Navegações poético delirantes

Naquela manhã fria de inverno, o vento soprava muito forte, fazendo a chuva fina esparramar-se no meu corpo exausto. O dia acabara de nascer e, mais uma vez, eu vagando pelas praias desertas da ilha de Itaparica. A maré estava cheia, me forçando a subir o areal em direção ao rio. O caminho era estreito, comprimido pela vegetação rasteira dos manguezais. Caminhei até uma encruzilhada, próximo à casa de um amigo, quando, de repente, uma luz intensa rasgou o horizonte interrompendo a quietude da manhã. Não suportei fixa-la, mas logo se rarefez e uma nevoa tênue se formou. Sem conseguir enxergar direito o que estava acontecendo, fui me aproximando lentamente. A névoa se dispersou e pude ver sentado sobre a relva, tocando lira, um homem de corpo atlético com cabelos pretos e encaracolados. Trajava uma curta túnica branca e sobre ela um manto vermelho. Para meu assombro, ele calçava um tipo de sandálias por onde pareciam brotar dois pares de pequenas asinhas. Inicialmente não quis acreditar no que via. Aquele personagem na minha frente me fazia lembrar um deus da mitologia grega que conhecia muito bem: Hermes, o filho de Zeus e da misteriosa ninfa Maia. Antes que pudesse esboçar qualquer reação, ele, Hermes, voltou-se para mim, sorriu e serenamente falou:

- Não queira explicar exatamente o que está acontecendo, porque você está na curvatura do sentido. Aqui a lógica se estilhaça, mas preste atenção, tenho algo a lhe contar. Trata-se de uma revelação sobre um acontecimento que alterou completamente a história da humanidade. Chegou a hora de vocês saberem da verdade. Como já havia contado o filósofo grego Aristófanes, inicialmente, a humanidade compreendia três sexos: os homens, as mulheres e os andróginos, que eram simultaneamente, macho e fêmea. Contudo, na versão de Aristófanes, este personagem andrógino é pintado como se fosse um ser perfeito, quase um deus. Tanto que teria ameaçado o rei do Olimpo, que por receio dos seus “poderes”, para enfraquecê-lo, teria separado à metade homem da metade mulher. Nada mais equivocado. Nunca algum mortal teve poderes suficientes para ameaçar Zeus! O motivo da separação dos sexos foi bem diferente. Condenados a viverem em um mesmo corpo, homens e mulheres, não suportavam mais se aturar, face as enormes diferenças que se inscreviam em seus mundos. Inicialmente, aconteceram indisposições, rivalidades, mas aos poucos, cresceu um sentimento mortal de ódio e teve início a matança. Uma banda, para livrar-se da outra, a matava, matando-se, assim, a si mesma. Essa situação chegou a limites extremos, colocando em risco a sobrevivência da própria humanidade. Nesse momento, Zeus teve de intervir. Todos sabem que ele sempre nutriu grande rivalidade pelos humanos, mas algo precisava ser feito. Não tem graça para um deus, não ter alguém que o cultue. Então, ele resolveu separar os sexos não por temor, mas para impedir que a humanidade se extinguisse. Ao ouvir essas palavras, extasiado, eu perguntei:

- O que você quer dizer com isto é que o amor camufla um ódio mortal?

- Tenha calma, você vai entender tudo. Ao separar os sexos, ao contrário do que contam muitas histórias, não houve nem sofrimento, nem procuras desenfreadas para encontrar a metade perdida. Muito pelo contrário. Os humanos, separados, experimentaram, pela primeira vez na sua história, o gosto de poderem se unir ao outro apenas por prazer, sem amarras. Nesta época, o outro era vivenciado como uma possibilidade, nunca como uma finalidade. Ninguém esperava encontrar em alguém, exatamente o que lhe faltava para ser feliz. Logo, não existiam projetos pessoais que incluíssem colar corpos. O sonho que se sonhava através do outro, servia apenas para fazer alegrar a existência, nunca para erguer castelos. Ninguém lutava contra isto, mesmo porque, todos tinham lembranças recentes do que significava está preso, irremediavelmente, a alguém. Foi assim que apareceu o amor. Um sentimento que faz emergir os sonhos mais poéticos da intimidade entre dois seres. Um sentimento mágico, que dissolve e mistura, desfia e entrelaça. Um sentimento tão intenso, que faz acreditar em eternidades, mas que, paradoxalmente, é frágil como uma bolha de sabão. Não sobrevive a amarras, se capturado, morre. Assim, os humanos conheceram uma época de ouro, quando puderam experimentar o gosto intenso da experiência do encontro amoroso. Contudo, esta situação passou a incomodar imensamente uma deusa muito ciumenta, Hera, a esposa de Zeus. Intempestiva, Hera tornou-se conhecida pelos castigos terríveis que impunha aqueles que tentaram cruzar o seu caminho. Particularmente contra os que deixaram-se seduzir pelo maior conquistador do Olimpo: o seu marido. A rainha dos deuses interpretou a forma livre que os mortais viviam o amor como uma provocação. Passou, então, a cultivar uma enorme sede de vingança. A sede crescia na medida em que cresciam as histórias dos casos de amor entre Zeus e os humanos. No seu louco delírio, Hera lançou uma terrível maldição. Ela apagou da memória da humanidade todas as lembranças anteriores ao momento da separação dos sexos e, no lugar, fez surgir uma dor insuportável pela falta da parte perdida. Neste momento, os humanos passaram a acreditar que somente ao lado de um ser amado seriam felizes. Dessa forma, a deusa Hera conseguiu fazer com que o amor se transformasse em uma grande armadilha, que condenou todos a desejarem, perdidamente, aquilo que um dia quase a todos matou: amarras eternas entre duas pessoas.

Ao terminar estas palavras ele entoou um novo cântico e fez soar a lira. Caminhou até o centro da encruzilhada, mirou o horizonte e voltou-se para mim. Neste instante, o mesmo clarão que o trouxera, fez desaparecer sua imagem luminosa daquela manhã cinzenta de junho. Fiquei ofuscado pelo brilho e terminei tropeçando na vegetação. Quando voltei a enxergar bem, sem conseguir conter-me fui correndo para casa escrever o que acabara de vivenciar. Não sei realmente o que aconteceu, não importa se foi sonho, delírio ou simplesmente imaginação de escritor. O que importa é que aconteceu, de alguma forma.