O ÂNGULO

É de manhã, sol brilhante, vamos andando por um caminho em fila indiana dentro de um cerrado na encosta de um morro.

Subindo-o notamos que a vegetação foi ficando escassa, mas mostrando uma paisagem exuberante, com gramíneas, umas florezinhas daqui e dali e algumas árvores tortuosas, típicas daquela vegetação. Como é mês de outubro, exala de algumas plantas um perfume de vegetação agradecida pela estação que a pouco tempo começou.

É primavera, e numa região seca como essa qualquer chuva traz ao ambiente um ar místico, alegre e de contemplação.

Era esse o meu sentimento; o de contemplação. O brilho do sol, o cheiro de terra molhada da fraca chuva que tinha caído na madrugada, o verde se exaltando.

Eu era o sexto da fila, que possuía nove pessoas. Eu e mais dois, que estavam logo à minha frente, tínhamos chegado à região há poucas horas, para uma perícia relacionada com questões agrárias e ambientais, e o restante, eram do próprio lugar.

De repente, ao chegarmos ao ápice do morro, vi uma sepultura marcada apenas por uma pequena cruz tosta e castigada pelo tempo. Não tinha flores, apenas alguns poucos capins do campo, uma graminácea aqui e ali.

Ao vê-la, parei, e quase fui esbarrado pelo indivíduo que vinha logo atrás de mim. Afastei um pouco do caminho para dar passagem e perguntei:

___Quem está sepultado aqui?

___É uma moça.

Ele respondeu sem parar, e continuou a caminhar, sem dar importância a essa pergunta banal; para ele.

Fiquei olhando. O outro morador da região que vinha logo atrás afirmou:

____ Ela era problemática.

Como assim? Perguntei.

____Ela era doida, morreu com dezoito anos.

E assim como o primeiro, continuou andando.

Continuei parado. Outro que vinha logo atrás, também quase tromba em mim e continuou andando vagarosamente para que eu pudesse ouvi-lo e foi falando:

___já nasceu assim, dava muito trabalho para a família, nasceu, ficou deitada o tempo todo, pois, não andava, vivia mais de leite e quando faleceu, puseram ela ai. Descansou!

Finalizou a fala e continuou andando.

Meus olhos ficaram ora olhando o túmulo, ora as pessoas, que aos poucos foram sumindo na curva da trilha na descida no outro extremo do morro.

Não sei por que, achei aquilo muito estranho. Foram afirmações muito frias, indignas sobre um ser humano.

Nesse instante, veio-me um sentimento religioso, despertado por aquela situação; um sentimento, acho que atávico, brotou lá no fundo de minha alma.

Aquele sentimento inicial de alegria contemplativa, que pulsava em meu peito, que exultava o âmago do meu ser foi aos poucos se transformando. Em primeiro lugar para um sentimento depressivo, e depois, a uma exaltação religiosa; única seara que vi possível para entender aquelasituação absurda. O absurdo do descaso, o absurdo da ignorância, da cultura da maldade, porque, o que vi ali foi um descaso com uma pessoa.

Sei que não era intencional, era por ignorância, falta de conhecimento em saber que uma pessoa que apresenta uma “deficiência” também quer viver, quer amar, quer ser amada, e por que não, em muitos casos ver o mundo em que vive. Quer ver o sol, a lua, ouvir uma música, um sorriso; quer ser feliz!

Sabia-se lá o grau de compreensão daquela moça? Por outro lado, aqueles moradores não tinham consciência dessa realidade, pois do assunto, apenas reproduziam o que lhes eram transmitidos oralmente através dos tempos, e assim, sua ignorância era mantida por uma cultura, uma cultura antiga, inconsciente, onde quem não pode produzir o prato de comida que come, nada vale. Quem não pode trabalhar não pode viver com dignidade, quem não pode expressar seus sentimentos não pode viver! A pessoa não seria mais que uma coisa.

No entanto, vi, nesse caso e em outros, tempos depois, que as famílias não desprezavam essas pessoas, lutavam para preservá-la, mas, pouco faziam a respeito,fruto de uma paralisia cultural, que não as motivavam.

Fiquei em silêncio! O silêncio é revelador. Ele fala com a alma.

Olhei para o céu. Azul com umas poucas nuvens, brancas como leite, aquele leite que manteve aquela vida na cama por dezoito anos.

Uma leve brisa soprou; algumas árvores floridas deixaram cair pétalas de flores. Um vento soprou-as ao ar e eu rezei.

Rezei um pai-nosso, bem devagar e contemplativo. Pedi perdão àquela moça, em nome da humanidade! Perdão por ter sofrido tanta discriminação, tanto preconceito, tanta falta de oportunidades, dignidade e ainda pensei. Como, nós humanos a fizemos sofrer.

Desci a trilha para encontrar os companheiros. Andei rápido quase correndo por quinze minutos (esse foi o tempo de minha homenagem, se assim poderia ser chamado), até vê-los já no destino, parados em uma casa, conversando, alegres, fazendo planejamentos, brincadeiras, etc...

Ao chegar junto ao grupo, e fazer os cumprimentos de praxe, meio desconfiado, aos poucos fui entrando no assunto da moça. Às perguntas, respondi: demorei porque estava vendo o túmulo e comecei a pensar na vida. A morte nos faz pensar na vida!

No final da tarde, após concluirmos nosso trabalho, começou a chover muito, anoiteceu, a hora foi ficando avançada e conversa vai, conversa vem, acabamos por ficar hospedados na casa onde viveu a moça da sepultura. Lá fiquei sabendo que se chamava Beatriz.

Por ironia ou não, fiquei no quarto que ela viveu a vida inteira, na mesma cama, que depois fiquei sabendo quando ela vivia ali, tinha um aspecto mais triste, pois era escuro, sem movimento, apenas, de vez enquanto ouviam-se uns gritos, uns grunhidos como se ela quisesse dizer alguma coisa.

Uma grande mágoa habitou meu coração. Pensei: como somos maus, todos os dias tratamos “deficientes” como se não sentissem nada, como eles não tivessem desejos, sentimentos, vontades.

E ali deitado, na mesma posição que ela deitava, fiquei observando o quarto e perguntei: Deus, como nós humanos, feitos a sua imagem e semelhança pudemos fazer isso? Deixá-la por toda uma vida, deitada numa cama, num quarto sujo, escuro, sem ventilação, vendo apenas um guarda-roupa, uma folhinha na parede, uma fresta na janela, vendo o mundo, Senhor, sentindo o mundo Senhor, de apenas um único ângulo.

Carlos Leonardo Figueiredo Gomes

Julho de 1998