A Voz

Sobre a cabeça dos homens, lá estava ele. Num palanque mal colocado pelas meninas do bairro. Soltando aquelas palavras de orgulho, força e esperança. Dando promessas e um resquício de vitalidade aos olhos marejados e corações aflitos do povo, o qual muitos haviam desprezado.

Eu, de longe, apenas o fitava com os olhos vivos em um verde esmeralda – que para ele não transmitiam nenhuma mensagem. Para mim, aquele olhar desencadeava todos os códigos da minha alma e essência. Algo tão intenso, tão soberbo, tão lotado de si... Assim como se fosse uma cólera de raiva tão vil que superava o ódio que se impregnava no coração dos homens.

As palmas evasivas que o povo alucinado doava para aquele sujeito não incomodavam em nada o vazio silencioso em que minha mente se interiorizou. Os meninos corriam de um lado para o outro, fazendo de uma garrafa plástica uma bola. As meninas num banco apenas olhavam tudo abestalhadas enquanto saboreavam o doce algodão doce.

A visão periférica do mundo me seduzia e a imagem dele me encantava, entre o encanto e a sedução – eu me lembrava bem –, eu escolhi a magia.

Travei a porta do carro, aguardei mais uns instantes. O suficiente para que todos dessem a ele os aplausos, assobios e gritos finais. Dei partida, apenas o observei descer a torta escada de madeira. Precedendo seus aliados, ele seguiu para o toldo onde mais dos seus o aguardavam com sorrisos falsamente esticados; com todos aqueles apertos de mão e parabenizações tão exacerbadas que logo denunciavam sua invalidez.

“Não vai parabenizá-lo?” – A voz em minha mente foi tão clara e audível que quase me fez olhar para os lados. Todavia aquela grave e rouca entonação feminina já me era tão familiar que eu apenas dei um sorriso zombeteiro.

“Ele merece, conseguiu se livrar de tudo que nós fizemos.” – A angústia e a frustração perfuraram ainda mais meu coração. Senti o meu sangue putrificado escorrer das minhas artérias negras e jorrar pelos meus olhos em lágrimas cristalinas.

“Ora! Não me venha com essas lamentações fingidas agora! Fizemos e ponto!” – O carro lentamente começou a sair da inércia. Agradecida pelos vidros serem negros e esconderem minha identidade, fui tirando o pé do freio. Nenhum daqueles pobres coitados enganados por seus sonhos, poderia me parar e me leva ao fundo do poço, como em breve chegariam.

- Alô – falei baixo com o telefone ao ouvido.

- Vai simplesmente fugir, assim como o diabo foge da cruz?

- Não tenho mais o que fazer aqui, Alexandra.

- Isso não acabou e você sabe.

- Acabou pra mim, não pense que vou me envolver ainda mais nessa trama.

- Eu não penso, tenho certeza. Você é quem mais se envolveu e acha que ir embora vai destruir os laços entre todos nós? O que Ela lhe diz?

- Apenas me culpa. Após ter me ensinando que de nada tenho culpa.

- Não minta pra mim.

- Alexandra, cansei de vozes na minha cabeça,. Nada que vocês façam ou digam poderá me fazer voltar atrás.

- Eu não estaria tão certa se fosse você.

- Nisso eu vejo uma coisa muito evidente. Você não tem capacidade de se igualar a mim. Você sabe das minhas habilidades. Não as subestime. Apenas deixe-me ir em paz.

- A paz é para os fracos.

- A guerra é para os tolos...

“O muro que divide essas forças pertence aos Deuses! Se mantenha nele!”

Estas foram as últimas palavras antes que o sinal de telefonia fosse cortado pela vegetação seca do interior nordestino. Joguei o telefone para o lado e voltei minha atenção para a estrada de barro e o canavial que me rodeava.

“Acha mesmo que exageramos, não é?” – Demoraria, mas eu ainda iria conseguir ignorar esta voz – “Você não sabe de nada. Desconhece tudo o que eu tenho a possibilidade de moldar. Eu sei o que estou fazendo. Confie, apenas confie.”

Liguei o som do carro. Era surpreendente como as rádios daquela cidade se assemelhavam. Todas tocavam as mesmas músicas, as mesmas baladas, as mesmas cumbias e os mesmos foros. Essa viagem estava me cansando...

“Você sabe que não consegue parar de me ouvir... Desista!” – Como se uma nuvem escura tivesse se materializado dentro do meu carro, me vi sem visão alguma. Apenas uma nebulosa negra que logo formou a lembrança.

(...)

Nos braços dele, eu sentia todo o calor e o suor de seu corpo se mesclarem com os meus. Entre os nossos lençóis todas as palavras românticas, sedutoras, juras e mentiras de amor se deliciavam junto a nós num prazer acima dos limites humanos. Era algo transcendental. Eu poderia ver seus olhos em meus olhos e meus olhos por seus olhos. Éramos um, éramos dois, éramos mil... Seu abraço me convencia que aquela louca liberdade era segura; meu colo garantia que sua loucura ficasse livre e como animais que seguem o ciclo irracional do cio do planeta, nós nos amamos.

(...)

Quando voltei a mim, o carro estava entre as canas, cerca de três quilômetros distantes da estrada. Eu estava mais pálida que o normal, suando frio e sentindo o prazer da lembrança ali no presente.

“Vai mesmo deixar tudo nas mãos dos outros, quando apenas você tem a solução para o nosso problema?”

- Mas eu falhei, droga! Eu falhei! Pus tudo a perder! Não consegui!

“Você conseguiu despertar naquele homem o melhor dos sentimentos possíveis, deu a ele a oportunidade de sentir a energia divina em cada átomo da reles existência dele. Dou sabedoria que só os antigos praticavam. Vai mesmo desistir quando se mostrou mais capaz que eu mesma?”

Parei por um segundo. Eu já não entendia mais minha função naquele jogo de poder. Mesmo quando tudo começou, eu me sentia num jogo de xadrez, sendo a rainha e um desconhecido até então era meu rei. Aos poucos como na vida feliz de um homem, as coisas foram fazendo sentido e cada ação era mais uma peça de um quebra cabeça. Por vezes uma peça mal colocada colocava toda a perfeita geometria a perder e todo sentido era alterado. Mas eu sempre estava lá, com ele. Sendo a mulher dos seus sonhos, a provedora de suas conquistas, a bruxa que lhe era madrinha, mas tudo ocultado por imagens falsas de serventes.

- E o que você quer que eu faça? – falei para a voz.

“Siga-o, siga o caminho que ele trilhará como uma Sombra.”

- Quer que eu deixe minha crença para seguir a crença dele só por um capricho seu?

“Quero que você esteja ao lado dele. Se for necessário deixar de lado nossa essência magia, esse é o preço a ser pago. Ou ele não é o amor de sua vida?”

- Sim, é o amor DESTA vida. E quanto as outras? Não serão afetadas pela minha desistência?

“Quem falou em desistir? Você só vai se aventurar em outras terras, sabendo onde é sua casa. Sabendo suas origens.”

- E se eu me perder?

“Acha mesmo que permitirei tal coisa?”

Foi estranho quando o telefone começou a tocar. Ali no meio do nada, onde a rede não deveria pegar. Mais estranho ainda, foi ver o nome dele no visor e ouvir a música que segundo ele nos representava nos chamando.

Fiquei muda.

- Te senti hoje... Sei que estava lá. E sei também porque não foi me ver.

- Se sabe, porque me ligou? Qual a pergunta que vai me fazer agora?

- Quero saber por que você desistiu de mim.

- Você pediu isso. Pediu que eu deixasse você seguir seu caminho.

- Mas também pedi que não deixasse que eu me perdesse.

- O que o faz crer que se perdeu?

- Perdi você...

- E... – quase não consegui falar – Porque não volta pra mim, não volta para o seu Lar?

- Tenho medo.

- De mim? Do que você é e sempre vai ser?

- De me encontrar e verme em um local desconhecido e indesejável.

Senti o rubor e o poder da voz da nossa Rainha em meu peito, e falei com ela as palavras para um de nossos seres perdidos.

“- É um risco que todos os de sangue feérico tem de correr até ver que desejou e nasceu do desconhecido. E que o indesejável, na verdade, é tudo o que se mais quer. Volte pra casa... Volte para nós.”

Luan Silva
Enviado por Luan Silva em 23/02/2011
Código do texto: T2811100
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