A cidade das crianças
De longe via as Serras. Grandes Serras, assim eram chamadas a cadeia de montanha verde que ilhava minha cidade. O céu era uma tampa grande e azul, sustentado por elas na extremidade.
Todos na cidade. As crianças eu digo, gostariam de saber o que existia do outro lado delas.
As vezes, na beira do rio, depois do futebol, sentávamos no barranco e criávamos
Cidades, estradas, ou mesmo outras serras depois do horizonte. Tudo na imaginação. Uma vida inteira atrás dos limites da cidade.
Da nossa turma, o único que já tinha ido até era Quinto. O mais velho que estava sempre contando vantagens. E contou uma história difícil pra gente.
- Tem uma cidade enorme. Andamos muito tempo nela. Estava eu e meu tio. Era grande!
- Viu pessoas?
- Sim. Só que...não sei se vocês vão acreditar.
- Diga. Fala logo!
- Só tinha crianças. A cidade inteira não tinha gente grande.
- como assim?
- Só crianças!
Todos ficamos em silêncio. Uns dez meninos ouvindo suas historias. Estávamos na minha casa. No quintal embaixo da mangueira, sentados em bancos de madeira de frente pra ele. Ele de pé, não se movia. Aquilo tomava mais nossa atenção.
- Você tem certeza?
- Claro que sim. Tanto eu como meu tio não vimos ninguém grande na cidade. Nas padarias, nos bancos, nos açougues. Tudo criança.
- Mentiroso!
- Então é mentira.
- Vou perguntar pro seu tio.
- Ele viajou. Quando ele voltar você pergunta.
- Até nos bancos.
- Sim. De óculos e gravatas. Muito sérios.
A gente não sabia se acreditava ou não. Mas aquilo deu medo na gente. Deu pra saber pelo silêncio que ficou. Todos foram embora sem dizer muita coisa. Entrei dentro de casa e fui direto pra cozinha. Minha avó estava no fogão cozinhando como de costume. Assuviava uma musica.
- Vó!
- O que, filho?
- Acha possível uma cidade inteira que só tem crianças?
Ela mexia uma panela de feijão com uma colher grande de pau. Provou um pouco. E foi até dispensa. Voltou com um pouco de sal na colher e jogou na panela. Na volta ela disse.
- Já está com fome? Pode ir pra mesa que já levo.
- A senhora não respondeu minha pergunta, Vó.
Rindo pra mim com seus olhinhos pequenos
- Eu nunca vi, filho. Mas imagino a bagunça que seria!
Achei engraçado. Fui comer e durante aquela tarde essa história não me saiu da cabeça. Crianças no caixa do banco. Ou como professores. E os pais, como seriam. Seriam crianças também. A rodoviária, os garis, jardineiros. Tudo. Não podia. Descansei do almoço e fui a casa de Quinto. Queria ter certeza. Quando chevava em sua casa, estava sentado na calçada. Concertava seu carro de rolima. Olhei pr’ aquele menino mentiroso.
- Vai patinar hoje?
- E ai. O que você ta fazendo aqui.
- Queria saber se sua historia é de verdade.
- Da cidade das criancas?
- Essa mesmo
- Porque você não vai lá ver. Eu não posso te provar.
- Queria saber se é verdade.
- Eu não posso te provar.
No caminho de volta. Minha imaginação andou. Uma cidade comandada por crianças. Tive medo.
Se gente grande já causa problemas, imagina crianças. Será que vão a escola sem obrigá-los.
Será que tomam banho cedo. Escovam os dentes. Desliga a tv pra fazer lição? Quem eles respeitam?
Quando cheguei em casa. Eram umas quatro da tarde. O café já estava na mesa. Meu pai e minha mãe comiam requeijão e café preto. Perguntaram onde eu estava. Não respondi de boa vontade. Pediu pra que eu sentasse à mesa. Minha avó já vinha com uma xícara grande de café com leite e um pão quente pra mim. Mastigava o pão, mas só meu corpo estava ali. Tudo em mim viajava. Meu pai percebeu e perguntou se estava tudo bem. Como sempre disse que sim. Fui pro meu quarto e logo depois ele entra.
- O que foi, Zamis?
Contei tudo pra ele. Ele achou graça da história. Mandou que eu não me preocupasse. Que Quito era um brincalhão e que isso não existia. Disse que era uma cidade normal como as outras.
- O senhor me leva lá? Que quero ver.
- Não tem nada lá, filho.
- Mas ele disse.
- Queria entender porque você cismou assim com essa historia maluca de seu amigo.
- Ele jurou que era verdade.
- Mas mesmo que seja verdade, porque te afeta tanto.
- Fiquei curioso
- Você ficou com medo. Não precisa ter medo. Eu estou aqui.
- Você não entende, pai. Quero ver se é verdade.
Vencido, depois de um tempo o pai diz:
- Tá bom. Eu te levo lá. Mas só na quinta-feira. Vou estar livre. Até lá, respire um pouco. Tá bom?
- Tá.
Esperei até quinta-feira, num esforço grande pra parecer que estava tudo bem. Não comentei com ninguém. Pensei em chamar algum de meus amigos pra ir comigo, mas já tinham esquecido a historia. Mesmo quando eu comentava, não davam importância. Não ligavam. Foi então apenas eu e meu pai.
Na primeira hora fomos a cavalo. Estava cansado. Estava na garupa. Agarrado as costas dele.
Depois que passamos o açude da mata verde, subimos o resto do caminho pelas trilhas. Descemos até a baixada perto de um rio. Atravessamos e logo depois de umas arvores grandes de eucaliptos, abria uma cidade. Pequena no começo mas que ia crescendo para os fundos. Não era tão grande como Quito falou. Mas era maior que minha cidade. Segurando na mão do meu pai, andamos por toda a cidade. Fomos ate a praça. Vimos barracas de verduras. Do outro lado, atras do coreto vi o banco. Entramos e olhamos aquelas pessoas.
- Não te falei filho? Agora sua vida pode voltar ao normal.
Fiquei quieto e ele continuou.
- Não existe cidade como essa que seu amigo falou. Talvez esteja na hora de você não acreditar em tudo que eles te falam. Fica mais esperto, entendeu?
- Entendi, pai
- Bom, já que estamos aqui vamos comprar algumas coisas. Ali tem um conjunto de lojas.
De tanto eu insistir entramos numa loja de brinquedos. Ficamos muito tempo lá dentro. Ele queria me agradar. Comprou muitos carrinhos. Um jogo de trenzinhos. Uma bola de futebol e uma infinidade de bonecos, raquetes, jogos de botões. E muitas e muitas coisas.
- Pai, tá tarde. A gente precisa ir embora.
- Calma! Estou escolhendo alguns brinquedos.
- Já tá bom, pai. A gente não vai conseguir carregar.
- Qualquer coisa a gente vem pegar depois.
- Mas já é muito tarde. Minha a mãe já está preocupada.
- Fica quieto! Não vê que ainda falta muitos? Me traga mais um saco.