Outra Vida

“As madeixas louras da mãe se contorciam no frenesi da dor e do espanto. Como se toda a desgraça que já se abateu no mundo houvesse se transformado num demônio e estivesse espancando cada milímetro do seu corpo e torturando sua alma com lâminas finas e mortais. – Albert! Albert! – A mão de um deus cruel, terrível e vingativo havia despedaçado uma parte do carro, quanto à outra, estava toda amassada esmagando o corpo inerte e repartido de Albert, o pai.

Uma, duas e mais três capotadas geradas pela gravidade despedaçaram pouco a pouco sem que tivesse necessidade de lamúrias, lágrimas ou ainda mais gritos o corpo do filho mais velho que foi ficando no caminho do penhasco junto com as peças do carro. Ela gritava, orava por um Deus que ela nem mais acreditava àquele instante e segurava o bebê que se matinha em silêncio em seus braços.

Quando o carro chocou-se com um chão plano e ricocheteou seu corpo inerte ela percebeu que o bebê tinha uma ferragem que atravessava seu peito e varava o dela. Quis gritar, mas já estava morta, junto com a família que tão feliz voltava pra casa...”

De supetão ela acordou, estava encharcada de suor, ânsia de vômito e com um frio sem sentido. Olhou ao seu redor e estava numa cama de um hospital, havia tubos e fios controlando sua vida e um homem sentado na cadeira ao seu lado, entre um jarro com flores vivas e um criado mudo com um controle em cima dele.

As feições do homem eram estranhas pra ela. Ele dormia, seus cabelos cacheados, ruivos como uma cereja e sua pele pigmentada cheia de sardas lhe eram tão distantes que ela queria distancia dele.

E onde estavam seus filhos? Seu marido? Não queria acreditar naquele sonho terrível. Não podiam ter morrido daquela forma, principalmente o bebê. Tentou se mover, mas seu corpo resistiu, pesando toneladas. Moveu o pescoço e só o pescoço, tentou mover os dedos, mas nem eles se moviam. Estava paraplégica, o mínimo que poderia acontecer depois do acidente. Chorou silenciosa, não por seus movimentos, mas pela família, aquela era a evidencia final de que ela fora amaldiçoada e castigada.

Tentou achar um motivo para que os céus quisessem tirar dela a vida dos filhos que ela passara tanto tempo gerando, e o marido que amava tanto. Talvez a recente traição que cometera, mas Gomes, o amigo de trabalho do marido, era tão sexy e tão persuasivo que foi quase impossível não ceder a tentação.

Talvez a fraqueza que ela sentia ao cuidar dos filhos e para fugir daquela realidade em que um queria lhe enlouquecer com as travessuras e outro com o choro alto, ela se escondia no armário e ficava lá por uns cinco minutos. Até o mais velho parar de quebrar tudo e ir socorrer o irmãozinho que se engasgava com as próprias lágrimas.

Ela não era uma pecadora, não tinha muitos erros. Era um tanto mesquinha, gostava de falar mais dos outros, mas entre as suas vizinhas, se não fizesse isso seria humilhada a cada dia por suas línguas venenosas.

Então porque Deus lhe castigara? Só por uma traição, ou porque era uma má mãe? Havia gente que matava, que fazia atrocidades e continuavam a fazer mal. E ela perdera tudo! TUDO. Sentiu o mesmo remorso que esmagava sua fé como... – Lembrou da ultima visão do marido – Sentia ódio de Deus e realmente queria saber quem era o homem que dormia no seu quarto.

- Helena? Você acordou? – a voz dele era meio rouca e serena, assim como seus olhos azuis oceano.

- Sim, mas não sinto meu corpo.

- Foi por conta do acidente, mas os médicos disseram que é temporário, sua coluna está ainda perfeita, só que por enquanto lesionada.

- E só eu sobrevivi?

- Graças a Deus você sobreviveu, meu bem. Logo, logo nos casaremos e seremos felizes para todo o sempre.

- Me desculpa – ela hesitou, tentando vasculhar suas lembranças em busca dele. Será que ele era outro amante dela e fora apagado de sua mente por alguma lesão cerebral?

- O que houve, meu amor?

- Eu não... Eu não consigo lembrar de você.

Os olhos dele, que sorriam para ela junto com suas feições ficaram em dúvida.

- Do que você se lembra?

- Lembro que era casada, tinha dois filhos, e que cai de um penhasco com eles. Um dos meus filhos se chamava Peter, o outro era Paul...

- Helena, minha querida... Acho que você está um pouco confusa.

- Não é possível. Sinto, mas acho que é você quem está me confundido com a sua Helena. Eu sou eu, lembro-me de toda minha vida. Nasci em 8 de setembro de 1980, sou filha de Lena Tenório Albuquerque e de Hélio Tenório Albuquerque, estudei no Colégio Divino Mestre, fiz faculdade de letras e me casei com Albert Johnes, meu professor de inglês. Tive com ele dois filhos, fomos passar as férias na Califórnia e lá aconteceu o acidente.

Ele olhava incrédulo pra ela, sabia que havia algo de errado com ela. Talvez mais uma seqüela da queda da piscina. Ela pulara do alto do trampolim de mal jeito e se chocara com a escada de inox. Talvez tenha batido a cabeça e ficado com amnésia... Os médicos explicariam.

- Helena, você só tem dezoito anos meu bem. Nem entrou na faculdade ainda. Estava saltando na piscina quando se machucou. Você nunca foi casada, nem teve filhos. Eu sei porque namoramos desde nossos dez anos.

- Você só pode estar brincando. Eu não sou quem eu sei que sou? É isto?

- Meu amor, veja isso, talvez te ajude a se lembrar – ele retirou da carteira uma foto e mostrou a ela, sabendo que ela não tinha como segurá-la.

Na foto uma morena de cabelos lisos e olhos amendoados lindamente maquilados exibia uma aliança com um diamante lindo cravado no dedo direito enquanto abraçava o mesmo homem que lhe mostrava a foto.

- Mas esta não sou eu. Você é idiota? Eu sou loira!

-Você nunca foi loira, Leninha...

Ele foi até o criado mudo, abriu uma das gavetas e tirou um espelho. Trouxe até ela e lhe exibiu o próprio rosto. E Helena por mais que visse o rosto jovem de uma morena, ainda sentia as rugas da idade e toda a carga histórica da loira que era.

Luan Silva
Enviado por Luan Silva em 20/02/2011
Reeditado em 22/02/2011
Código do texto: T2804596
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