MEU ANJO - PARTE 3

Novamente senti aquele suave impacto e, de repente, já estava no ar pelas mãos de Teli. Enchi-me de alegria ao constatar que a paisagem que agora descortinava me era ainda mais familiar. No lugar do lago cujas águas alcançavam quase a minha propriedade; do pequeno ancoradouro com o pequeno barco de papai, o que havia era a nossa vila de casas, com outras nas proximidades; entre elas, ruas de terra arborizadas e, no centro de tudo, a pracinha, com a igreja, o modesto comércio e o movimento das carruagens. O lago continuava ainda imponente, só que, agora, distante, ligando a cidadezinha à floresta. Nos fins de semana ele era a nossa diversão principal. Nadávamos em suas águas, fazíamos piqueniques ou acampávamos.

Conduziu-me Teli para o outro lado e ali pude ver minha família. Agora entendia o que ela queria dizer com: estar sonhando. Só podia ser mesmo um sonho, pois ali estava eu, vendo a mim mesmo, ao lado de Suzi e das crianças. Estávamos em trajes de banho, com exceção de Daniel que não podia sequer colocar um dos pés nas águas daquele lago, o que vou explicar mais à frente. Éramos eu, Suzi, Cristina, a pequena Pâmela e Daniel. Estávamos, naquele instante, em volta de nossa ceia. Sobre a toalha branca, estendida na relva, duas cestas com bolos, sanduíches, uma garrafa térmica prateada, refresco e biscoitos dispunham-se a nossa gula. Suzi tinha os cabelos loiros presos em um coque por uma fita azul e um maiô vermelho e sensual; como sempre, estava linda e sorridente. Servia as crianças ajudada por Cristina, a gorduchinha. Me vi encostado a um tronco de árvore, folheando, o que me pareceu, uma revista de pesca, meu passatempo predileto.

A manhã, de fato, convidava a uma diversão como aquela. O sol estava quente, tornando quase insuportável uma exposição mais prolongada, por isso me recolhera à sombra da árvore. O vento não estava forte, mas era insistente e isto criava ondas nas águas do lago que, vez ou outra, vinham e beijavam a superfície de terra, deixando ali alguns refugos. Era grande a extensão de terra onde nos encontrávamos. Atrás de nós havia a floresta; o silêncio tudo dominava; a paz e quietude fazía-nos um bem incomparável. Não trocávamos aqueles fins de semana por nada que nos fosse sugerido e, mesmo as crianças, afeitas a correrias e algazarras, próprias da idade, deixavam-se extasiar por quele ambiente e parece que usufruíam dele da mesma forma que nós, adultos, embora tivessem seu jeito particular de sentir a felicidade. Não era raro um som emergir do interior da selva: uma algazarra de macacos, um coaxar de rãs ou mesmo o som estridente de uma arara. Era bom porque, não raro, quebrava a monotonia e fazía-nos lembrar que no mundo havia outros seres além de nós.

Senti no meu espírito - e a sensação foi a mais contundente de que uma sensação é capaz, pois não devia ser eu ali outra coisa além de espírito, visto que lá em baixo se encontrava o meu corpo físico - uma tristeza profunda como se antecipando alguma tragédia. Procurei distrair meus sentimentos olhando para o lago, mais precisamente a sua orla; era repleta de vegetação. Os galhos e folhas eram viçosos. Não somente as orquídeas que o margeavam exibiam beleza nas cores vivas de sua floração, mas as mimosas e galhudas acácias faziam um espetáculo à parte quando gaivotas cobriam-nas de ponta a ponta e, quando voavam em bando, o céu se enchia de vida. Voltei-me para Teli, na intenção de lhe indagar a razão de tudo aquilo, mas algo chamou-me a atenção antes mesmo de olhar para ela.

Cabe aqui explicar o que impede Daniel de se aproximar das águas do lago. Por muitas gerações um fato vinha ocorrendo em nossa família. O tetravô de minha esposa teve grande parte de sua vida marcada por fatos trágicos envolvendo membros de sua família. O que mais marcou, não só aquela geração, mas as seguintes, foi a perda de seu filho aos oito anos de idade. A mãe de sua tetravó, por razões de preconceito acabou por impedir a união de um dos seus filhos com uma moça da região por ser ela pobre e pouco instruída. Por causa disso, envolta por grande tristeza e desespero, a pretendente se suicidou, deixando-se afogar nas águas profundas do lago.

Muito mais do que tristeza foi o imenso ódio que se apossou da mãe da vítima a ponto de rogar uma praga para a família de minha mulher. O corpo nunca foi encontrado a despeito das constantes buscas empreendidas. No auge do desespero, disse a mãe, à beira do lago, olhando fixamente para as suas águas, tendo nos olhos uma expressão de puro ódio e terror: “Eu juro a você, minha filha, que farei a maldição cair sobre aqueles que impediram a sua felicidade e a tiraram de mim. Os homens daquela família jamais terão direito a um casamento. Isto porque, em todas as gerações vindouras, nunca mais nascerão filhos homens e os que, por ventura nascerem, nunca chegarão à idade adulta, pois você não permitirá. Chame, meu amor, todos a sua presença, para que vivam com você na eternidade.”

A começar pelo próprio noivo, que abandonou o lar e nunca mais foi visto - acredita-se que também tenha desaparecido nas águas do lago - os poucos meninos que vieram ao mundo desapareceram antes que completassem o décimo ano de vida. Somente um, que teria sido o avô de Suzi, viram quando, misteriosamente, se afogou. Confirmo que de nenhum se teve notícias e todas as buscas no lago resultaram infrutíferas. A maldição tem-se, portanto, cumprido fiel e amargamente e, quando olho para o rostinho cheio de vida de Daniel, não consigo evitar a apreensão e o medo, mas, procuramos não demonstrar isso a ele. O que levou-me a unir-me a Suzi foi o grande amor que por ela sempre senti. Contudo, confesso que a imensa vontade de possuir um herdeiro homem fez-me lançar, a mim mesmo, um desafio. O amor sempre vence. Esta convicção me dá forças e desejo de lutar pela vida de Daniel; não vou permitir que uma maldição o tire de mim. A maldição está na falta de amor. Não que os outros não tivessem sido amados, mas amo Daniel acima de tudo e mais do que todos.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 15/02/2011
Reeditado em 15/02/2011
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