TOMANDO VINHO COM NEFTALÍ

TOMANDO VINHO COM NEFTALÍ

Era um domingo de inverno. Os termômetros apontavam cinco graus abaixo de zero, ainda assim, sua esposa lhe propôs que fossem visitar uma casa na praia. Parecera ser uma ideia um tanto quanto audaz: aquele era um frio agradável para seguir no salão do Hotel, ao lado daquela lareira e tomando um café bem quente. Mas Rafael aceitou realizar aquele passeio para que as crianças pudessem se distrair um pouco.

Estacionaram o carro em frente ao casarão. Já pela imponência da fachada percebia-se que aquela era uma residência muito diferente, própria de pessoas com um gosto refinado, exótico e exuberante.

Não são todas as pessoas que têm o privilegio de morarem num casarão rústico, todo trabalhado em madeira, em plena colina, com uma vista frente ao Mar Pacífico cujo quintal nada mais é que o próprio despenhadeiro com acesso a praia. Uma vista espetacular, pois os rochedos daquelas praias chilenas eram um verdadeiro convite a apreciar aquela natureza, mais viva do que morta.

Sua esposa e seus filhos imediatamente começaram a percorrer as habitações daquela imensa casa. Tudo parecia ser mágico, nostálgico, como se aquele lugar fosse um recanto de segredos e mistérios. Estavam curiosos porque todos comentavam que seu dono era um colecionar fanático por conchas, caracóis, estátuas (máscaras) de proas de barcos e lindíssimas garrafas de vidros com formas de corpos femininos. Todos os países aos quais ele visitava, incluindo as praias nordestinas do Brasil, sempre trazia algum suvenir que expressasse um sentimento de amor ao mar. Sentimento que era seu também.

Rafael comentou com sua esposa que encontrava extremamente de má educação invadir a residência de uma pessoa antes de ir cumprimentá-la. Perguntou a uma senhora onde estavam os donos da casa e ela lhe disse que estavam lá na parte de fora do quintal.

De longe, Rafael já avistou que o senhor Neftalí estava sentado num grande rochedo, esfregando-se ligeiramente as mãos para amenizar o frio ao mesmo tempo em que degustava um charuto cubano. Era um senhor de 69 anos, um tipo grande, forte e robusto. Sempre escondia sua calvície com boinas, mas naquela manhã, era mesmo necessário abrigar-se um pouco mais dada aquela geladíssima brisa costeira. Acompanhado de uma boa garrafa de um Carbenet Sauvignon, Neftalí seguia com seu olhar em direção àquele mar bravo e tormentoso de inverno. Era seu costume diário ficar admirando a imensidão daquele mar Pacífico, nada pacífico. “Estoy mirando, oyendo, con la mitad del alma en el mar y la mitad del alma en la tierra, y con las dos mitades del alma miro el mundo”.

Sua esposa, a senhora Matilde, estava mais adiante, trabalhando no jardim e plantando algumas flores. Neftalí sempre lhe dizia: "Podrán cortar todas las flores, pero no podrán detener la primavera."

Rafael aproximou-se e Neftalí lhe deu um sorriso. Convidou-o imediatamente que se sentasse ao seu lado, para que compartilhassem uma boa prosa e uma boa taça de vinho chileno.

A personalidade excêntrica do senhor Neftalí podia ser contemplada na arquitetura de sua residência, casa que lhe foi vendida em 1939. Aquele casarão parecera ser um grande barco olhando diretamente ao mar. O quarto principal do casal, com uma decoração completamente marina, assemelhava-se a proa deste barco. Com Matilde, eles tinham o privilégio de amar-se enquanto podiam apreciar aquela belíssima vista ao mar dada as grandes janelas dessa habitação. Quarto este, que guardava os mistérios desse amor, dessa vida, de suas paixões e de suas desilusões.

Rafael sabia que o senhor Neftalí compreendia muito bem o idioma português, mas ele sempre preferia conversar em seu idioma pátrio, o espanhol.

- Comentaram comigo que essa casa foi planejada como se fosse um grande brinquedo. Por que você quis que fosse assim, Neftalí?

-“En mi casa he reunido juguetes pequeños y grandes, sin los cuales no podría vivir. El niño que no juega no es niño, pero el hombre que no juega perdió para siempre al niño que vivía en él y que le hará mucha falta”.

-Que você espera do futuro, Neftalí?

-“Si nada nos salva de la muerte, al menos que el amor nos salve de la vida”.

-Não tem jeito mesmo, me disseram que você tinha algo de louco...

- “Hay un cierto placer en la locura, que solo el loco conoce”.

-Por que você escolheu esse lugar como um refugio a seus pensamentos?

-“El mar me pareció mas limpio que la tierra por eso me vine a vivir en la costa de mi patria entre las grandes espumas de Isla Negra”.

Para Rafael estar sentado naquela imensa rocha, observando a maresia, sentindo aquele cheiro de peixe e mar, aquele vento frio, saboreando um vinho feito com a mescla de selecionadas cepas de uva, de cor vermelho intenso, com um leve toque de mel e baunilha, sagradamente armanezado nos barris de roble, dava-lhe a sensação de sentir e viver o mesmo tempo de Neftalí, um tempo de poesia, um presente que em presença não poderia acontecer de verdade. Quando a conversa estava na melhor parte, a esposa de Rafael o chamou:

- Rafael, como você pretende conhecer a essência do poeta se você ficou aí, sentado nessa pedra a manhã inteira?

Rafael nada lhe respondeu. Fez um sinal com as mãos que logo entraria. Tomou sua máquina fotográfica e a posicionou naquelas tumbas que diziam:

“PABLO NERUDA Y MATILDE URRUTIA”

Não são todos os seres humanos que podem ter atendido um pedido de ser exumados e enterrados no quintal de sua própria casa. Mas ele era o poeta, ele era Neruda, ele era o Prêmio Nobel de Literatura, e ela, Matilde, era seu amor, seu grande amor. Com isso sobrava qualquer tipo de indagação ou explicação.

- Neftalí, você se incomodaria se amanhã eu passasse aqui de novo para tomar outra taça de vinho em sua companhia?

- “Sentir el cariño de los que no conocemos, de los desconocidos que están velando nuestro sueño y nuestra soledad, nuestros peligros o nuestros desfallecimientos, es una sensación aún más grande y más bella, porque extiende nuestro ser y abarca todas las vidas."

Rafael levantou-se e se dirigiu à entrada da casa. Fez o que para ele deve ser feito quando se entra na casa de uma pessoa: primeiro pede-se licença aos seus donos e depois se percorre e se conhece sua morada.

NOTA: Pablo Neruda (1904-1973), poeta chileno, cujo nome era Ricardo Eliezer Neftali Reyes Basoalto. Todas as residências de Neruda transformaram-se em Museus, mas a principal está localizada na praia de El Quisco, num setor conhecido como Isla Negra. Seus restos, bem como de sua terceira e última esposa, estão enterrados neste local. Todos os diálogos em espanhol correspondem a frases e/ou fragmentos de textos deste poeta.

Millarray
Enviado por Millarray em 21/03/2011
Reeditado em 10/10/2011
Código do texto: T2861271
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