O Outro Lado da Solidão - parte 3
A história procurava mostrar o lado negro da alma humana, vencida pelas fraquezas e ilusões deste mundo. Cesário, homem arguto por natureza, vivera este drama em sua vida. Não tinha do que se queixar, possuía dinheiro, bens e pessoas que o amavam. Casou e não teve filhos. A desculpa de amar tanto a esposa a ponto de não querer dividir com outros o amor que sentia por ela, fê-lo amargar uma decepção que o marcaria indefinidamente. Achava que o vigor de suas trinta e duas primaveras, o tipo saudável e atlético e o dinheiro, seriam o suficiente para prender o coração de uma mulher tão jovem e fogosa como Fernanda. Morena índia, de olhos grandes e expressivos e treze anos mais nova. Viveram uma paixão até mais longa do que seria de se esperar. Todos os gozos que da carne se pode auferir mantiveram vivo o elo que, todavia, não sendo imune, rompeu-se.
Fernanda arranjou um amante após quinze anos de convivência com Cesário, e o que sonhava acabou conseguindo: engravidou. A separação foi inevitável. Ele sumiu por uns tempos e nem mesmo aos amigos mais íntimos deu notícia. Ao retornar, tentou nova vida mas já aí seus sentimentos eram outros e os valores estavam transformados. O baque da perda afetara-o sem piedade. As mulheres representavam não mais que um símbolo, o do prazer sexual. O dinheiro, o poder da compra e as amizades de agora eram depositários de suas frustrações e catalisadoras de sua derrota. Daí para o fundo do poço não faltou senão a força do empurrão de um dedo, e este veio na perda do pai, o último merecedor de suas mais sinceras confissões e transmissor de apoio e confiança. Fica notório o cunho trágico e negativo dado à história, embora tenha eu permeado o seu conteúdo de verdades e ensinamentos úteis a uma conduta de vida.
Terminado aquele relato, a voz emudeceu por instantes; queria o desconhecido, por certo, sentir minha reação. Como me demorava a pronunciar qualquer palavra, pois nenhuma encontrava, tal o meu estado indescritível, ele então prosseguiu:
– Creio que agora entende porque não deveria ser tão severo com o seu personagem – frisou bem estas últimas palavras; “O seu personagem”.
– Isto é alguma espécie de brincadeira? – indaguei com seriedade.
– Há muito que não estou para brincadeiras, se é que você está bem lembrado da história. Não se joga um ser em sombrio estado de solidão. Só mesmo quem passa por igual tormento pode avaliar a dor. Por isso para que compreenda o meu sofrimento vou fazê-lo sentir o que é estar só no mundo. Verá a vida como eu a vi, da forma que escolheu para mim. A ficção vai tornar-se realidade. Ah! Ah! Ah! Ah! – nesse ponto, desliguei o aparelho.
Enquanto durou aquele dia não mais firmei meu espírito. Fiquei sem iniciativa, deixando-me levar pelo resto das horas que trar-me-iam a noite e, com ela, o sono e o esquecimento. Este, poderia encontrá-lo na leitura de um livro, desde que não fosse um dos meus; foi inútil. Não suportei os Cesários que insurgiam dos parágrafos, cobrando-me decisão. Pousei o volume e levantei-me, recolhendo o casaco. Fiz dois passos até a porta e dei com o Thomas: – O patrão não ordenou o almoço? Já passam das duas.
– Já almoçou?
– Não, senhor.
– Então faça-me companhia.
Terminada a refeição, passei à varanda. chuviscava. Recostei-me à cadeira de balanço, acendi e me dispus a saborear o cachimbo. Os gestos quase cerimoniosos que às vezes impunha a mim mesmo em certas situações que me eram prazerosas, iam, aos poucos, serenando minhas emoções. Foi bom enquanto duraram o fumo e minha disposição. Tentei um cochilo, mas ele não veio. Os pingos, que já se faziam grossos, ao invés de trazerem o sono, levaram-me a paciência e eu entrei novamente. De tudo fiz para afastar de minha lembrança o intruso indesejável que por todos os lados perscrutava-me sem trégua. De tudo fiz para esquivar-me. Liguei a televisão, peguei o jornal, fui à janela e olhei o tempo. Retornei à varanda; pus os pés para o lado de fora e estive a ponto de entrar na chuva. Quis dar ao corpo, quem sabe à alma, um banho inédito. Voltei à biblioteca. Procurei nos livros um conforto. Tinha que fazer alguma coisa. Consegui. Por quase uma hora. Ao cair da noite o telefone tocou.
Sem tirar os olhos do texto, que já me cativava, estendi minha mão e trouxe o fone preto ao ouvido. Por pouco não quebro o arco da luminária acesa, tal a minha displicência. – Pronto para seguir minhas instruções? – disse a voz a qual reconheci imediatamente. Larguei o livro aberto em cima da mesa. O vento da janela fez correr todas as folhas, levando as páginas que eu lera, junto com as outras, para um lado e minha atenção para um outro. A voz continuou:
– Não adianta todo o esforço que fizer; não vai livrar-se de mim. Entre outras conseqüências de que mais tarde ficará sabendo, há uma da qual já tem sentido os efeitos. Falo de sua verve, de que tanto se orgulha e muito o tem auxiliado. É isso mesmo. E não conseguirá escrever mais um capítulo sequer de suas histórias tão afamadas. Portanto, se pretende continuar escritor, é só fazer o que eu vou indicar, caso contrário, o seu fim será o meu fim.