Aquela Senhora

Aquela senhora, sem dó nem piedade, arrancou-me de certas entranhas nuas e escuras. De lá saí vermelho, lamacento. E deste momento em diante, vejam, já fui apanhando... Eis o ensinamento primeiro: há que se respirar, menino! E aquela senhora, que de líquidos prazerosos e quentes me retirou continuou presente, embora inicialmente não tenha percebido, durante longos anos, sua mão pesada em minha existência.

Avanço anos no futuro, e cá, donde estou, comento: a que vim? Ora, nem no líquido estaria, se não houvessem me chamado! Eterna dicotomia que de tão entrelaçada nem parece ser uma “tomia”,essa, entre prazer e dor. Ora o prazer trouxe-me aqui, o prazer me expatriou da terra dos prazeres.

Volto.

Já tenho uma visão mais aguçada sobre a senhora. Já sei aonde ela se encontra agora e qual não é a minha surpresa ao notar que ela está, mãos firmes, segurando as minhas. Tendo fitá-la, não consigo. Há uma luminosidade que sei, provém de seus olhos, esta luminosidade não é para mim, me submeto e ando, mãos dadas, cabeça baixa. Sinto os anos, como água por baixo da ponte. Um galho que vai por sobre a água. Onde parará o galho meu Deus? Eu e aquela senhora ali, promovendo experiências de aprendizagem frente ao rio, empirismo teórico... Paradoxo? Não sei ao certo... Mas ao observar o galho, metamorfoseio-me nele e me sinto leve, velejador... O ar entrando por minhas narinas, o barulho da água, uma berceuse. Mas, nessa sinfonia de sono e despreocupação, ouço o som desafinado de um fagote: é a minha senhora, avisando-me das pedras... Deixem os fagotes mal tocados para lá! E me deixo...

E os anos, estes implacáveis, continuam a passar. Numa dessas experiências miro minha imagem nas águas límpidas. E não é igual a que via antes. Sinto-me forte, imenso, embora haja, dentro de mim, solidão sem limites. Não importa, penso, e num arroubo de um latim mal falado, parece que meu peito grita: rex sum! E as mãos daquela senhora, começam a me incomodar deveras, e tento, novamente, fitá-la... Esforço meu pescoço, a luminosidade está lá ainda, ainda turvando meus olhos. Rex sum, rex sum!... Quero vê-la! Quero vê-la! Suas mãos são aço, titânio, um não-sei-o-quê! Deixe-me! Deixe-me! Infrutíferos gritos... Ao rio volto sempre, retiro minha camisa e nado, afundo-me dentro d’água. A água passa por meus lisos cabelos, escorre pelo meu corpo e provoca arrepios inconstantes, prazeres inenarráveis. Um pensamento atravessa meu cérebro: esta senhora me segura mesmo aqui! Dentro d’água, sinto o peso das suas mãos e quanto mais constante tornava esta cogitação ao meu intelecto, mais a água perdia o seu sabor de prazer até que um dia...

Sou arremessado a uma selva. Há calor, por fora. Há frio, por dentro. Uma mata virgem, de ramagem alta. Pressinto insetos venenosos, animais de peçonha ativa, predadores selvagens. O suor escorre-me na testa, meus pés estão feridos só agora noto. Um pássaro passa berrando um cantar assustador. Vejo-me só. E uma coisa me estranha... O peso daquelas mãos, o peso aterrador daquelas mãos onde está? Apareça, desgraçada mão! Infame peso! Choro sentido, dor amarga, feito as frutinhas comestíveis que existiam perto do rio. Decido que não posso ficar ali. Como num sonho, estão ao meu lado direito: foice, canivete e um pedaço de ferro. Um pedaço de ferro? A explicação encontro mais à frente: uma pedra, conhecida por mim em minhas incursões perto do rio, chamada fígado-de-galinha, que ao chocar-se com ferro, solta faíscas. Ao meu lado esquerdo: bolsa e querosene. Junto todas as coisas neste afortunado embornal e sigo. Abro picadas na mata e sigo rumo a diante. Oh, que difícil empreita, que labor terrível enfrento. Dias a fio, roçando a ramagem alta, serpentes por companheiras, onças, larvas, besouros, lacraias. Há frutinhas comestíveis por todo este meu caminho, sempre amargas, sempre o mesmo gosto. Acostumo-me, elas ajudam-me a viver e penso que isso basta. A água? Chove todos os dias, água não me é problema. Quanto tempo se passou desde que aqui estou? O que é o tempo? Santo Agostinho disse que se lhe perguntassem o que era o tempo, saberia o que era, mas se tivesse que o explicar, nada saberia falar. Esses devaneios filosóficos, memórias de minha educação religiosa povoavam-me o pensamento, todas as noites, antes de dormir. Antes porém, sempre olhava o céu, aonde as estrelas seduziam-me com seu brilho frio, distante e tão soberbo. Queria atingir o céu... Imaginava imensas escadas, torres como a de Babel... E num desses dias sonhei que encontrava com uma cópia de mim mesmo. Há quanto tempo não me via a mim, perdido sempre a roçar, roçar a imensa mata. Fitei-me nos olhos, não sei por quanto tempo... Neste devaneio fundi-me eu comigo e geramos um terceiro eu. Acordei sobressaltado, como se tivesse cometido um crime, o crime de criar para destruir. Neste mesmo dia, acabou-se a ramagem enfim! Encontrei uma clareira. Mas estava tão cansado. Neste dia, anos depois, é que lembrei-me do peso das mãos daquela senhora e praguejei novamente contra ela toda sorte de despautérios. Sabia que deveria continuar minha caminhada, mas estava tão cansado... Todos os incontáveis animais, insetos e seres vivos já me eram conhecidos. Embora ainda assustasse-me com alguns deles, tornaram-me meros conhecidos.

Naquela clareira permaneci, as frutinhas amargas não faltavam, a água, da chuva, sempre tinha.

Permaneci longo tempo, com este cansaço que travou-me as pernas. Um dia, sonhei novamente com minha cópia que dizia: “Vai-te”. Obedeci. No outro dia levantei-me e reparei o quanto minhas ferramentas estavam gastas, a pedra no fim, o pedaço de ferro, roto. Enfiei tudo, como todos os dias, no embornal já velho e esgarçado e sai. O vento bateu-me nas faces e o senti como nos dias do rio, em que nadava sem camisa. Sorri, Deus sabe quantos anos depois, sorri e chorei... Meus passos agora são lentos e cambaleantes. Minha mão está flácida, apoio-me num galho de árvore. Continuo a caminhada.

Paro. Sinto algo esquecido há anos. A mão pesada está lá, mais pesada ainda, mais férrea, embora a sinta, agora, doce. Tento ainda praguejar, tendo lhe falar poucas e boas: “senhora, me abandonou quando mais precisava de ti” mas não disse absolutamente nada, a doçura daquela mão pétrea me consolou e amainou a dor do meu coração. Caio ante seus pés e choro. E no meio daquele choro ouço vozes do meu passado distante; ao fundo, como num devaneio auditivo, uma sinfonia para cordas e oboé. Os olhos lacrimejantes são invadidos por uma forte luz. Por reflexo, escondo meu rosto, mas depois, tento olhar para ver através dela e vejo, vejo a senhora, a luz agora não machuca mais meus olhos.

Sou arrebatado para perto daquele rio. Lá agora vejo-a, vestido alvo, de beleza suprema e altivez incrível. Ela diz: “Vem, devolver-te-ei à paz que te roubei”, sou invadido de calma e sono. Ela fecha meus olhos, sinto; pega-me no colo. Estou imensamente feliz, livre, livre! Ela coloca-me no rio e me afunda. A água invade meu rosto, mãos, pés, deliciosamente. Sou o galho, o galho da minha infância em que me metamorfoseava. Transformo-me no galho. Desta vez sei para onde vou, seguirei, levemente, ao eterno mar.

Laanardi
Enviado por Laanardi em 20/03/2011
Código do texto: T2860830
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