Num campo afastado do barulho de carros e burburinhos da cidade, um casal de crianças, Maria e João, brincavam de pique esconde. Estavam suadas, de tanto que corriam embora fosse uma fresca tarde de primavera com sua temperatura amena, uma suave brisa tocava seus rostos vermelhos de calor.
 
De repente se assustaram quando uma chuva de sementes coloridos e tamanhos diversos caía de uma solitária árvore frondosa, localizada no centro do gramado onde brincavam.
 
- Olhe! Exclamou João! Que apontava espantado, com uma das mãos e a outra segurava a cabeça, como que saudando aquele fenômeno, enquanto que Maria tapando os olhos com as duas mãos gritava:
- Isso é coisa do demônio, vamos correr daqui.
- Maria observe, são lindas e caem da árvore e sendo da arvore é da natureza e natureza é Deus!
João agora com os braços estendidos pra cima girava alegremente debaixo da chuva encantada.
- Tens razão João. Disse a arvore. - causando espanto nas crianças -
- Não se assustem meu nome é VIDA e estas são minhas sementes, colham-nas e semeiem-nas.
Ao completarem 45 anos de idade, voltem a este mesmo local, que aqui estarei a esperá-los e somente nesta ocasião é que saberão seu significado.
As crianças colheram todas as sementes e no caminho a suas casas fizeram um pacto:
- Maria este será um segredo nosso. – disse João.
- Por quê? Quero ver a cara de todos quando souberem.
- Você acha que vão acreditar? Internar-nos-ão num hospício ou vão nos exorcizar.
- Mas temos a prova, olhe! E ao mostrar as sementes Maria gritou:
- Olhe são todas iguais são comuns!
- Estás vendo? Este é um sinal de que não temos eu contar para ninguém.
E para frustração de Maria, foi o que fizeram.
Maria era uma menina introvertida, não tinha amigos, em sua cabecinha de apenas nove anos, guardava um grande complexo de inferioridade, filha única e seus pais eram grandes empresários, prósperos, sem problemas financeiros.
Ela estudava no melhor colégio de uma pequena cidade, todos os anos viajavam pelo mundo e ao voltar de férias suas colegas de turma, perguntavam como eram os países, seus costumes, as paisagens...
Ela respondia:
- Isso não me interessa pra nada, não me misturo, prefiro ficar no melhor hotel e aproveitar das regalias.
Vivia no seu mundinho vazio e solitário, por isso não tinha amigos.
 
 
Nesta noite ao chegar a casa João soube que seus pais iriam morar no norte, pois a fabrica na qual seu pai trabalhava como vigia, fora transferida para Manaus.
Correu até a casa de Maria e lhe deu a noticia que caiu sobre ela como uma punhalada em seu coração, não pode conter suas lágrimas e abraçou ao amigo perguntando:
- Com quem vou conversar agora?
- Com suas amigas do colégio.
- Não tenho amiga, elas fogem quando tento me aproximar, sou tratada de burguesinha.
- Tem a seus pais, converse com eles!
- Até parece, eles estão sempre trabalhando, nunca estão em casa, me ignoram.
- Não é assim, eles trabalham muito, te amam e não querem que te falte nada.
- Pois preferia que me faltasse tudo, menos a atenção, coisa que não tenho.
- Você está sendo dura.
- É a verdade. Você se lembra quando tive uma virose? O medico veio aqui em casa, eles pagaram uma enfermeira pra cuidar-me e sequer passaram uma horinha comigo. Vez ou outra que minha mãe da porta me mandava um beijinho barulhento.
- Experimente se abrir com eles, vai ver não percebem que isso te faz falta ou foram criados assim e como pode dar a você uma coisa que nunca conheceram?
 
No final daquele mês, João se mudara com a família e ao se despedir de Maria, combinaram de sempre se corresponderem.
Porém, com a revolta da separação de seu único amigo, ela passou a ignorá-lo e rasgava todas as cartas enviadas por ele, sem sequer abri-las.
 
Passados cinco anos, o pai de João fora acometido por uma doença grave causando seu afastamento da fabrica onde trabalhava.
 
João já com 14 anos, acompanhava-o diariamente ao hospital público e ele mesmo é quem tratava de todas as burocracias impostas pelo sistema de saúde.
 
Foi cativando o carinho dos funcionários que se admiravam ver aquele adolescente estatura mediana, olhos expressivos, tentando amenizar o sofrimento, não só de seu pai, quanto aos demais doentes.
Sempre com compreensão, resignação e muito amor e graças a seu esforço conseguiu a internação de seu pai.
 
Na véspera da morte do seu pai, com muita dificuldade conseguiu manter um pequeno diálogo com o filho:
 
- Cheguei ao fim, querido filho, sinto não ter conseguido deixar você e sua mãe com estabilidade financeira. O que será de vocês? Só deixarei lembranças desses dias tão sofridos e duros... –um triste pranto o dominou e João o abraçou forte dizendo:
- Pai, o dinheiro é importante sim, porém se vivemos honestamente, um dia chega a nossas mãos. Porém o amor, os diálogos sinceros, nossa amizade, são a melhor herança que nos deixará.
 
Seu pai estava muito emocionado e feliz agradecia a Deus em ter um filho tão especial.
 
 
João depois da morte de seu pai arrumou um emprego durante o dia e estudava a noite, tinha um ideal, ser cirurgião, não por orgulho e sim com o objetivo de amenizar o sofrimento daqueles necessitados assim como seu pai e tantas outras pessoas.
 
Sua mãe era empregada domestica e fazia questão de voltar para casa todos os dias, para estar com seu filho amado. João chegava a casa normalmente lá pelas 11h30min da noite, moravam numa pequena casa de apenas três cômodos que representava um castelo para eles, já que era própria.
 
João estava com 18 anos e prestara concurso para a faculdade de Medicina e numa tarde de domingo deitado na rede de seu quintal observava suas sementes mágicas, plantadas logo que foram morar ali, estava cada dia maior, forte, perfumado e harmonioso, notara que algumas não haviam vingado, porém Vida se encarregaria de explicar ou quem sabe um dia se encontraria com Maria.
Sua mãe carinhosamente levou um apetitoso lanche, sentou-se a seu lado e perguntou:
 
- Meu filho, não se sente revoltado com esta vida tão dura? Ter que trabalhar tão cedo enquanto seus amigos apenas estudam?
- Claro que não minha mãe, eu sou um bom aluno na escola da vida, entendo suas lições. A senhora sabe da historia do rei e seu conselheiro?
- Não filho, conte para sua velha mãe!
 
- Um dia, o rei e seu conselheiro saíram para caçar, como de habito. O rei errou o tiro e perdeu seu dedo indicador, sendo socorrido por seu velho e leal conselheiro que lhe dizia:
 - Não se desespere meu rei, foi apenas um dedo, Deus sabe o que faz!
- Deus sabe o que faz? Tirar o dedo de um rei, você acha certo?
- Não importa o que eu ache meu rei e sim que Deus sabe o que faz!
- Pois ficarás confinado na masmorra até o fim de seus dias!
 
Disse o rei enfurecido enquanto o conselheiro de cabeça erguida a caminho da clausura repetia: Deus sabe o que faz!
 O rei revoltado, olhando enojado com a complacência do conselheiro, lhe perguntou:
- Ficará o resto de sua vida confinado e o que me diz?
- Deus sabe o que faz!
O rei cuspiu em sua cara e ordenou que o trancasse na masmorra. Assim que o conselheiro foi confinado.
Anos depois o rei resolveu caçar sozinho, sem seu dedo indicador e sem seu conselheiro. E ao chegar à floresta foi atacado por uma tribo de canibais e gritou:
- Sou rei.
Os canibais nada entendiam, preparavam um enorme caldeirão, despiram-no e vira que lhe faltava um dedo. E o chefe da tribo gritou:
Soltem este infeliz! Falta-lhe um dedo, deve ser leproso!
O rei montou em seu cavalo e saiu galopando sem olhar pra trás.
Chegando ao castelo, ainda apavorado, ordenou que trouxessem o conselheiro. Contou-lhe sobre o incidente e perguntou:
- Como me explicas este acontecido honestamente? Sei que me odeias, afinal sou o responsável por seu confinamento por todos estes anos. Deus sabe mesmo o que faz?
- Claro meu rei! E não tenho porque ter ódio, se eu não estivesse confinado, teria ido com vossa majestade a cassar, a tribo nos encontraria e em meu corpo não falta nada, logo, eu seria devorado pelos canibais. Meu rei passou por um teste de que Deus sabe o que faz!
 
A mãe de João o olhava e pensava o quanto era nobre seu pequeno filho.
 
João a cada dia se superava, passara no vestibular e cursava a sonhada Universidade de Medicina, sempre o melhor aluno, querido por todos, amava a vida, a natureza, agradecia todos os dias a visão que tivera com VIDA e pensava no quanto teria para contar!
 
Os anos se passaram João já estava com 45 anos de idade, um grande cirurgião, casado, vivia numa bonita casa e um quintal plantado com as sementes mágicas.
 
Dirigia o hospital, o mesmo onde morrera seu pai e já não o competia operar, porém ele amigavelmente fazia questão de participar e muitas vezes orientar em casos graves.
Estava numa tarde olhando através da janela, nos dias difíceis que passara em sua infância, o carinho dedicado por sua mãe que já não mais necessitava trabalhar e lembrou que chegara o momento do encontro com VIDA. E Maria? Onde estaria? Porque jamais respondera suas cartas?
Seus pensamentos foram interrompidos ao ser chamado para uma emergência.
- Com licença Dr.João, precisam de sua ajuda no centro cirúrgico.
 
Rumou ao centro cirúrgico, fez sua assepsia e enquanto a instrumentadora colocava suas luvas ele perguntou a equipe.
- Do que se trata?
- Ela sofreu um grave acidente bateu com o carro contra uma muralha, está totalmente drogada.
- Santo Deus!
 
A cirurgia demorou cinco horas, varias costelas fraturadas que por pouco não romperam seus pulmões, foi encaminhada a UTI.
 
Ao chegar a casa, já amanhecendo, contou a sua mulher sobre a emergência:
- Não entendo como as pessoas se machucam tanto, porque se drogam, porque se viciam. Operei uma senhora esta madrugada, aparenta ter uns 70 anos, estava totalmente drogada.
- Ela estava sozinha?
- Sim, seu estado ainda é muito grave. Vou tomar um banho e voltar ao hospital.
 
Chegando ao hospital foi direto para a UTI e pediu a enfermeira o prontuário da paciente ao ler seu nome, sentiu o chão saindo de seus pés. Era Maria, totalmente acabada pelas drogas, aparentava 25 anos mais velhos. Ele suspirou e disse: Pobre amiga!
 
Semanas depois Maria foi transferida a uma enfermaria e já conseguia falar, João se apresentou:
- Lembra-se de mim Maria?
- Foi você quem salvou minha vida, o que quer de mim? Queres meu agradecimento? Se for isso esqueça, porque você não me salvou, prolongou meu sofrimento.
- Não diga isto!
- Quem você pensa que é? Um médico que se acha Deus? Que direito tinhas de salvar minha vida? Quando joguei o carro contra aquela muralha, estava certa que ia morrer, porém tinham que me trazer pra cá! Eu te odeio!
- Acalme-se, quando te perguntei se sabias quem eu era, não me referi ao medico e sim ao João, seu amigo que anos atrás fizemos um pacto com a VIDA, lembras?
- Maldita árvore e suas sementes podres, poucas vingaram, são daninhas, rasteiras, espinhentas, venenosas e mal cheirosas, onde nascem vira um pântano, não gostam de luz são horríveis!
 
João olhava penalizado, pegou a mão de Maria e disse:
- Querida amiga, você se lembra que a VIDA nos convocou a nos encontrarmos com ela ao completarmos 45 anos?Porque não vamos até ela? Com certeza ela nos dará a devida explicação.
- Olhe pra mim João, estou acabada, desde nova a vida sempre me maltratou, meus pais me expulsaram de casa aos dezoito anos, quando descobriram que eu já não mais freqüentava o colégio, gastava todo dinheiro de minha mesada com drogas, roubava, no inicio as coisas de casa pra sustentar meu vício. Quando me vi na rua me prostituí vendendo meu corpo. Até que conheci um traficante, nos apaixonamos e vivemos juntos por 15 anos, até o ano passado, quando um pai desesperado ao vir seu único filho de apenas 14 anos de idade morrer de overdose, soube que o fornecedor era meu companheiro, invadiu nossa casa armado, disparou contra o peito de meu marido e restando uma bala ele atirou contra sua própria cabeça.
Este infeliz acabou com sua vida e ainda a do homem que me deu carinho e me tirou da prostituição.
Desolada virei peregrina viajando sem destino tentando esquecer esta vida miserável e injusta, deste mundo egoísta. Porém as lembranças do passado não me abandonam em meu coração aloja-se um enorme ódio de todos e pena de mim. Não sei o que fiz para sofrer tanto assim. Por que Deus me odeia tanto João?
- Deus é pura bondade querida amiga, somos nós mesmos que nos punimos, não somos os únicos sofredores, te contarei alguns fatos que presenciei neste hospital.
 
João narrou historias verdadeiras presenciadas por ele ao longo de sua vida, porém Maria ouvia distante mergulhada em seu sofrimento. Percebendo a indiferença, ele entendeu que não adiantariam argumentos que melhorasse sua alta estima. Afinal levara a vida por caminhos tortuosos, não foi forte o suficiente para enxergar as armadilhas do mundo, caiu num abismo, foi ao fundo do poço. Precisava de um tempo para emergir e mais que nunca de amor.
Ele acreditava que havia uma sementinha alojada em cada um de nos e que um dia, não importando a idade, sexo, cor, religião ou classe social, despertaríamos nossa consciência para a existência. Quanto a Maria, somente VIDA poderia tirar-lhe daquela profunda depressão.
 
 
... O reencontro com VIDA...
 
 
Após alguns meses João conseguiu convencer a Maria a reencontrar-se com VIDA.
Tantos anos se passaram e lá estava VIDA, mais velha, linda, irradiando luz e exalando um suave perfume.
João emocionado abraçou a Maria, esta imóvel com os olhos estatelados não retribuiu, apenas estendeu a mão para que ele a segurasse.
João ajoelhou-se aos pés de VIDA e soluçando murmurou:
- Querida VIDA perdoe meu pranto estou muito emocionado, sinto como se estivera morto e prestando conta de minha vida.
 
Maria com olhar de censura falou:
 
- Você enlouqueceu mesmo, não vê que tudo isto não passa de uma ilusão de duas crianças? Quem não percebe que esta é uma árvore velha que jamais falou, sequer percebe nossa presença e não passa de um vegetal. Francamente não sei onde eu estava com a cabeça quando aceitei vir até aqui. Vou embora.
 
De repente da arvore caíram pingos como se fossem lágrimas. E João comovido falou:
- Ela esta chorando! Por favor, VIDA não chore, não fique triste, Maria é revoltada e amarga, com tudo e com todos.
- Não estou triste minha criança, choro de felicidade. Feliz por acreditarem em mim.
 
 
...O esclarecimento...
 
- Eu, a árvore, simboliza a vida, minhas sementes são o caminhar, a forma de conduzirmos a nossa vida dependerá do nosso caráter, sendo assim fundamental para nossa evolução. Você João só semeou as boas sementes. Quando perdeu seu pai aos 14 anos de idade, não se revoltou, colhestes a semente da compreensão; ao trabalhar para sustentar sua mãe, a maturidade; quando sua mãe se lamentava ao vê-lo tão cedo trabalhar, a sabedoria, sempre com palavras e gestos de amor; ao estudar, a força; ao se formar, a garra; ao salvar vidas principalmente da Maria, colheu a mais valiosa delas, a semente do amor.
Deves ter notado que algumas não vingaram, pois esta você não as plantou e sim Maria.
Ela teve seus pais de classe media alta, nunca precisou trabalhar tudo que pedia ou sonhava recebia de seus pais. Porém nesta família não havia amor, seus pais só pensavam em enriquecer e achavam que cobri-la de presentes supria a falta de diálogos e carinho. Só que estas coisas são matérias e não fundamentais.
Vejam no que deu! Uma jovem inocente, carente de amor e compreensão, sem orientação, cai no mundo das drogas, colhe sua primeira semente: a ignorância; ao roubar, a ganância; ao sair de casa expulsa pelos pais, o ódio; ao se prostituir, o rancor; ao se unir a um contraventor, a inveja; ao tentar suicídio, a autopiedade; e agora ao me destratar, a vingança. Pois em sua cabeça passa que eu fui a culpada por fazê-la viver desta forma.
Não minha querida Maria, não culpe a VIDA por colher as sementes podres. Olhe dentro de seu coração e veja que existe uma sementinha secando, precisando ser regada, nunca é tarde! Cuide dela, regue-a todos os dias, horas, minutos e segundos, não viva no passado, simplesmente pense no que já passastes, limpe sua plantação daninha, elimine-a, queime-a, deixe que as boas sementes floresçam e tenha certeza de uma coisa: Nunca é tarde para recomeçar! Não tenha vergonha de encarar seus erros e sim se orgulhe em poder enxergar e corrigi-los, não tenha medo nem vergonha de amar e saber perdoar.
 
Maria recapitulou toda sua vida e chorou compulsivamente, levantou a cabeça e os braços para o céu e perguntou a VIDA:
- Como regar esta semente?
- Mergulhe profundo em seu interior, reflexione, perdoe aqueles que culpam por seus deslizes, converse com Deus.
 
Maria abraçou a João e a VIDA, saiu caminhando com passos largos e saltitantes até que encontrou uma bifurcação com dois caminhos, parou, observou que um deles era florido e alegre o outro escuro e triste parecidos com suas sementes e pensou:
- Nunca é tarde para recomeçar. – E rumou pelo caminho das flores!
 
Esta é a lenda da VIDA e em toda lenda sempre tem um final feliz.
Porque não tornarmos nossas vidas em lendas?