A Menina dos Olhos

A Menina dos Olhos

“Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil.“

Machado de Assis

I.

Ela sentou em um banco, distante do mundo e de todos. Era como se o mais insuportável fosse o mais essencial. Olhando a rua movimentada, pensava em ser um dos passantes. Queria ser a moça atarefada, com o quê de secretaria, falando alto ao celular, andando como se uma zona de baixa pressão se mantivesse abaixo de seus pés e talvez justificasse o barulho de seus saltos.

O senhor que anda com o rosto baixo, bengala em punho a guiar uns passos desordenados. A mulher no banco ao lado, com duas crianças de 6 ou mais anos, carregando algodão doce e balões coloridos.

Sim, queria de novo ter seis anos e balões coloridos. Aquela vida era cinzenta demais, estilo marca d’água sem auto-relevo. Sem mais palavras. Faltava ao serviço. Pensava no monitor repleto de documentos brancos a serem preenchidos para ontem. Pensava no patrão, que frequentemente a faz experimentar sensações profundas – ódio, desprezo, tédio. Sentia-se deslocada e sem conteúdo. E de mãos atadas.

Ao longo dos seus 25 anos, Emma não havia se imaginado diferente. Com um casaco claro e botas longas, enfrentava um inverno rigoroso na capital paulista. Sua consciência a torturava. Da janela do apartamento, mirava o lado esquerdo, direção que tomaria caso fosse ao trabalho. Tinha de ir ao trabalho. Tinha obrigações, tinha obrigações. Tinha. Levantou-se do banco e procurou esquecer-se de seu lapso. Iria voltar para o emprego atrasada, e dizer que havia gripado com o frio intenso caso alguém perguntasse.

Não era um emprego ruim, muito pelo contrário, de certo aspecto até invejável. Centrada e perfeccionista, Emma almejara e conseguira o salário de seus sonhos por uma ocupação desprovida de oportunidades de crescimento ou criatividade e cujo ambiente de trabalho aparentava um convento no qual monges emudecidos além de pobremente se relacionarem, compactuavam entre si para o insucesso alheio. Uma vida simples e confortável seria um apelo à naturalidade da vida? Preferiu desde sempre a segurança ao irreal e procurava acreditar que sua carreira lhe vestia como uma luva, desprovida de fantástico ou idiossincrásico. Isso em mente, andava fadigada rumo a calçada da empresa de marketing.

A entrada do prédio de vidro era fantástica, hall bem iluminado, paredes da cor branca, estilo minimalista. Andar 7. Troca algumas palavras com o controlador do elevador. Chega ao andar correto, passa por um corredor estreito até avistar seus colegas de trabalho em seus computadores, separados por paredes de isopor.

Diz um bom dia, um olá e senta-se em sua cadeira. Liga o computador, ouve a música de apresentação do sistema operacional. Começa a escrever e a rever trabalhos antigos. E aí esquece de todo o mais, do mundo. Às seis, sai do serviço, passa no supermercado, volta para casa. O vigilante a cumprimenta, diz uma ou outra coisa do preço do aluguel. Ela sobe para o apartamento, guarda as coisas e se deita.

O mundo parecia se descondensar na sua mente. As coisas simplesmente não se encaixavam no lugar proposto. Havia perdido a avó há 12 dias e um luto insuportável se instalara sob seus ombros. A idosa, de 73 anos, havia perecido de vez em razão de um câncer no estômago que teimava em vencer sua determinada sede de viver. Agora, sozinha no apartamento que até então dividia com a mulher que tomara o papel de sua mãe desde que os pais desapareceram, vítimas das auguras do regime militar, Emma contemplava uma vida vazia e seu desejo era apenas fechar os olhos.

Descendente de pai inglês e mãe brasileira, Emma crescera num ambiente familiar bem estruturado, mas solitário. Financeiramente, nunca tivera problemas, por conta de pensões dos parentes ingleses e do patrimônio da mãe, que herdara fazendas, nunca diretamente administradas por Emma, que preferia uma vida urbana e uma faculdade ao provincianismo da terra.

II.

Sono profundo. Sonhos se repetiam sem reminiscência. Negro e atemporal. Inconsciente. Despertar do relógio. Por quanto tempo dormi? O relógio marcava 7 horas. Não sei. Ao sair do quarto, foi ao banheiro olhar-se no espelho e não via mais reflexo. Onde ela estava? Rápido, apanhou um limpador de vidros e esfregou freneticamente no espelho. Freneticamente. A garganta seca e suor no rosto a impediam de pensar apropriadamente. À medida que passava o pano pela superfície, tentava se enganar com sombras, cores dispersas ou algo que poderia se confundir com seu nariz, olhos, braços, sua pele alva. Mas não havia nada. O reflexo de azulejos brancos da parede ao fundo, a pia cheia de produtos de beleza e nada de seu corpo. Nada DELA.

Sentiu as pernas tremerem arrebatadoramente e seu corpo na iminência de desfalecer. Olhou para a torneira, tentando nela se refletir. Entretanto, nunca chegava ao plano pelo qual isso poderia acontecer. De fato, já questionava a existência desse plano. O que significava aquilo?

Deitou-se novamente na cama, e comandou o seu cérebro a acordar do sono. Estaria no meio de um sonho? Um pesadelo?! Após um tempo que não soube determinar, abriu os olhos. Teria dormido? Teria acordado? Não sentia diferença nenhuma em seu ser ou em suas apreensões.

Foi olhar no espelho. Ela não estava. No vidro do relógio, não havia Emma. Ou na louça, nas torneiras. Com violência brutal apertou os próprios pulsos, notou a carne viva, e doía. Seu rosto, tocado pelas mãos, transmitia sensibilidade nos dois locais. Andava normalmente. Respirava normalmente. Chorava compulsivamente e sentia suas lágrimas molharem sua pele e a superfície da mesa de vidro, que não imprimia sua imagem.

Procurou o celular. Duas chamadas do ex-namorado. Olhou as horas. 08:40. Ligou à editora informando que não passava bem e precisava tirar o dia de folga.

III.

- Como assim, não se vê no espelho?

- Não me vejo, não sei como está minha aparência, sei que apenas existo.

Ester lhe lançou um olhar meio jocoso, mais para o lado da pena, de quem intrinsecamente suspeita que fora chamada por plena carência afetiva. Assim que ela ligou, ficara preocupada, sentiu um desespero em sua voz que se justificava apenas pela hipótese de que teria acontecido algo extremamente sério. Agora, dúvidas abarcavam sua mente: teria a vizinha de apartamento apenas pedido ajuda para uma conversa, um desabafo de quem naturalmente se encontra desequilibrada? O que seria isso que a amiga tanto procurava e para ela era uma incógnita absoluta?

- Emma, recomponha-se! Não tem lógica o que você está me dizendo. Chega a ser cômico. Sei que não está no melhor momento de sua vida e realmente, venho notando que você parece ter desistido de viver, a felicidade que tanto empenhou em construir...

- Eu não consigo enxergar meu rosto no espelho! NÃO-CONSIGO!

- ... você está destruindo de uma vez. – ela pausa por um momento e suspira. Sua voz volta num tom raivoso – Então o que você vê no espelho que não consegue engolir? Um começo de ruga na testa? É porque você está sempre com o semblante enfurecido e amargurado!

Emma sentiu aí que deveria mesmo controlar seu desespero. Precisava convencer a amiga de que estava sendo sensata e realista e não lidando com frivolidades. Diminuiu o tom de voz e tentou parecer o mais convincente possível:

- É real, Ester, não falo de nada abstrato. Eu efetivamente e precisamente não posso me ver em nenhuma superfície refletora. Eu simplesmente vejo o fundo sem mim. Não se trata de baixa auto-estima, tristeza mórbida, tique. É... é real, não sei explicar.

- Tem usado drogas, Emma?

- Não, não, nunca. Pelo menos não recentemente.

- Não recentemente? Tem ficado muito tempo sem dormir?

- Depende, de vez em quando meu sono tem horários descontrolados , às vezes muito sono, muita insônia.

-Sei... Você não está tomando remédios pra emagrecer?

- Não, já disse que não estou tomando droga nenhuma. Nada perigoso... Você acha que eu preciso?

-Não sei , você é quem está sendo incoerente aqui. – replicou Ester, extremamente impaciente.

-Você precisa acreditar em mim...

Ali, Emma achou que havia baixado a guarda da amiga. Ela não era pessoa de incomodar os outros tão insistentemente e apesar da incongruência de seu discurso, pareceu ter ganhado parte do crédito da amiga, que ainda permanecia desconfiada.

- Bom, então o que fazemos aqui? Não vejo solução ou cabimento no que você me pede...

- Leve-me ao médico.

- Sim, para que ele te desintoxifique.

- Não vou mais discutir isso com você.

- É porque está consentindo de antemão.

Após a discussão, Ester e Emma sentaram-se no sofá e procuraram a melhor decisão a ser tomada. Muitas considerações e hipóteses seguiram-se a determinação de marcar uma consulta ambulatorial para o fim da tarde em um centro de referência. Primeiro, elas se dirigiram ao convênio médico, para retirar a guia da consulta.

Almoçaram. Ester fez o pedido preferido da amiga, o risotto que ela tanto gostava, de carne desfiada, tomate seco e vegetais. Emma parecia acalmar-se sutilmente, e o ato de forrar a mesa de vidro tornou-a completamente inabalável enquanto comia vagarosamente o seu prato, e sem palavras transportava-se para um mundo de preocupações que, inadvertidamente, resultou em metade do prato cheia e apetite vazio.

Depois de arrumar o almoço, as amigas se sentaram no sofá, assistindo televisão enquanto pouco se falavam. Ester queria ter certeza do comportamento equilibrado de Emma e por isso completou uma hora e meia observando uma compleição sólida, mas triste e surpresa.

Desceram do prédio e pegaram o metrô. No subterrâneo, Ester ficava atenta a qualquer movimento de Emma, que sofria de uma tal desrealização que a presença ululante da multidão avassaladora não parecia retirar-lhe a aparente desconexão do mundo real. Segurando firme a mão da amiga, Ester praticamente a empurrou para dentro do vagão e a dirigiu ao banco mais próximo, sentando-se ao seu lado. Logo, logo, estariam na Consolação, onde pegariam e pagariam a via, para a seguir iniciar a consulta na Santa Casa.

Emma observava os outros passageiros e vez ou outra esbarrava seu olhar no vidro da cabine, o que a desorientava e a levava a olhar para outra figura. A mulher magra, negra, com saia e cabelos longos extremamente negros se contrastava com a figura do jovem rapaz de boné, sentado ao lado esquerdo, e do idoso careca, com mala e terno, a gravata meio solta no pescoço curto e o óculos de meia-lua a fitar o Estado de São Paulo. Entre eles o túnel, suas figuras de novo, sem a dela, e o interior. Assustada, Emma fora obrigada a olhar apenas para si e seus pensamentos. Que será que devia estar acontecendo? Que espécie de estado ilusório a levaria aquela situação? E o médico? Será que depois de um remédio qualquer estaria curada? Era culpa dela? Devia ter cuidado mais da própria saúde, cuidado mais de si, para depois não precisar se surpreender com um problema tão inesperado?

Ester aguardava o ponto certo de descer. Acompanhava atentamente todas as paradas ao mesmo tempo em que com um gesto, apoiava a amiga ao colocar sua mão acima de sua perna. As duas estavam agora quase completamente ajustadas uma à outra, o medo de uma sendo aparado pela segurança da outra, a desconfiança da outra sendo remediada à medida em que a primeira se conformava com a própria situação. Aos poucos, a esperança era destilada em ambas.

Desceram e então saíram do túnel. A Consolação mostrava seu rosto a dupla, corando-a com alento e perfídia, de forma que a paisagem diária e natural, criava um amontoado de sentimentos e estranheza que, ainda assim, eram tão familiares.

IV.

O Cerqueira César, onde se localizava a cooperativa, já tinha sido alcançado e dali a quatrocentos metros, indo a pé, elas chegavam ao prédio verde e bem localizado da Unimed Paulistana. Ao chegar, na entrada do primeiro andar, pegaram a senha 290. E esperaram por sua vez na sala abarrotada de gente, sentada nas fileiras de cadeiras verdes e confortáveis. De olho na cerca de 10 atendentes, que se mostravam à sua frente.

Tomaram seus lugares e puseram-se a esperar. A vista do número 247 as prepararam a uma longa espera. Ester colocou os óculos escuros e procurou uma forma de adormecer na cadeira. Emma, que não conseguiria se concentrar na própria determinação de em nada pensar, preparou uma ou outra pergunta corriqueira para impedir a amiga de adormecer e assim continuar distraída em algo:

- Ester, sua mãe e seu pai ainda estão planejando fazer aquela viagem?

- Qual viagem? – perguntou Ester em tom de irritação.

- Para Israel, é? É pra lá que eles vão?

- Precisamente. Vão passar por Tel Aviv, Jerusalém, onde vão visitar o muro das lamentações... e outros lugares mais... – e compreendendo a necessidade de conversar e entreter a interlocutora, guardou o óculos na bolsa e passou a fixar seus olhos nos números que íam passando.

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Ester era uma garota bem educada, mas sem cerimônias. Seu pai, dono de uma empresa de telecomunicações, garantiu à família uma fortuna considerável, o que afastava ela e seus dois irmãos das intempéries da procura por uma carreira segura e confortável. Aventureira e esportista, jogadora de tênis e dona de um corpo masculinizado, somava características que, quando combinadas a sua personalidade forte, poderia afastar diversos amigos e pretendentes, e atrair outros. Era o caso de Emma, que admirava o ar rebelde exalado pela amiga e procurava nela o vazio de raramente se dar ao luxo de correr riscos e antagonisar a própria ansiedade.

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Ela, Emma, fora sempre uma criança mirrada, e conviveu com proibições desde que se entendia por gente. Tendo apenas a avó como família, pertenceu ao clube de pessoas recatadas e previsíveis. Teve dois namoros sérios, mas nunca se apaixonara realmente, às vezes sentia que era incapaz emocionalmente de partilhar uma vida a dois. Mas esquecia.

Ester e Emma tornaram-se amigas após a mudança da primeira para o prédio. A moça que ocupava o apartamento acima do de Emma, no quinto andar, revelou-se uma confidente fiel e uma amiga confiável. Com ela, Emma passou boa parte do seu tempo livre desde os primeiros anos da faculdade.

- E seu irmão já está trabalhando na empresa...

- É, ele pegou um cargo de estagiário até ele ir se acostumando com os negócios de papai e terminar a faculdade, daqui a dois anos. Aí, ele vê o que faz com o futuro dele.

- Sei.

- O Heitor e você?...

- Ah, não deu certo, não...

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Emma fez uma expressão de gozação a qual já se acostumara. Ester, apesar de sempre colocar toda a esperança no início de um relacionamento, não conseguia se libertar de sua atitude autoritária, acabando por continuamente transformar-se em solteira inveterada, o que não lhe fazia muita diferença: bachelorette ou bela mulher casada, seria bon vivant indistinguivelmente.

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Pegaram a guia sem perguntas da atendente e em pouco tempo, após passarem num banco para que ela pudesse ser paga, dirigiram-se a Santa Casa de Misericórdia, no setor de psiquiatria.

O Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental era um prédio exuberante, estilo colonial, com a parede de tijolos e fachada branca. Uma faixa vermelha, bem decorada, estilo realeza, indicava a porta, pela qual as duas entraram e se fizeram perceber pela secretária, que iniciou a ficha de Emma e instruiu-as a se sentarem para esperar a consulta. Emma era a ainda a terceira paciente, e após preencher seus dados, se ocupou de perceber a arquitetura e as outras pessoas na sala de espera. Indivíduos aparentemente normais, como ela, outros com aparência pobre e feições de alegres a insipientes e indiferentes. A sala simples, um amontoado de cadeiras envolvendo a mesa de centro, repleta de revistas de fofoca. Nas paredes, uma série de janelas que revelavam um jardim bem construído, fontes, begônias e primaveras.

V.

- Emma Morris – a moça mal-pronunciou seu nome.

Elas acompanharam a secretária, que achou melhor que a acompanhante não entrasse na sala. Ester a isso não antagonisou e automaticamente tirou os óculos escuros da bolsa, para concluir o sono frustrado.

Emma acompanhou a secretária, uma mulher baixinha, de tailleur branco e feições alegres. Ela lhe levou a segunda porta a direita, de madeira bem trabalhada, onde se lia a inscrição:

Dr. Jorge Meyer

Psiquiatria Geral

Dentro do consultório, o médico olhava sua ficha enquanto sinalizava para que ela se sentasse. A grande sala ainda permitia observar o jardim amplo, por meio das janelas, cobertas parcialmente por venezianas que diminuíam a força do sol de fim de tarde e que, entretanto, não impediam que ela fosse bombardeada pelos raios de luz.

O médico, atento a tudo, fechou a janela displicentemente permitindo à paciente enxergar o interior da sala. Um pouco escura, mas agradável, e com parede abarrotada dos diplomas do médico plantonista. As paredes de madeira e a decoração lhe lembravam o colégio interno em que estudara no primeiro grau. A sala da coordenadora, adornada com outros diplomas, a cadeira em que sentava, de onde mirava-a com seu rosto angelical e idoso, sua boca pequena e fina e a feição esquálida que concedia à freira uma impressão enérgica e mandatória. Naquele dia, seus olhos a miravam com muito mais afeto.

-Emma...- e a coordenadora esperou a menina assustada sentar-se - mandei a Sor Mariana lhe buscar, tem ido bem na escola? Está tudo bem?

- Acho que sim, o que foi que eu fiz? – a menina de cinco anos, viera com as pernas bambas após o chamado da professora. Desde então, seguia com ela quase chorando sem saber o que dizer.

Na sala, onde ficaram as três pessoas, a Professora Mariana, ela e a coordenadora, a menina esperava sua resposta.

- Nada, minha menina, nada. O que uma garotinha tão boazinha poderia fazer?

- Emma, minha querida, nós temos uma notícia nada boa para lhe dar... – e com um olhar significativo para a coordenadora, continuou – seu pai e sua mãe, foram para o Papai do Céu, entende, minha menina? Para o papai do céu?

Ela olhou intimidada para a grande imagem de Cristo na cruz, logo acima da cabeça da coordenadora. O que papai e mamãe foram procurar com o Papai do céu?

-Emma – e a paciente tornou a prestar atenção, parecendo assustada com a o retorno à realidade.

- Sim.

- Está desacompanhada?

- Não, tenho uma amiga lá fora, ela está cansada e eu pedi que não entrasse junto.

- Entendi. Bom, Emma, nome bonito, hein? Você é estrangeira?

- Eu nasci aqui, mas meu pai era inglês.

- Entendi. Emma, por que você achou melhor vir me consultar? O que aconteceu?

- Doutor, quando eu acordei hoje de manhã e fui tomar banho para o trabalho... eu olhei no espelho e não me reconheci.

O médico olhou-a impassível, tecendo anotações a esmo.

- De fato, quando eu olhei no espelho não vi ninguém. Eu vi o fundo da parede, sem ninguém. – ali o médico soltou um olhar de interesse, como quem visualisa o quebra-cabeça inteiro sem tocar a primeira peça – e quando olhei nos outros espelhos, e quando olhei na mesa de vidro e no vidro do metrô e na torneira e na água e nos talheres. Não tinha eu, apenas uma imagem com fundo solto.

Ele já lhe fornecia toda a atenção imaginável. E através dos óculos de armação elegante, não expressava maravilhamento ou preocupação apesar de estar longe de comiseravelmente insensível.

- E o que aconteceu em seguida?

- Eu fiquei desesperada, achei que tinha morrido, ou que estava sonhando. Foi quando eu liguei para essa amiga, ela ficou o dia comigo e me trouxe aqui. Eu ainda não vejo nada em espelhos, e agradeço pelo senhor ter fechado as cortinas.

- Isso já tinha acontecido antes? Visões desconhecidas, sons? Variações de humor repentinas? De memória?

- Não, nada. Tenho me comportado normalmente, desde sempre. A não ser pelo estado de luto, eu tenho ficado mais triste, perdendo o apetite e o sono.

- Desde quando?

- Minha avó morreu em março – e ela se deu conta de que não sabia que fazia tanto tempo - faz pouco mais de três meses...

- Três meses. E o que tem feito nesses três meses, Emma?

- Trabalhado, vivendo normalmente na medida do possível.

- Você já passou por algum tratamento psiquiátrico, Emma?

-Eu, eu consultava uma psicóloga logo depois dos meus pais morrerem, mas hoje não o faço mais... vez ou outra eu também procurei um analista e de vez em quando eu tomava uns remédios pra ansiedade, homeopáticos, na maioria das vezes.

- Tranqüilizantes? Com que freqüência? Ainda os toma?

- Não, uma vez ou outra eles receitavam, mas eu parei faz muito tempo. Não tenho tantas reviravoltas, mal tenho interesse em tanta coisa para me manter ansiosa.

-Sei, Emma, eu vou precisar que você me conte o tipo e a dosagem dos fármacos, informações dos seus tratamentos prévios, informações de todos os seus tratamentos médicos desde criança, a sua vida em família, tudo o que achar importante, OK? Sua maneira de ser, tudo, tudo o que achar oportuno, depois nós vamos fazer uns exames, certo? Agora, eu só preciso que você me diga, que fármacos você tomava, com qual freqüência, quando, por quê?

Ela respondia as perguntas prontamente, por mais parecessem extremamente desnecessárias, sentiu-se bem após ter falado de sua vida, e a catarse permitiu-lhe evidenciar seu conhecido perfeccionismo demasiado, sua dificuldade de se relacionar, seus medos excessivos e competição, coisas tão aparentes e tão próprias que ela não podia se imaginar delas privada.

Após o longo discurso, o médico pediu que chamasse Ester e depois de uma longa conversa entre os três, ficou estabelecido que Emma tomaria antidepressivos e ansiolíticos ao mesmo tempo em que visitaria o médico duas vezes por semana para psicanálise, na qual deveriam ser descobertas as origens das prováveis alucinações/despersonalizações da paciente.

O médico não poderia deixar de permanecer intrigado. Alguns aspectos da paciente estavam claros: a ansiedade, a depressão, talvez até obsessão, a procura impertinente de fuga da realidade, no trabalho, nos diversos afazeres, no balé, uma possível anorexia? Ainda assim, a descrição da doença em si, a queixa principal, era uma icógnita, tão específica e sui generis. Ele não sabia o que fazer daquilo. Não era apenas o fato de a paciente não se reconhecer no espelho. Era ela ver o fundo do reflexo sem ela. Poderia ser uma espécie de alucinação, uma espécie de despersonalização (a paciente não mais se reconhecia como parte do mundo), entretanto, como explicar a natureza desses sintomas? Ela parecia se enquadrar perfeitamente, compreender que existia e fazia parte de um todo coerente. Talvez completasse a imagem do fundo com sua memória espacial, com uma espécie de ilusão? Mas eram muitas hipóteses ao mesmo tempo. Hipóteses. Nada que pudesse ser enquadrado no cerne da questão. O espelho.

O Dr. Meyer pensou no assunto ainda aquele dia, chamou seu residente, juntos discutiram o caso e não chegaram a qualquer discussão. Mais investigação se fazia necessária. Naquela noite, o psiquiatra dormiu na biblioteca, encaixando um diagnóstico sindrômico. Enquanto isso, Emma decidiu passar a noite no apartamento da amiga, temendo que algo mais acontecesse, além de prometer-se finalmente tirar as férias atrasada. Faria isso amanhã, para que pudesse se concentrar plenamente no seu tratamento. Já tomara a primeira dose do antidepressivo e ansiolítico e se preparava para dormir.

- Não vai comer nada?

- Não, obrigada. Estou cansada até de respirar. Tentarei dormir um pouco. Amanhã pedirei minhas férias e dançarei um pouco. Depois de amanhã volto ao médico.

- Você quer passar um tempo aqui? Durante as férias, para você se acalmar?

- Não, quê isso! Vou voltar para casa imediatamente, não quero incomodar você.

- Você não vai viver normalmente por um tempo. Vai estar em tratamento, muitos dos remédios que anda tomando podem lhe deixar sonolenta, não vai poder dirigir, será perigoso você ficar sozinha.

- Mas... – e aqui a amiga teve de cortá-la energicamente.

- Você vai ficar comigo. Ponto.

- Eu ainda acho que...

- Ponto. Sem discussão. Um ponto. Não três. Sem discussão. Eu não faço nada mesmo de realmente produtivo. Podemos tirar férias juntas! O que acha de ir jogar tênis amanhã?

- Queria dançar. Estou um pouco fora de forma.

- Vamos à academia amanhã. Você com seu balé, eu com meu tênis, sim? Levo-te no clube que estou acostumada. Você ouviu o médico, não? Deve se manter calma, descontraída...

- Sim.

- E eu sei que você deve se esforçar para isso.

- Certo.

Embora se dissesse cansada (e não mentisse), Emma não pôde pregar os olhos naquela noite. Pensava no que havia acontecido e no que estava para acontecer. Como seria sua vida dali para frente? Teria dificuldades de se arrumar. Mas nem tudo estava perdido. Ela se viraria até conseguir voltar ao juízo perfeito. Até voltar.

VI.

No outro dia, exausta, foi tomar banho. Queria dormir, pelo amor de Deus, queria dormir. Aprontou-se e foi ao emprego pedir as férias atrasadas nas relações pessoais. Explicou que estava em um momento complicado, que estava de luto e com problemas de saúde, e que sentia muito por ter feito o pedido tão apressadamente. Não havia escolha. Após burocracias díspares e muito forçosamente, a empresa lhe concedeu as almejadas férias.

À tarde, foi à academia com a amiga. Vestiu a sapatilha, alongou e fez um grand plié na barra lateral. Seus movimentos graciosos se seguiram como uma melodia. Ela evitava olhar no espelho a sua frente, o que a confundia. Desequilibrou diversas vezes. Mais uma. E outra. E continuou caindo assustadoramente. Não mova a cabeça. Não mova a cabeça. Mais outro tombo para a esquerda. Cai e bate o ombro na barra lateral. Sai do salão para ver a amiga jogar.

O irmão de Ester, João Alfredo, era um oponente quase a altura. A irmã acabou levando a partida por 2 sets a zero, e suados, foram cumprimentar a moça.

- Emma, acabou tão cedo o treino. Será que você quer um lanche? Vai voltar a ter aulas?

- Acho desnecessário, Ester. Realmente não. Acho que preciso de outras atividades...

- Fresca. Você conhece o João Alfredo, meu irmão mais velho.

- Sim – e eles se deram um aperto de mão. O irmão, estagiário da empresa do pai, era uma figura simpática, que atraía a atenção e nunca escondera certo interesse nela, apesar de ambos estarem sempre compromissados. Não era o caso de dela agora, solteira há algum tempo, desgostosa de relacionamentos. De fato, ela não parecia se interessar na boa figura de João. Era só uma “boa figura”...

Eles lancharam, foram no barzinho do Cabral e passaram o fim de tarde conversando frivolidades, os campeonatos de tênis que Ester competiria ou não, os empregados inconvenientes da empresa, os namoricos frustrados de Ester, o rapaz da mesa ao lado. Emma era indiferente a tudo e a todos.

- Me dá um guardanapo, moço?

- Ai, que cafona, Ester...

- Ela não vai mandar bilhetinhos, não. Vai? – e como vingança Ester colou o papelzinho na testa do irmão.

- Tenta adivinhar quem é você.

- Quem sou eu?

- Um personagem? Será uma pessoa real, será uma pessoa? Só Emma e eu sabemos.

E o trio ria das próprias bobeiras, Emma queria esquecer sua ausência no brilho das taças e fitava as pessoas em volta com uma vontade inédita de viver, uma chamazinha, uma vela iluminando de volta seu coração... Quase acendendo, quase...

- Quer uma taça, Emma?

- Não, acho que não posso beber.

- Quê isso?

- Ela não pode ficar mais louca do que já está. – disse a amiga tonta. Emma ficou calada, tentando não ficar ressentida.

-Eh, vamos embora, hein? Vou levar vocês pra casa, a Emma senta na frente pra ir primeiro...

- Nada, ela vai lá pra casa. Não precisa forçar aproximação.

- A noite não acabou, Ester?

- Não, ela vai ficar lá em casa, ta ficando lá por um bom tempo, vai até entregar o apartamento, né, Emma? Irá preveni-la de checar andar de baixo todos os dias. Tudo está sempre bem...

- Isso não tinha sido combinado. – olhando para a compleição desconfiada do irmão e pensando que nem sempre as coisas estavam tão maravilhosamente bem.

Na porta do apartamento, o irmão decidiu não subir e ficar dentro do carro. De longe observou as duas garotas, e foi para casa.

VII.

No dia seguinte, Emma se consultava com o Dr. Meyer, que ouvia sua história novamente. A morte dos pais e da avó. A vida solitária, a segurança no trabalho. A fila de ex-namorados e o episódio brutal, a constatação da falta de reflexos, seu sofrimento para ostentar uma satisfação que não possuía. Relatou que passava por momentos de desilusão, que pensava não suportar o peso em seus ombros, algum dia desistiria do mundo, coisa que nunca tivera pulsão de fazer e que a forçava a uma ansiedade intensa. Seus planos foram todos para o futuro na esperança de que amanhã encher-se-ía de coragem. Antecipando a derrota sem nunca a concluir. Vivendo na ansiedade da derrota, sentindo-se derrotada por não ter sido abatida. Desamparada. Problemas com rapazes. Apenas se dava muito bem com a velinha que a criou. Contou do internato e dos treinos sufocantes de balé, coisa que amava, mas não era excepcional, o que a enfurecia. Da escolha da faculdade, do trabalho. De dividir o apartamento com a amiga, de tirar férias.

- Muito bem, excelente. Até observarmos uma mudança substancial no seu humor, devemos mudar seu ambiente, procurar hábitos saudáveis. Sua amiga está certa. Descanso, não muito. Que a cabeça ociosa também é um problema. Amor e trabalho, sabe? É a chave da felicidade para a maioria das pessoas. Para onde foi o seu amor, agora que se foram as pessoas preciosas de sua vida? Para onde você o canalizou? Será que as conquistas pessoais são suficientes? Não é preciso algo mais? Almejar algo? Qual é o objeto do seu desejo, Emma? O que você está querendo buscar? Não é fulgás, imperfeito, ser perfeito o tempo todo? Quem sustentaria isso?

Emma ficou um tempo encarando-o. Não se convencendo de duas palavras do que fora dito. Aquilo para si não era real, inaplicável de fato e ele, percebendo sua reserva, continuou:

- Desejo, Emma, do latim desiderium, compreende? “Desistir das estrelas”. Um desaparecer das estrelas. É uma ausência própria do ser humano. Muitos filósofos se ocuparam disso. Shoppenhauer, Spinoza, Nietzsche... O que é o homem sem a falta de algo que julga ter de possuir, algo que não lhe pertence? E o que pode ele se seu objeto é inalcançável? Emma, você já considerou que você pode estar procurando estrelas? Você já pensou que pode estar procurando, em última instância, o nada, e de forma intermitente? A que você estaria se reduzindo nesse caso? Esse é a perigo iminente do desejo, compreende?

Emma refletiu abismada nas palavras do outro. Não tinha pensado nisso, nunca tivera preenchido a ausência que o luto a proporcionou. No par amor e trabalho, agora só lhe restava o trabalho, no qual não possuía oportunidades e era estagnada, distante do desejo, do requerer preencher o vazio. Não que pudesse preenche-lo adequadamente, mas lhe faltava a VONTADE, lhe faltava o desejo. Havia apenas um vazio irresoluto, na qual ela dançava e movia pensamentos como passos de balé. Produzindo seu grande show, sua obra de arte, num espaço inexistente. Presa num espaço inexistente.

-A sessão acabou, Emma. Espero você depois de amanhã. Nós acompanharemos os fármacos de novo, deve me relatar sobre as alterações de sono, sua atenção e seus sintomas físicos, mesmo. Peço para que você não tome qualquer droga sem meu conhecimento. Qualquer analgésico é proibido. Quero que se mantenha uma pessoa ativa, tenha trabalho, lazer, espiritualidade, cuide do corpo de alguma forma e evite pensar obsessivamente na idéia dos espelhos. Qualquer coisa me ligue imediatamente, você tem meu telefone.

- Certo, Doutor.

VIII.

E voltou para casa, o apartamento da amiga. Naqueles dias, os pais de Ester embarcariam para Jerusalém, e um almoço comemorativo fora marcado para juntar pais e filhos. Emma era convidada de honra, e, embora lutasse contra os convites incessantes da amiga, vestiu seu melhor vestido e chamou um taxista.

- Você não tem de se preocupar, cada um vai levar um acompanhante. O Alfredo pode levar a namorada, o José, um amigo. – e piscou para a amiga – nós vamos nos divertir.

Lá chegando, Emma ficou estupefata com o interior da construção. A sitting area monumental, decoração contemporânea. Quando chegaram, os pais já estavam na mesa, degustando as entradas. As moças, bem recebidas, sentaram-se e fizeram os pedidos. Emma não pode deixar de notar a rejuvenescida da mãe de Ester, a mulher, que gozava agora de seus cinqüenta e poucos anos, branca e esbelta, agora aparentava dez anos mais nova. Seria a bolsa nos olhos? Ela teria a diminuído? O pai, sempre terno, impressionante em sua vivacidade, meio careca e singelesa.

- Bom, parece que seus irmãos decidiram nos dar um bolo. Nosso vôo é daqui a 3 horas. – disse a mulher, parecendo contrariada.

- Nada, o João Alfredo aparece em minutos. Estava na empresa, decerto, cuidando do patrimônio do pai. – disse orgulhoso.

- O que importa é que estamos aqui, não é mesmo, Emma? – disse uma Ester radiante.

- Eh, sim, claro.

- E como anda o trabalho, Emma? Presumo que estejam tratando-lhe bem, a corrente agora é cuidar do empregado, folgas, viagens, jornada menor. Fazer-lo orgulhar-se de sua empresa, conhecedor do produto do trabalho, não é mesmo? A primeira vista parece contraproducente, mas não, acredito que no fim das contas, aí também, menos é mais.

- É mais, Senhor, de fato. – e riu da ironicidade da situação, com a qual deveria concordar, até para outros âmbitos, que seu emprego tomara todo o significado de menos. À parte do Toyotismo, adquiria o amplo valor de menos.

- Emma está de férias ultimamente, papai. Ela está comigo no apartamento por um tempo.

- É, mudou de andar? Agora mesmo vocês vão me aparecer coladas. – disse a mãe, repentinamente.

- Deviam viajar coladas, sabe? Escolher um lugar, no Brasil, mesmo, para esquecer da vida. Um nordeste, mais perto, um Espírito Santo, um Rio. Espairecer, sabe? Espairecer.

José, o irmão mais novo, havia chegado, e, como profetizara a irmã, trouxera um amigo, Lucas. Os dois rapazes, bonitos, demonstravam uma imponência que contrastada com as maneiras finas, mas discretas, distinguiam os rapazes. A estatura de um equilibrava a do outro, um moreno o outro loiro escuro, sozinhos, interessantes, juntos, um baião de dois.

- José, meu filho, esse é seu amigo Lucas, que rapaz bonito! O que faz da vida, meu filho? Garanto que tem muitas pretendentes?

Visivelmente sem ação, José respondeu:

- Ah, mãe. Menos que deveria, sabe? Menos que deveria... Principalmente agora que está ligado no trabalho, né, Lucas? O Lucas é design de interiores, um artista, vocês deveriam ver suas obras, pai. They are unique.

- Unique... Sim, qualquer dia desses podemos passar em seu ateliê, não, querida? – e sem mais palavra, terminou o assunto e o incômodo em que se encontravam pela companhia inesperada. Eles fechavam os olhos e a boca para as próprias suspeitas e agiam com desconfiança diante do filho mais novo por um motivo muito bem esclarecido aos olhos dos irmãos e de Emma, para os quais esse não constituía qualquer problema. Pelo sim e para o não, não era dito. Ou dito em indiretas. No máximo, meias palavras. Meias, e não se fala mais nisso.

O outro irmão chegou, trazendo uma moça esbelta, loira, dos cabelos lisos, estudante de direito, muito bem vestida e sorridente. Eles cumprimentaram a mesa, e passaram a dela fazer parte. A trupe conversava alegremente, lembrava de situações do passado, riam e se divertiam. Emma congelava o pescoço e os olhares para não olhar nos pratos, talheres ou qualquer lugar “perigoso”. Ainda estava assustada com o rumo que sua vida tomara há algum tempo e agora olhava para o vazio e participava apenas superficialmente. Observava o caminhar rápido dos garçons enquanto sorria ou concordava, proferia alguma sentença ou parecia ouvir os demais. Sem surpresas, seguro e inteligível.

Foi aí que deixou seu olhar fixar em um ponto. O rosto de João Alfredo. Os dois se olharam significantemente, a moça parecendo ter encontrado algo singular, o rapaz parecendo estar embrulhado num enigma, interessado, mas duvidoso, alçado por um segundo de questões dissolutas. Engolido pelo momento. Ela, muito contrariamente a si, procurava ainda o que tanto diferenciava sua imagem das outras, que não a levaram a fixar sua atenção flutuante, o estado de torpeza prazerosa que havia programado para si. Alguma coisa, ela tinha jamais visto, um tal estranhamento, um insight, uma epifania plácida, nos olhos do rapaz, como talvez nunca sentira antes, a fazia encontrar uma espécie de vulto. Um vulto estranho. O que seria?

Onde estava sua estrela?

IX.

Mais dois dias, e a moça-menina voltava ao médico, relatando a visão do vulto que a consumira:

- Quantas vezes você o viu?

- O vulto? Uma só no restaurante. Eu me tratava de estar atenta a todos os meus olhares, evitar superfícies refletoras, evitar ser notada, qualquer contato por muito tempo. Pensava nisso o tempo todo. Calculava todos os meus movimentos. Então o vulto passou.

- Como era o vulto?

- Era uma imagem, não sei dizer. Uma imagem incompreensível, que não sei interpretar. Uma imagem pequena.

- Ela se movimentava?

- Não sei. Apareceu por pouco tempo. Não sei. Estou confusa.

Para ele, estava comprovado que a paciente possuía um componente alucinatório. Agora sim. E características claras de Transtorno Obsessivo. Ela não conseguia se livrar da idéia de fugir de espelhos, será que ela realmente não se via? Era uma ilusão decerto? Será que ela não a criara para poder digerir a falta de amor próprio, a baixa auto-estima, a depressão maior, os pensamentos obsessivos de perfeccionismo? O caso de Emma exigia certa sutileza de raciocínio. O luto se empertigava num complexo maior. Nunca esperaria que um paciente chegasse a sua porta dizendo: “Sou louco, dê-me Clomipramina e estaremos todos bem”, e se tal paciente existisse, ele não deixaria de investigar dependência química. Mas Emma ainda era idiossincrática por si só. Exigia do médico, exigia do cuidador, exigia de si. Estaria Emma insatisfeita consigo mesma a ponto de criar uma situação forte e irascível capaz de transformá-la em personagem psicótica?

Só não podia determinar ao certo se era causa ou conseqüência do episódio inicial. E se fosse algo orgânico, uma intoxicação... uma esquizofrenia? A idéia dos espelhos poderia ser um delírio, Emma poderia estar se vendo no espelho, mas formado a crença de que não existia seu reflexo, uma idéia impermeável à argumentação lógica. Podia ser, e ainda assim, o tratamento medicamentoso era difícil, as duas hipóteses não podiam ser tão contrárias do ponto de vista farmacológico.

Sua conduta foi aumentar a dose de antidepressivos inibidores da recaptação de serotonina e observar seus efeitos ainda não evidentes. Se não desse certo, restava a hipótese da esquizofrenia. Ambas possibilidades pareceram-lhe fracas, mas eram as únicas a se aventar. A se apoiar no momento. Ele informou a paciente de suas decisões, que ficou consternada:

- Doutor, eu não melhorei nada. Eu não me sinto nada melhor. As drogas, elas não funcionam, eu estou com medo, acho que vou ficar para sempre assim. – chorando copiosamente, ela abraça o interlocutor. A paciente agora esperava na longa fila dos desesperados, os indiagnosticáveis, as esfinges diante das quais a equipe médica atava as próprias mãos.

E assim permaneceu por mais de um mês. Triste e desconfiada, obcecada. Esse e outro antidepressivo. Nada. Nada. Com os inibidores da recaptação da serotonina, nada. Passaram ao antidepressivo tricíclico, Amineptina. Pouca diferença notada, mas uma certa tranqüilidade. Voltara a trabalhar, tentava organizar a vida, mas os sintomas ainda eram presentes. E o sofrimento. Mais tempo se passara e o medico finalmente optou por uma associação com antipsicótico.

A moça se sentia sem razão de ser. Os dias se passavam inutilmente. Ela queria fazer algo, ainda que inexplicável, qualquer coisa, qualquer espécie de mágica ou solução milagrosa. Tinha problemas com maquiagem e o cuidado com a aparência. Foi ao longo do tempo empobrecendo a própria imagem, e quando não ía ao salão ou não era ajudada pela amiga Ester, criava para si a imagem de seu descontentamento. Um todo em si desconexo, um rosto de Picasso, Guernica duma guerra imperiosamente interna.

X.

Um dia de manhã, no desespero, Emma procurava se arrumar sozinha. Estava sempre sozinha, por assim dizer. Estava sempre lutando. Decidiu se maquiar e para isso tirava fotos de si. Fotos e mais fotos. E colava-as na parede, na geladeira, para que pudesse se reconhecer nas figuras estapafúrdias. O quadro, a parede, repleta de fotografias. Dela mesma. Tiradas em um mau ângulo. Emma vivia no mundo dos espelhos e fotos. Seu quarto era um mundo de fotos. Ali sim ela se via. Não se reconhecia. Mas se via.

Ao voltar ao consultório, bem a contragosto, relatou os últimos hábitos. Passava no shopping apenas para revelar fotos quase idênticas em tamanhos diferentes, para surpresa do revelador. Saía mais, era verdade, para olhar as próprias fotos. Agora ela estava distante do médico que a ajudara. Ainda não compreendia o porquê de estar ali. Sentia-se injustiçada ao máximo. Mas confiante. Novos sintomas descortinavam os primeiros, curava-se pouco em prol de muito mais. Os fármacos pareciam estar fazendo algum efeito, tornando-a confiante e agressiva. O médico quis interná-la imediatamente.

Ela saiu, voltou ao trabalho. Ignorou tudo o que tinha sido dito na última sessão. Contrariou seu próprio senso de responsabilidade. Sentia-se traída por si, amparada pelo nada e consequentemente distante e empobrecida emocionalmente. Mas não estava fraca. De fato, nunca fora tão positiva em nada.

Terminava uma campanha de seguro de vida. Em seu computador, o resultado final se estampava. O take mostrava um jovem que caía na calçada, atrapalhava o trânsito, um casamento, rolava rua baixa com uma avalanche de utensílios arrastados que comicamente se via livre dele ao chocar-se com uma igreja. “Você pode correr riscos. Planeje seu seguro na corretora tal”. Ela não pode deixar de rir um pouquinho. Estava se emocionando com a ingenuidade dela e da campanha. Mas estava se emocionando.

Na saída, a amiga a encontra e com um olhar inquisitorial, pede-a para entrar no carro. Ela aceita, não a compreendendo. Passa a entender tudo quando percebe o caminho para a Consolação. Ela a pergunta o que estava fazendo, que ia provocar um escândalo, que a deixasse.

No fim do caminho, uma equipe de enfermeiros já a esperava, carregando-a para um internamento de urgência. Não era dada aos escândalos, mas precisava fugir. Ao ser visitada pelo Dr. Meyer, sentiu que havia sido traída, não compreendia mais o princípio, o meio e o fim de tudo o que lhe acontecera. Deitou-se na cama, sedada, tal o medo do médico que mais sintomas embrulhassem sua realidade já complicada, por efeito dos medicamentos. Observação era necessária. Observação.

O residente entrara com o chefe para visitá-la. Em estado de obnubilação ela via no jovem os olhos de outra pessoa, o rosto de outra pessoa. João Alfredo estava a lhe fitar complacente, mais uma vez, como o vulto de outrora. Conversava com uma voz feminina palavras irreconhecíveis.

A mulher se aproximara dela.

- Emma, você me reconhece?

A voz forte e feminina e o corpo bem definido e alto só lhe faziam supor se tratar de sua motorista. Sua vizinha lhe fitava com consideração. Será que fizera a coisa certa?

Elas se olhavam muito proximamente, até ela decidir se virar e sair. Emma, em sobressalto, levou o rosto da outra diretamente contra o seu. Olhava para ela e esboçava um sorrido tímido e incompreensível. Não deixava seu rosto se mover. Parecia calma e resoluta. No fundo dos olhos da amiga assustada, Emma conseguia enxergar o longo objeto de seu desejo. Ela podia ver a si mesma dentro dos olhos da amiga. E reconhecia indubitavelmente a estátua evidente de seu corpo na íris verde. Olhou para a janela a procura de seu reflexo. Não o encontrou. Seria a claridade do sol que a impedia de enxergar-se? Não podia saber. Mas nos olhos da amiga, reconhecia seu sorriso, ensaiava outro mais.

- Onde estava minha estrela...

Adormece. Sono profundo. Sonhos se repetiam sem reminiscência.

Paula Portugal
Enviado por Paula Portugal em 13/02/2011
Código do texto: T2790234
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