e morrendo, sendo sua alma carregada por entre gargalhadas sinistras e estridentes de seres nebulosamente escuros. Era muito sofrimento para um único ser, Ana não mais suportava ver todo aquele cenário de dor, e em momento algum se vangloriou com a desdita daquela que fora o pivô de sua infelicidade. Por fim viu cenas desconexas e cenários rodopiantes, como a simbolizar a passagem de alguns anos. Vislumbrou o dia de seus votos perpétuos, quando entrava imponente pela nave central da catedral e recebia o anel sagrado, tornando-se religiosa de uma vez por todas. Concomitantemente, visualizou Joaquim dar seu último suspiro, em um sanatório, esquálido e irreconhecível, em meio a estranhos, desamparado pelos irmãos e sobrinhos, esquecido por todos desde a morte dos pais. Ele também procurou sumir de sua terra natal, vagou por cidades desconhecidas, procurou por Ana em vários conventos, sempre sem sucesso, entregando-se cada vez mais ao álcool, o que abreviou sua vida corpórea.

Havia ainda o que Ana ver? Será que a vida ainda tinha o que lhe cobrar? O que mais poderia ela estar devendo ao Criador? Do que mais iria ser acusada? Estaria terminada sua tortura pessoal?

Sentiu apenas que a erguiam de seu leito, sendo ladeada pela madre Trindade e por irmã Madalena. Elevaram seu rosto até ás mãos do padre Antonio, donde pendia um rústico crucifixo que a fizeram oscular, mas ela não via o rosto de padre Antonio e sim o de Joaquim. Sentiu todo o seu corpo estremecer, mas desta vez suavemente, e pensou estar voltando a respirar. Suas mãos eram fortemente enlaçadas e ela sentiu-se feliz. Foi erguendo-se do leito, conduzida por Joaquim, e começou a retirar-se daquele ambiente mórbido. Julgava estar melhorando apenas fisicamente, pois que sua mente a levava a delirar e continuar a ver Joaquim nas feições de padre Antonio. Sentia-se tão debilitada para erguer-se da cama, mas foi amparada pelo lado esquerdo por mãos de uma suavidade que jamais conhecera: Era sua mãe que estava ali, a sorrir-lhe e fitar-lhe profundamente com seus olhos castanhos. Por fim Nana surgiu à sua frente e pediu-lhe, com seu sotaque matuto:

_ Vamo fia, abasta de tanto sufrimeto...

Por: Thomas Heidegger Saldanha

Natal, 08 de novembro de 2010.

Thomas Saldanha
Enviado por Thomas Saldanha em 27/03/2011
Código do texto: T2873540
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